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Processo nº 812/98 Relatora: Maria dos Prazeres Beleza
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
4. Por requerimento entrado na Câmara Municipal de Santa Maria da Feira no dia 9 de Julho de 1998, J..., membro da Assembleia de Freguesia do Vale, interpôs recurso contencioso de anulação “do acto da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, de 1.Junho.1998 ... que marcou novas eleições na freguesia do Vale, para o dia 13.Setembro.1998”.
Fundamentando o pedido, alegou, em síntese:
– que, dos nove membros eleitos para a referida Assembleia de Freguesia, quatro pertenciam à lista Grupo Independente do Vale, que obteve o maior número de votos, quatro à lista apresentada pelo Partido Social Democrata e um à lista Vale: Novos Autarcas;
– que a Junta de Freguesia era composta por um “Presidente, que encabeçara a lista Grupo Independente do Vale; o Tesoureiro, da mesma lista; e o Secretário, que fazia parte do grupo do PSD”;
– que “Em 06.Maio.1998, o Senhor Presidente da Junta de Freguesia e todos os demais elementos que haviam integrado a lista Grupo Independente do Vale comunicaram ao Senhor Presidente da Assembleia de Freguesia que renunciavam aos respectivos mandatos.
No entanto, manteve-se o quorum, quer da Assembleia, quer da Junta de Freguesia: a primeira, com cinco dos seus nove membros; a Segunda, com dois dos três membros que a compõem”;
– que, como se depreende da remissão que faz para as fotocópias autenticadas das actas juntas ao processo, em reunião extraordinária da Assembleia de Freguesia de 13 de Maio de 1998, destinada a “Apreciação das consequências da renúncia colectiva da lista ‘Grupo Independente do Vale’ e Preenchimento, por designação e/ou eleição, das vagas ocorridas nos órgãos autárquicos, em consequência daquela renúncia ..., por iniciativa do” Presidente da respectiva mesa “foi investido e tomou posse como presidente da Junta o primeiro elemento da lista” eleita “pelo PSD, o Sr. G..., com fundamento no artigo nono do decreto-lei nº 100/84, de 29 de Março; continuando a Assembleia a Ter maioria legal dos seus membros”, falharia “a Segunda razão que a lei cumulativamente exige para que sejam convocadas eleições autárquicas intercalares”;
– que, consequentemente, G... foi substituído na Assembleia por R...; e,
“de seguida, por escrutíneo secreto, foi eleito por quatro votos a favor e um voto branco o sr. F... para vogal da Junta, de acordo com o que estabelece a alínea b) do nº dois do artigo vigésimo segundo do decreto-lei nº 100/84, de vinte e nove de Março. De seguida foi empossado o substituto legal do recém-eleito vogal, o sr. J...” (o recorrente);
– que, na sessão extraordinária de 18 de Maio seguinte da Assembleia de Freguesia, se procedeu à “identificação dos termos legais que fundamentaram a posse como presidente da Junta do Sr. G...”, o que se traduziu na reformulação da acta da sessão anterior, atrás referida;que veio depois a tomar conhecimento de que a Câmara Municipal de Santa Maria da Feira tinha convocado eleições para a freguesia, por deliberação de 1 de Junho.
O acto impugnado padeceria, em seu entender, de duas causas de ilegalidade:
– errada interpretação e aplicação da lei, por não existir analogia entre o caso e a hipótese directamente prevista no nº 2 do artigo 9º do Decreto-Lei nº
100/84, de 29 de Março; em resumo, sustenta que a convocação de eleições assentou no pressuposto de que a Junta não podia funcionar, o que seria falso; e que, conservando a Assembleia de Freguesia a maioria dos seus membros, não poderia ser afectada por uma situação que apenas respeitava à Junta;
– falta de fundamentação, porque a Câmara, para justificar o acto impugnado, remeteu para um parecer não vinculativo com o qual, ela própria, não concordaria; ora esse parecer não teria valor superior a um outro, de 1986, elaborado pelo GAAL (Gabinete de Apoio às Autarquias Locais), de sentido diferente, que teria merecido o acordo da Câmara. Seria, portanto, ininteligível
“o motivo por que a autoridade recorrida deliberou como deliberou”.
Formulou as seguintes conclusões:
“1ª. Às câmaras municipais só é lícito convocarem eleições intercalares para as freguesias quando, para além do mais, ‘não esteja em efectividade de funções a maioria do número legal dos membros da assembleia’ de freguesia.
2ª Uma vez que, no caso vertente, a Assembleia de Freguesia do Vale conta, em efectividade de funções, cinco dos seus nove membros, a marcação de eleições operada pelo acto recorrido infringe, por errada interpretação e aplicação. O disposto no art. 9º-2 do Dec.-Lei nº 100/84.
3ª Por outro lado, só pode ser nomeada comissão administrativa que substitua a Junta de Freguesia ‘quando não tenha sido possível constituir a assembleia de freguesia por falta de apresentação de listas de candidatos ou por estas terem sido rejeitadas’.
4ª Ao designar a comissão administrativa nele referida, o acto impugnado ofende, igualmente por errada interpretação e aplicação, a estatuição do art. 6º-1 do mesmo diploma legal.
5ª Por ambos os motivos, a deliberação sub censura enferma de violação de lei.
6ª A autoridade recorrida deliberou contra a sua própria opinião, em conformidade com um parecer de que discorda e em oposição a um outro parecer com que concorda.
7ª Não sendo nenhuma desses pareceres vinculativos para ela, não são compreensíveis as razões da sua deliberação.
8ª O acto recorrido não está, por isso, fundamentado, em infracção do estabelecido no art. 124-1/a, C.P.ª, donde decorre, segundo a Jurisprudência dominante, vício de forma, ou, segundo outra corrente, que se subscreve, violação de lei.
TERMOS EM QUE
no provimento do recurso, deve anular-se o acto recorrido, por estar inquinado de violação de lei ou (também) de vício de forma.
2. Antes de entrar no conhecimento do pedido de anulação, torna-se necessário proceder à delimitação do objecto do presente recurso. Com efeito, a verdade é que há que distinguir dois actos da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira: a convocação de eleições para 13 de Setembro próximo, aprovada por unanimidade, e a nomeação de uma comissão administrativa para gerir a freguesia, aprovada apenas por maioria (cfr. Acta da sessão respectiva, a fls. 10). No requerimento de interposição de recurso, todavia, o recorrente afirma expressamente que vem recorrer “do acto da Câmara municipal de santa maria da feira ... que marcou novas eleições da freguesia do Vale”. Da própria alegação do recorrente, porém, bem como das respectivas conclusões, parece resultar que, não obstante pressupor sempre que apenas existe um acto, faz a distinção entre as duas deliberações, cuja legalidade é atacada com fundamentos diferentes (cfr. Conclusões 2ª e 4ª).
Parece, portanto, depreender-se a intenção de impugnar ambos os actos praticados, entre os quais existe uma manifesta relação de precedência lógica, tornando-se necess.
Desde logo, há que as distinguir para o efeito de determinar a competência do Tribunal Constitucional para o julgamento do recurso. E, quanto a este ponto, seguindo a orientação firmada neste Tribunal, decide-se que, nos termos do disposto na alínea f) do artigo 8º e no nº 7 do artigo 102º-B da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Tribunal Constitucional é competente para conhecer do pedido de anulação da deliberação de marcação de eleições, mas incompetente em razão da matéria para julgar da legalidade da nomeação da comissão administrativa, por não se tratar de um acto praticado pela Câmara Municipal de Santa Maria da Feira enquanto órgão da administração eleitoral, visto que o acto não se inscreve em nenhuma das fases de um procedimento eleitoral. Assim resulta, nomeadamente, do critério definido nos acórdãos deste Tribunal nºs
34/98 e 36/98, publicados no Diário da República, II, respectivamente, de 20 e de 17 de Março de 1998.
3. A questão a resolver é, fundamentalmente, a de saber se, ocorrendo a renúncia de todos os membros da lista vencedora das eleições para a assembleia de freguesia, incluindo, portanto, o presidente da Junta, se verificar que não é possível a sua substituição pelos elementos seguintes da mesma lista, nos termos previstos no nº 1 do artigo 73º do Decreto-Lei nº 100/84, a Câmara Municipal correspondente deve marcar eleições para os órgãos da freguesia, aplicando o regime constante do nº 2 do artigo 9º do mesmo diploma legal.
Não se encontra na lei resposta expressa.
Com efeito, prevêem-se, para o caso de impossibilidade (em sentido amplo) de exercício de funções pelo Presidente da Junta de Freguesia, duas situações diferentes, às quais correspondem, justificadamente, soluções diversas. Se existir, apenas, uma falta ou um impedimento de natureza temporária, prescreve o nº 2 do artigo 28º do Decreto-Lei nº 100/84 que o Presidente é substituído pelo Secretário. Se, diferentemente, ocorrer vacatura do lugar (nº 2 do artigo 22º), aplica-se o regime prescrito no artigo 73º do mesmo diploma para o preenchimento de vagas
“nos órgãos autárquicos respeitantes a membros eleitos directamente”, como é, aliás, o caso (art. 73º, nº 1). Então, se a lista vencedora se tiver apresentado isoladamente (primeira parte do nº 1 do artigo 73º citado), a vaga é preenchida “pelo cidadão imediatamente a seguir na ordem da respectiva lista”, de modo a respeitar o sentido da votação expressa, uma vez que o Presidente da Junta é o cabeça da lista mais votada
(23º, nº 1). Se, diferentemente, tiver havido coligação (Segunda parte do nº 1 e nº 2 do mesmo artigo 73º), começa-se por tentar a substituição dentro da lista a que pertence o Presidente e, se não for possível, passa-se à outra (ou outras) listas da coligação. Note-se que a substituição dos outros membros da Junta se faz de forma diversa porque também é diferente o modo da sua designação. Em ambos os casos, a substituição segue a forma de designação: o primeiro da lista mais votada, para a determinação do Presidente da Junta ou de quem o vai substituir; a eleição de entre os membros da Assembleia de Freguesia, em primeira ou em subsequente escolha, para os outros membros.
Ora a renúncia do Presidente da Junta, como não poderia deixar de ser, é considerada como causa de vacatura do lugar ( nº 3 do artigo 71º, sempre do mesmo diploma). Assim, se o Presidente da Junta renunciar ao mandato, tem de ser substituído nos termos do nº 1 do artigo 73º.
Como resolver, então, a hipótese de não ser viável o preenchimento nesses termos? São, em abstracto, configuráveis dois caminhos para tentar ultrapassar a falta de previsão legal expressa. O primeiro consistiria em considerar que existe uma lacuna, a preencher de acordo com os critérios gerais de integração, ou seja, em princípio, pelo recurso à analogia (artigo 10º do Código Civil). De novo se abririam, então, duas vias possíveis de solução: ou a aplicação das regras definidas para os casos de coligação, nos termos do nº 2 do referido artigo 73º, ou a opção pelo regime previsto no nº 2 do artigo 9º, directamente aplicável à hipótese de se tornar necessário preencher o lugar de membro de Assembleia de Freguesia e não Ter sido possível a substituição nos termos do artigo 73º, desde que, cumulativamente, não esteja em funções “a maioria do número legal de membros da assembleia”. Competiria então ao presidente da Assembleia de Freguesia comunicar o facto à Câmara para que esta marcasse novas eleições.
Cabe excluir liminarmente a analogia com as hipóteses de coligação. É que, nessa eventualidade, existiriam duas listas que se apresentaram conjuntamente, não em confronto, ao acto eleitoral, obtendo a maioria do número de votos. A lei apenas se preocupa então em garantir o respeito da ordem com que a lista da coligação foi elaborada, não impondo um Presidente substituto provindo de uma lista que não tenha vencido as eleições, em contradição com o resultado da manifestação da vontade popular. Analogia existe, sim, com a hipótese prevista no citado nº 2 do artigo 9º. O que justifica o regime nele previsto, conducente à marcação de eleições intercalares, é a impossibilidade de funcionamento da assembleia, como se depreende também, sem dificuldade, da exigência cumulativa de não estar em funções a maioria dos seus membros.
No caso concreto, renunciaram dois membros da Junta, pertencentes à lista vencedora (o Presidente e o Tesoureiro). É o que resulta, quer do ponto 4. Da alegação do recorrente, aliás contraditório com o ponto 6., quer da acta da sessão da Assembleia de Freguesia de 13 de Maio, da qual consta a eleição de um vogal para a Junta. A verdade, porém, é que se não coloca quanto à substituição dos vogais da Junta qualquer dificuldade, uma vez que são eleitos pela Assembleia de Freguesia, cujo quorum, neste caso, se mantém, sem limitações quanto à lista pela qual foram eleitos para a Assembleia (cfr. Al. B) do nº 2 do artigo 22º e al. A) do nº 1 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 100/84). Todavia, ainda que se mantivessem em funções os dois vogais, ou que fosse substituído o vogal renunciante, a impossibilidade de substituir o Presidente inviabilizaria o funcionamento da Junta, devido às funções específicas que a lei lhe atribui, nos termos do artigo 28º do Decreto-Lei nº 100/84. Note-se, aliás, que ficaria fortemente comprometido o funcionamento da própria assembleia de freguesia, condicionada no exercício de várias das suas competências pela actuação da Junta. Vejam-se, a título de exemplo, as alíneas e), f), m), n), o), p), q), r) e v) do artigo 15º do Decreto-Lei nº 100/84.
O outro caminho abstractamente possível seria o de defender uma solução interpretativa conducente à inexistência de qualquer lacuna da lei. Traduzir-se-ia em recorrer à lista posicionada em segundo lugar para substituição do Presidente da Junta, independentemente da hipótese de coligação. Com efeito, parece que se poderia afirmar que, renunciando todos os membros da lista vencedora, se tornaria a lista mais votada a que obteve o segundo lugar nos resultados eleitorais, podendo então ser utilizada para efeitos da substituição do renunciante. A verdade, porém, é que essa solução só seria aceitável se tal renúncia pudesse ser equiparada a uma renúncia prévia ao acto de eleição, tratada então como uma renúncia de candidatos e não de membros eleitos, o que não é admissível.
Não sofre, portanto, de qualquer ilegalidade o acto de marcação de eleições intercalares, por errada interpretação e aplicação do regime legal consagrado no nº 2 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 100/84. Foi seguida, aliás, a única via consentânea com a determinação constitucional de que o presidente do órgão executivo colegial das autarquias locais seja “o primeiro candidato da lista mais votada para a assembleia ou para o executivo”, hoje constante do nº 3 do artigo 239º da Constituição revista, em obediência às exigências do princípio da democracia representativa.
A concluir, dir-se-á que, contrariamente ao que parece sustentar o recorrente, o direito de renúncia dos membros dos órgãos autárquicos não pode ser afastado pela circunstância de o exercerem simultânea ou sucessivamente todos os elementos da lista vencedora das eleições. Ainda que conduza à impossibilidade de funcionamento daqueles órgãos, indirectamente afectando o direito ao exercício do cargo por parte dos membros eleitos pelas outras listas, a verdade
é que o direito de renúncia tem expressa consagração legal (nº 1 do artigo 71º do citado Decreto-Lei nº 100/84).
4. Também não ocorre, de igual modo, qualquer falta ou ininteligibilidade da fundamentação dessa mesma deliberação. Basta ler a acta da reunião da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira de 1 de Junho de 1998, a fls. 7, parte final, para concluir que a Câmara, por proposta do respectivo Presidente, deliberou aderindo à fundamentação utilizada no parecer da Comissão de Coordenação da Região Norte que nela se identifica, o que é expressamente permitido pelo nº 1 do artigo 125º do Código do Procedimento Administrativo. A discordância que o Presidente da Câmara exprime é, como resulta claramente da acta, meramente pessoal.
Nestes termos, decide-se:
a) Negar provimento ao recurso quanto ao acto de marcação de eleições intercalares; b) Rejeitar o recurso quanto ao acto de nomeação da comissão administrativa, por incompetência do Tribunal em razão da matéria.
Lisboa, 22 de Julho de 1998 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Artur Maurício Messias Bento Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa