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Proc. nº 563/96
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I
1. H..., procurador-geral adjunto, residente na Rua Alexandre Ferreira, nº 34, 7º Esquerdo, em Lisboa, veio interpor, em 13 de Novembro de 1995, recurso contencioso da deliberação do júri do concurso curricular para recrutamento de juízes do Tribunal de Contas, dirigindo este recurso ao plenário deste último Tribunal, em obediência ao disposto no art.
37º, nº 3, da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, mas suscitando logo a questão da inconstitucionalidade dessa norma atributiva de competência para conhecer do recurso. Pediu a anulação da deliberação do júri que procedeu à classificação final dos candidatos, no concurso aberto por aviso publicado na 2ª Série do Diário da República de 20 de Abril de 1995, invocando que a actuação do júri fora 'violadora da legalidade e ofensiva dos princípios da igualdade, de proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, e ainda da transparência administrativa e do precedente administrativo, de que resultou como causa directa e necessária enfermar a deliberação de classificação final do candidato de erro de facto quanto aos pressupostos e dos vícios de forma, pela preterição de formalidade essenciais na formação e manifestação da vontade e pela não fundamentação' (a fls. 21).
Instruiu esta petição de recurso com 30 documentos, requerendo a citação do Tribunal de Contas na pessoa do seu Presidente, e, de entre os 17 candidatos admitidos, a citação dos candidatos graduados do 1º ao 11º lugares, ou seja, dos candidatos graduados antes do recorrente, em função dos valores atribuídos segundo o mérito relativo.
Conclusos os autos ao relator, ordenou este, por despacho proferido em 22 de Novembro de 1995, que os mesmos fossem a visto do Ministério Público, nos termos e para os efeitos do nº 1 do art. 173º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (abreviadamente EMJ; Lei nº 21/85, de 30 de Julho), aplicável por força do disposto no art. 37º, nº 3, da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro.
O Ministério Público exarou parecer, a fls. 394 vº, onde sustentou que o recurso contencioso seria extemporâneo, por ter sido interposto fora do prazo de 30 dias, conforme dispunha o art. 169º, nº 1, do Estatuto referido, e por não ter sido requerido prazo nos termos do art. 172º, nº 4, desse diploma, sendo aplicáveis as referidas normas do Estatuto dos Magistrados Judiciais por força do art. 37º, nº 3, da Lei nº 86/89 e dado que, tratando-se de lei especial, afastava a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho).
Em seguida, o relator elaborou exposição onde considerou ser manifesto que o nº 3 do art. 37º da Lei Orgânica do Tribunal de Contas (Lei nº
86/89, de 8 de Setembro) não sofria de inconstitucionalidade material ou orgânica e, por outro lado, sustentou que o recurso havia sido interposto de forma extemporânea, atento o disposto no art. 169º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, norma aplicável por força do art. 37º, nº 3, da Lei Orgânica do Tribunal de Contas, sendo certo que aquele Estatuto fora publicado depois da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (a fls. 395 a 399). Não foi ordenada a notificação do recorrente para se pronunciar sobre essa exposição.
Por acórdão de 21 de Dezembro de 1995 e pelas razões constantes da exposição do relator, o plenário do Tribunal de Contas decidiu, por maioria, não tomar conhecimento do recurso. Em declarações de voto de alguns juízes suscitou-se também a questão de falta de quorum de juízes para deliberar validamente, de harmonia com o disposto no nº 2 do art. 23º da Lei nº 86/89.
Notificado deste acórdão, veio o recorrente arguir a nulidade do mesmo, invocando a falta de fundamento da decisão, a omissão de pronúncia sobre certas questões, a proibição de elaboração de acórdãos per relationem e outros vícios. No requerimento de arguição de nulidade, e para a hipótese de improceder a mesma, o recorrente sustentou que a norma constante do nº 4 do art. 172º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, 'e porque houve recurso aos meios facultados pelos arts. 82º-2 e 85º LP [Lei do Processo nos Tribunais Administrativos], padece de inconstitucionalidade na interpretação e aplicação vasadas na decisão sobre a intempestividade do recurso contencioso, o que se invoca para efeitos do disposto no art. 280º-1, b) e nº 4 C. Rep. e art. 70º-1, b) e nº 2 do L. nº
28/82, de 15/11, sendo esta a primeira oportunidade para semelhante arguição' (a fls. 428 dos autos). Este requerimento deu entrada no Tribunal de Contas em 26 de Janeiro de 1996.
Logo em 30 de Janeiro de 1996, o recorrente veio, por mera cautela, interpor recurso da decisão de 21 de Dezembro de 1996 - para a hipótese de a arguição de nulidade não vir a ser apreciada - indicando como questão de inconstitucionalidade objecto daquele as respeitantes às normas dos arts. 37º, nº 3, da Lei nº 86/89 e 172º, nº 4, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (fls.
432). Através de complemento a esse requerimento apresentado em 5 de Fevereiro, acrescentou um ulterior fundamento ao juízo de inconstitucionalidade por ele formulado quanto à segunda destas normas.
Por acórdão de 5 de Junho de 1996, o plenário geral do Tribunal de Contas julgou por maioria 'totalmente improcedente a arguição de nulidade oposta pelo recorrente ao acórdão aprovado em sessão de 21 de Dezembro de 1995' (a fls.
446 a 456).
A fls. 458, foi admitido o recurso para o Tribunal Constitucional.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Foi fixado prazo de 10 dias ao recorrente, ao Presidente do Tribunal de Contas e aos onze candidatos opositores ao concurso para, sucessivamente, alegarem no presente recurso.
Apenas apresentaram alegações o recorrente e o Presidente do Tribunal de Contas.
O recorrente formulou as seguintes conclusões:
'1.1 - O recurso de constitucionalidade destina-se a ajuizar se certa norma jurídica infraconstitucional, que foi aplicada ou uma interpretação pela decisão recorrida é conforme à Constituição ou viola algum dos seus preceitos ou princípios;
1.2 - É objecto deste recurso a inconstitucionalidade das normas constantes do nº 3 do art. 3[7]º da L. nº 86/89, de 8/9 e do nº 4 do art. 172º da L. nº 21/85, de 30/7 (EMJ);
1.3 - As normas em causa foram na oportunidade, no 1º momento possível, arguidas pelo recorrente de inconstitucionais, por si ou na interpretação que o tribunal delas fez.
2.1 - Tanto os preceitos constitucionais como a lei ordinária, por interpretação gramatical ou racional ou das fontes, limitam a competência do TContas, exclusivamente, à área da fiscalização financeira do Estado e de outros entes públicos. Por outro lado,
aquando da discussão do respectivo diploma orgânico na AR não foi prevista e jamais se questionou a competência de excepção do TContas para o julgamento de recursos contenciosos de anulação, pelo que
a norma constante do nº 3 do art. 37º da L. nº 86/89 está em oposição aos arts. 216º e 214º-3 e 168º-1, q) CRep., e também aos arts. 1º, 8º, 9º e 24º e ainda 28º-1, g) do primeiro diploma, todos de valor reforçado relativamente
àquele nº 3, e ainda aos arts. 26º-1, d) do d.l. nº 129/84, de 27/4;
2.2 - A referida norma, ao atribuir competência ao Plenário Geral do TContas para o julgamento dos recursos contenciosos dos actos relativos aos concursos e
à nomeação dos juízes deste tribunal, traduz-se, na prática, na instituicionalização de foro pessoal e na criação de um tribunal especial,
o que viola o estatuído nos arts. 13º-2 e 211º CRep.;
2.3 - A norma constante do nº 3 do art. 37º cit., na interpretação feita, ao permitir que o tribunal a quo invadisse a competência que fora exercída pelo tribunal administrativo de círculo, estabilizadamente,
com fundamento em que é o Plenário Geral do TContas o único interventor em tudo quanto ao concurso respeita, mesmo que para providências anteriores ao intentar do recurso contencioso de anulação,
afronta os preceitos constitucionais da distribuição de competências pelos diferentes tribunais e o princípio constitucional da imperatividade e prevalência das decisões judiciais transitadas em julgado, em violação do art.
208º-2 e dos art. 216º e 214º-3 CRep.
3.1 - O nº 4 do art. 172º da L. nº 21/85, de 30/7, na interpretação que foi dada pelo acórdão recorrido no sentido de que veda aos candidatos a concurso para juiz do TContas o direito de utilizarem os meios facultados pelos arts. 31º e
82º LPTA
e ao impossibilitar a fundamentação da deliberação do júri e inviabilizando a propositura do pertinente recurso contencioso de anulação devidamente alicerçado,
enferma de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos arts.
13º, 17º, 266º e 268º-1, 2 e 3 CRep.;
3.2 - Tal interpretação levou ainda o tribunal a quo, relativamente ao objecto do recurso contencioso, a nem sequer permitir ao recorrente um grau de jurisdição, assim lhe tendo vedado o acesso à justiça,
o que está em contradição com o estatuído nos arts. 20º, 268º-4 e 5 e
207º CRep.;
3.3 - Porque para recursos similares é facultado um 2º grau de apreciação (art.
168º-2 EMJ e art. 26º-d) da L. nº 38/87, de 23/12), a mesma norma do cit. nº 4, pela forma como foi interpretada e aplicada,
viola o princípio da igualdade garantido pelo artº 13º CRep.;
3.4 - A leitura feita pelo acórdão recorrido àquela norma de que não permite lançar mão de outros dispositivos legais alheios às leis nº 86/89 e 21/85,
ao não ter facultado ao interessado o exercício do direito de prévia audição quanto à questão prévia da intempestividade do recurso,
está em contradição com os princípios da CRep., constantes, nomeadamente, dos arts. 3º, 205º-2 e 267º;
3.5 - Esta mesma norma ao permitir que, consoante a interpretação do acórdão recorrido, fosse tratada como res nullius uma decisão do tribunal administrativo de círculo, que conhecera da sua competência e do pedido de intimação e que formou caso julgado formal e material,
viola o princípio ínsito nos arts. 208º-2 e 282º-3 CRep.
4 - As normas constantes do nº 4 do art. 172º EMJ e do nº 3 do art. 37º da L. nº
86/89, ao terem impedido com a sua aplicação, segundo a decisão impugnada, o efectivo exercício de direitos fundamentais constitucionais garantidos,
violou o art. 18º-1 CRep. e ainda o art. 8º da Decl. Univ. Dirs. Homem, conjugadamente com os arts. 8º e 16º da Lei Fundamental, acarretando a nulidade daquela.
5 - A irregular constituição do tribunal, porque a autoria do acórdão de
21.12.95 e da decisão de 5.6.96 que apreciou vícios que lhe haviam sido imputados não coube aos mesmos Juízes, havendo sido proferida a non judice, a consequenciar nulidade,
viola o art. 205º-1 CRep.' (a fls. 488-489)
O Presidente do Tribunal de Contas, por seu turno, formulou as seguintes conclusões nas suas contra-alegações:
'A) A inconstitucionalidade do nº 4 do art. 172º do EMJ [Estatuto dos Magistrados Judiciais] não foi suscitada durante o processo em que foi tomada a decisão objecto deste recurso, em peça processual idónea, facto que viola a al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82, de 15/11. B) O artigo 37º, nº 3, da Lei 86/89, de 8 de Setembro, ao atribuir ao Plenário Geral do Tribunal de Contas a competência para julgar os recursos dos actos definitivos relativos ao concurso e à nomeação dos seus juízes, não é inconstitucional face ao nº 3 do art. 214º da CRP, visto que este não consagra uma reserva material absoluta de jurisdição administrativa, antes configura os tribunais administrativos como tribunais comuns em matéria administrativa. C) Para o caso, improvável, de improceder a conclusão A, e sem transigir, o nº 4 do art. 172º do EMJ, ao atribuir aos interessados a faculdade de requererem a ampliação do prazo para apresentação de documentos quando, justificadamente, não lhe tenha sido possível obter os documentos probatórios necessários, consagra suficientes mecanismos garantísticos do acesso aos tribunais, equiparáveis, nos seus efeitos, aos consagrados nos arts. 31º e 82º da LPTA, razão pela qual o preceito primeiramente referido não é inconstitucional face aos artigos 13º,
18º, 20º e 268º, nº 3, todos da Constituição.'
Estas alegações do Presidente do Tribunal de Contas foram subcritas pelo Director do Gabinete de Estudos do Tribunal, na qualidade de 'Licenciado em Direito com funções de apoio jurídico', tendo sido junto despacho de designação pela autoridade recorrida 'ao abrigo das disposições conjugadas do art. 37º, nº
3, da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, do art. 178º da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, do art. 83º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção introduzida pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, e do art. 104º, nº 2 do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho' (a fls. 508).
3. Ouvido sobre a questão prévia, suscitada nas contra-alegações, relativamente ao conhecimento da questão de inconstitucionalidade do art. 172º, nº 4, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, veio o recorrente sustentar a sua improcedência, afirmando que não tivera oportunidade de suscitar antes a questão de inconstitucionalidade, sendo a interpretação 'assim engenhada, de tão anómala e inopinada' jamais susceptível de ser conjecturada na petição de recurso por aplicador de direito mínimamente habilitado. No sentido da improcedência, referiu a jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente o acórdão nº 1144/96. No dizer do recorrente, a interpretação por si contestada, 'como foi feita pelo Plenário Geral de T. Contas, integra a sua ratio decidendi', radicando a causa do recurso na
'«decisão» de fls. 400 a qual, e repetindo, em 7 linhas, ocupando a parte decisória menos de 2, abrupte et in limine, não conheceu do mérito do recurso contencioso, com fundamento no nº 4 do art. 172º EMJ' (a fls. 510). Nessa medida, teria sido tempestiva a suscitação da questão de inconstitucionalidade no requerimento de arguição da nulidade da decisão de fls. 400, ainda que tal decisão fosse de qualificar como sentença. Mas, e em qualquer caso, 'a concreta situação seria de haver como da excepção ao ónus de a suscitar até à prolação da decisão final, por absoluta impossibilidade da prévia arguição' (a fls. 512).
4. Nesta resposta à questão prévia, o recorrente suscitou uma excepção de natureza processual atinente à subcrição das contra-alegações do Presidente do Tribunal de Contas. Segundo o seu entendimento, o mandato judicial está, em regra, cometido apenas a advogados inscritos na respectiva Ordem, pelo que o 'pleitear nesta instância judicial está condicionado à obrigatória constituição de advogado, por parte da entidade recorrida, só podendo intervir naquela qualidade quem o puder fazer junto do STJ (art. 83º-1 L 28/82, de
15/11)'. Não poderia, assim, a autoridade recorrida socorrer-se do disposto no nº 3 do art. 83º da Lei do Tribunal Constitucional, 'porque a decisão impugnada não provém dos «tribunais administrativos e fiscais»' (a fls. 513), devendo, por isso, o Tribunal ordenar o necessário para suprir a existente incapacidade de exercício.
Ouvido sobre esta questão de natureza processual, o Presidente do Tribunal de Contas sustentou a legalidade da designação de técnico-jurista para patrocinar aquela autoridade, considerando que, a título subsidiário, era aplicável in casu o disposto na Lei do Processo nos Tribunais Administrativos
(art. 178º do Estatuto dos Magistrados Judiciais), devendo considerar-se legal a remissão para o disposto nos arts. 26º, nº 1, e 104º, nº 2 da referida Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, atento o disposto no nº 3 do art. 83º da Lei do Tribunal Constitucional. Neste requerimento, a autoridade recorrida insurgiu-se contra uma alegada ampliação das razões antes aduzidas pelo recorrente na sua alegação, constante dos arts. 1º a 15º da resposta à questão prévia (a fls. 515 a 518 dos autos).
5. Foram corridos os vistos legais sobre as questões prévias de natureza processual e sobre o fundo.
Importa, por isso, começar por analisar as questões prévias.
II
6. Como as alegações da autoridade recorrida se acham subscritas 'por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico designado para aquele efeito' (cfr. arts. 26º, nº 1, e 104º, nº 2, do Decreto-Lei nº
267/85, de 16 de Julho, Lei do Processo nos Tribunais Administrativos, abreviadamente LPTA), impõe-se começar por dilucidar a questão de saber se se verifica o pressuposto processual de patrocínio judiciário obrigatório relativamente à alegação da autoridade recorrida, atendendo a que tal questão é logicamente antecedente relativamente à do conhecimento da questão prévia, suscitada precisamente nas contra-alegações da autoridade recorrida subscritas pelo referido técnico jurista. De facto, a faltar esse pressuposto de patrocínio judicial obrigatório quanto ao acto processual em causa, exigido pelo art. 83º da Lei do Tribunal Constitucional, teria a respectiva falta de ser suprida nos termos do art. 40º do Código de Processo Civil, aplicável por força da remissão do art. 69º daquela Lei, sob pena de se ter de mandar desentranhar essas contra-alegações.
7. O art. 83º da Lei do Tribunal Constitucional regula o patrocínio judicial obrigatório nos recursos de constitucionalidade, no domínio da fiscalização concreta de constitucionalidade.
O nº 1 do art. 83º estabelece o princípio do patrocínio judiciário obrigatório por advogado, 'sem prejuízo do disposto no nº 3'. E o nº 3 deste artigo estatui o seguinte:
' Nos recursos interpostos de decisões dos tribunais administrativos e fiscais é aplicável o disposto na alínea a) do artigo 73º do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, e nos artigos 104º, nº 2, e 131º, nº 3, do Decreto-Lei nº 267/85, de
16 de Julho' (este número foi aditado pela Lei Orgânica nº 85/89, de 7 de Setembro, que também alterou a redacção do nº 1).
Face a esta disposição, através de uma interpretação meramente literal, o recorrente sustenta que o Presidente do Tribunal de Contas estava obrigado a constituir advogado para subscrever as presentes alegações.
Será assim?
Entende-se que não assiste razão ao recorrente.
Desde logo se nota que o recorrente se prevalece do direito que lhe confere o art. 71º da Lei Orgânica do Ministério Público (Lei nº 47/86, de 15 de Outubro), advogando em causa própria. Ora, afigurar-se-ia, no mínimo, incompreensível que o mesmo recorrente se pudesse prevalecer desse direito estatutário e se impusesse ao Presidente do Tribunal de Contas - cujo estatuto está legalmente equiparado ao do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (art.
40º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, em vigor à data da apresentação das alegações; cfr. hoje os arts. 22º, nº 1, e 24º da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto)
- a obrigação de constituir advogado nos recursos de natureza administrativa ligados ao exercício do seu cargo, quando o mesmo Presidente, em causa própria, dispõe também do direito de advogar (art. 19º do Estatuto dos Magistrados Judiciais) e quando os restantes dirigentes administrativos se podem prevalecer, nos recursos administrativos, do disposto nos arts. 26º, nº 1, e 104º, nº 2, da LPTA.
Impõe-se, por isso, interpretar o nº 3 do art. 83º da Lei do Tribunal Constitucional atendendo não só ao elemento literal, mas também ao teleológico, tendo em conta que o art. 178º do EMJ, aplicável por força da remissão constante do nº 3 do art. 37º da Lei do Tribunal de Contas, mandar aplicar suspletivamente a legislação de contencioso administrativo nestes recursos.
Ora, é inteiramente compreensível que o legislador da Lei do Tribunal Constitucional tenha tido a preocupação de, em 1989, adequar a letra desta lei às inovações constantes do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (abreviadamente ETAF, Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril) e da LPTA, os quais passaram a prever, ao lado do tradicional patrocínio do Estado e entidades públicas pelo Ministério Público (art. 219º, nº 1, da Constituição), o patrocínio, na jurisdição fiscal, do representante da Fazenda Pública e, na jurisdição administrativa, dos licenciados em Direito com funções de apoio jurídico das diferentes pessoas colectivas e órgãos da Administração Pública.
Mas a referência aos casos comuns e normais - isto é, aos meios processuais que se desenrolam nos tribunais administrativos e fiscais - não quis seguramente afastar do patrocínio de outras entidades públicas esses licenciados em Direito com funções de apoio jurídico, quando os respectivos recursos contenciosos hajam de ser interpostos, nos termos da lei, perante outras jurisdições.
Ora, é indisputado que, nos presentes autos, o recorrente interpôs, aliás sob protesto relativamente à competência do Tribunal de Contas, um recurso de natureza administrativa ('recurso contencioso da deliberação do júri... que o graduou em 12º lugar') e requereu a citação, como autoridade recorrida, do Tribunal de Contas, na pessoa do seu Presidente, 'para responder, querendo, e demais efeitos, nos termos do art. 174º do LOMJ [EMJ] e arts. 43º, 44º e 46º LPTA'. Ele próprio poderia ter interposto esse recurso num tribunal administrativo, sustentando aí a inconstitucionalidade da norma atributiva da competência ao Tribunal de Contas, caso em que, indubitavelmente, se aplicariam as normas dos arts. 26º, nº 1, e 104º, nº 2, da LPTA.
8. Não procede, por isso, a excepção de preterição de patrocínio judiciário obrigatório na forma regular visto que as normas dos arts.
26º, nº 1, e 104º, nº 2, da LPTA hão-de ser aplicáveis a este tipo de recursos deduzidos no Tribunal de Contas através de uma dupla e sucessiva remissão (do art. 37º, nº 3, da Lei nº 86/89 e dos arts. 168º e seguintes do Estatuto dos Magistrados Judiciais, maxime do art. 178º deste último diploma), sob pena de se cair no mais profundo ilogismo jurídico.
A improcedência desta excepção é decidida a título provisório, visto estar impugnada a constitucionalidade da norma remissiva do art. 37º, nº 3, da Lei nº 86/89, havendo de aguardar-se a decisão sobre o conhecimento do recurso e, eventualmente, sobre o fundo, a tomar em seguida.
9. Cabe agora abordar outra questão prévia, desta feita a deduzida pelo Presidente do Tribunal de Contas Administrativo.
Como se refere atrás, sustenta a autoridade recorrida que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto do recurso quanto à invocada inconstitucionalidade do art. 174º, nº 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, norma aplicável ao caso sub judicio por força de remissão do art. 37º, nº 3, da Lei nº 86/89, visto que o recorrente não suscitou essa questão durante o processo, podendo e devendo fazê-lo, atendendo a que se estava perante um recurso interposto nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Procederá, então, esta questão prévia?
É o que passa a analisar-se.
10. No caso sub judicio, o recorrente impugnou contenciosamente uma deliberação final do júri de concurso curricular para recrutamento dos juízes do Tribunal de Contas, tomada nos termos dos arts. 35º e
37º, nºs. 1 e 2, da Lei nº 86/89, em vigor na data do concurso e da interposição do recurso administrativo.
O disposto no nº 3 do art. 37º desta Lei - norma cuja constitucionalidade está igualmente impugnada neste recurso, questão de que se abstrai por ora - dispõe que:
' Dos actos definitivos relativos ao concurso e à nomeação dos juízes recorre-se para o plenário geral do Tribunal [de Contas], aplicando-se subsidiariamente o regime de recurso das deliberações do Conselho Superior da Magistratura.'
Por força desta remissão - e porque na Lei nº 86/89 não se encontra regulada de outra forma esta matéria - o referido recurso obedece ao disposto nos arts. 168º e seguintes do EMJ, nomeadamente à regra sobre prazos de interposição (art. 169º), sobre efeitos (art. 170º), sobre modo de interposição
(art. 171º), requisitos do requerimento (art. 172º), questões prévias (art.
173º), resposta da autoridade recorrida (art. 174º) citação dos interessados
(art. 175º), alegações (art. 176º) e julgamento (art. 177º). Ainda por força da remissão do citado art. 37º, nº 3, da Lei nº 86/89, o art. 178º do EMJ dispõe que:
' São subsidiariamente aplicáveis as normas que regem os trâmites processuais dos recursos de contencioso administrativo interpostos para o Supremo Tribunal Administrativo.'
11. No presente recurso o mesmo veio a terminar por uma decisão colegial de natureza processual (não conhecimento do objecto do recurso, por extemporaneidade deste) na fase liminar, antes da notificação à autoridade recorrida para responder ao recurso e antes da citação dos interessados particulares, na sequência do parecer do Ministério Público exarado na vista a este magistrado, nos termos do art. 173º, nº 1, EMJ. Foi então aplicado o nº 3 do art. 173º EMJ, do seguinte teor:
' Quando o relator entender que se verifica extemporaneidade, ilegitimidade das partes ou manifesta ilegalidade do recurso, fará uma breve e fundamentada exposição e apresentará o processo na primeira sessão sem necessidade de vistos.'
Dada a clareza da redacção desta norma, dificilmente se compreendem as afirmações do recorrente de que a decisão do plenário do Tribunal de Contas não era um acórdão, mas um mero despacho do relator.
Este número do referido art. 173º EMJ não prevê a audição do recorrente quanto à exposição do relator, contrariamente ao disposto no art.
54º, nº 2, da LPTA, podendo discutir-se se essa audição deveria ou não ter lugar, por força da remissão do art. 178º EMJ (mas deve notar-se que a rejeição liminar, no Supremo Tribunal Administrativo, compete ao relator - art. 9º, nº 1, alínea b), LPTA).
A verdade, porém, é que, notificado da decisão liminar de não conhecimento do recurso, o ora recorrente não arguiu a eventual nulidade do processo consistente na omissão de tal formalidade de audição, nem suscitou a questão da inconstitucionalidade do nº 3 do art. 173º EMJ, na interpretação perfilhada nessa decisão, limitando-se a arguir nulidades do próprio acórdão do plenário do Tribunal de Contas (requerimento de fls. 410 a 430 - vejam-se em especial os arts. 34º a 37º desse requerimento, bem como os arts. 48º a 54º), as quais foram decididas pelo acórdão de fls. 446 a 456, decisão que não foi objecto, autonomamente, de recurso de constitucionalidade (só foi interposto recurso de constitucionalidade do acórdão de 21 de Dezembro de 1995).
12. Enquadrada processualmente a questão, há então que afrontar a questão prévia suscitada pela autoridade recorrida nos seguintes termos:
' Ora, ocorre que, no caso em apreço, não só o recorrente não invocou, até à prolação da decisão em recurso, como lhe competia, a inconstitucionalidade do nº
2 do art. 174º da Lei nº 21/85, como o Plenário Geral do Tribunal de Contas, ao aplicar o nº 2 do art. 174º da citada Lei, não aplicou norma arguida de inconstitucionalidade durante o processo. Somente depois de lhe haver sido notificada a decisão ora recorrida é que o recorrente, usando uma figura processualmente inidónea - a arguição de nulidade de fls. 410 dos autos -, vem falar de inconstitucionalidade do aludido preceito legal aplicado na decisão de que ora recorre. Devê-lo-ia ter feito antes da prolação da decisão recorrida, nomeadamente na petição inicial, como fez com a invocação da inconstitucionalidade do nº 3 do art. 37º da Lei nº 86/89, logo no artigo 1º daquela peça processual. Como é óbvio, o efeito não pode preceder a causa...' (a fls. 498-499 dos autos)
Contra esta tese - como vimos - o recorrente contrapõe que não tinha o ónus de vaticinar que o plenário do Tribunal de Contas iria aplicar essa norma logo na fase liminar do recurso, sem lhe dar a oportunidade de se pronunciar sobre a questão da tempestividade do recurso, tanto mais que ele considera aplicável ao caso o art. 31º da LPTA.
Que dizer desta oposição de pontos de vista?
Afigura-se que a razão está com a entidade recorrida.
Vejamos porquê.
Antes de mais, cumpre atentar na circunstância de o recorrente - apesar de ter logo suscitado a questão da inconstitucionalidade do art. 37º, nº
3, da Lei nº 86/89 no intróito da sua petição de recurso contencioso ('... invoca-se, por mera cautela, a inconstitucionalidade daquela norma especial para os fins do facultado pelos arts. 277º-1 e 280º-1-b) Const. Rep., uma vez que, por um lado, o conhecimento em matéria de contencioso administrativo cabe à jurisdição administrativa e, pelo outro, de entre as atribuições elencadas na LOTC, não consta qualquer intervenção a esse título') - ter optado por interpor o recurso contencioso no Tribunal de Contas, aceitando, por essa forma, a tramitação processual dos arts. 168º a 178º do EMJ.
Ora, tomando tal opção - em detrimento de outra possível, visto que poderia, em consonância com a tese sobre a inconstitucionalidade por si sustentada, ter optado pela interposição do recurso nos tribunais administrativos - o recorrente deveria ter antecipado que, na fase liminar do recurso e por força do art. 173º, nº 3, EMJ, poderia vir a ser proferida uma decisão do plenário do Tribunal de Contas - na sequência de 'uma breve e fundamentada exposição' do relator - sobre a tempestividade do recurso, sendo certo que o próprio EMJ não contempla expressis verbis a audição do recorrente sobre esse parecer (como se disse atrás, a questão de constitucionalidade desta norma não foi suscitada pelo recorrente, o qual, de resto, não impugnou a decisão proferida sobre a arguição de nulidade de sentença por recurso autónomo de constitucionalidade).
Neste quadro legislativo e porque o recorrente ia apresentar - como, de facto, apresentou - a petição de recurso para além do prazo de 30 dias previsto na lei (art. 169º, nºs. 1 e 2, EMJ) e porque o nº 4 do art. 172º EMJ dispõe que 'se, por motivo justificado, não tiver sido possível obter os documentos dentro do prazo legal, pode ser requerido prazo para a sua ulterior apresentação', sendo certo que o recurso seria interposto para o plenário do Tribunal de Contas (não havendo subsequente órgão jurisdicional ordinário para onde pudesse recorrer das decisões desse plenário), ele tinha o ónus de suscitar, logo na petição de recurso, a inconstitucionalidade de uma interpretação dos arts. 169º e 172º, nº 4, EMJ, que excluísse a aplicabilidade, a título subsidiário, do disposto no art. 31º da LPTA, tanto mais que encontrara resistência por parte do júri de concurso curricular relativamente à passagem de certidão de certos elementos documentais sobre a apreciação dos candidatos, nomeadamente por este júri perfilhar o entendimento de que o recorrente já dispunha de todos os elementos documentais necessários para o recurso e que os tribunais administrativos eram incompetentes para intimarem o júri a disponibilizar outros documentos.
13. A jurisprudência do Tribunal Constitucional, de facto, tem interpretado o disposto nos arts. 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional em termos funcionais e não meramente cronológicos, isto é, considera que não é momento adequado para suscitar uma questão de constitucionalidade, em regra, uma arguição de nulidade subsequente à última decisão do respectivo tribunal, quando não haja recurso ordinário, ou um pedido de aclaração formulado em idênticas circunstâncias, apontando para o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade no momento processualmente adequado.
Por exemplo, no acórdão nº 439/91 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º vol., págs. 587 e seguintes), a propósito de uma acção civil sumaríssima - que comporta, na tramitação legal, apenas dois articulados e em que não está, em regra, previsto recurso ordinário das decisões nela proferidos
- teve ocasião o Tribunal Constitucional de explicitar este entendimento nos seguintes termos:
' Na verdade, este Tribunal tem vindo a entender, num plano conformador da sua jurisprudência genérica sobre este tema, que naqueles casos anómalos em que o recorrente não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade durante o processo, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a matéria a decidir, ainda assim existirá o recurso de constitucionalidade (cfr. os Acórdãos nºs. 136/85 e 479/89, o primeiro no Diário da República, II Série, de 28 de Janeiro de 1986, e o segundo, de 13 de Julho de 1989, triado no Processo nº 288/88 e ainda inédito). Mas em verdade a situação posta no presente processo poderá reconduzir-se à condição de caso excepcional para os efeitos de dispensa daquele pressuposto de admissibilidade, na linha de orientação da jurisprudência deste Tribunal? Seguramente que a resposta há-de ser negativa [...] Deste modo, não pode dizer-se que os reclamantes tinham sido confrontados com a utilização de uma norma de todo em todo «insólita» e «impensável», sobre a qual seria inteiramente desrazoável exigir-se-lhes um prévio juízo de prognose relativo à sua aplicação. Sobre os reclamantes impendia o ónus de avaliarem as diversas e possíveis linhas normativas susceptíveis de serem seguidas na resolução do caso submetido a julgamento, actuando depois em conformidade com o esquema de orientação processual mais adequado à defesa dos seus interesses.'
Nos raros casos em que o Tribunal Constitucional tem considerado verificar-se a dispensa do ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo, ocorreram situações completamente diversas das previstas no presente caso, em que, à partida, o recorrente sabia que tinha ultrapassado o prazo de recurso indicado no EMJ, diploma aplicável por força da remissão primária da Lei Orgânica do Tribunal de Contas.
Assim, no acórdão nº 181/96, ainda inédito, apreciou-se uma situação em que a recorrente foi surpreendida com a interpretação imprevisivel de uma norma que jamais havia estado em discussão com esse sentido interpretativo no decurso do processo. Daí que se houvesse considerado a recorrente como dispensada de suscitar a questão durante o processo:
' Ora, uma tal interpretação daquela norma do artigo 4º, nº 1, b) [do ETAF], revela-se de todo em todo imprevisível, com a atribuição de competência a este Tribunal Constitucional [para conhecer de uma acção de responsabilidade civil contra o Estado], razão por que não era exigível à recorrente que antes de proferido o acórdão recorrido tivesse suscitado uma qualquer questão de inconstitucionalidade, mesmo no plano da aplicação de tal norma com certa via interpretativa. Como se alcança dos autos, o debate estabelecido entre o Ministério Público e a recorrente no recurso de agravo interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, em torno da norma do artigo 4º, nº 1, b) cingiu-se à matéria de competência, em razão da matéria, dos tribunais judiciais e dos tribunais administrativos para conhecer da acção declarativa em causa.' (cfr. outros exemplos na jurisprudência menos recente nos acórdãos nºs. 391/89 e
61/92, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., II, págs.
1367 e segs., e 21º vol., págs. 761 e segs.)
Também no acórdão nº 368/97 (in Diário da República, II Série, nº
238, de 14 de Outubro de 1997), se apreciou uma situação de interpretação judicial de carácter insólito e imprevisível que contrariava 'as expectativas e a própria estratégia processual do reclamante, em termos tais que seria de todo o ponto desrazoável a parte contar com essa interpretação' (em geral sobre a dispensa do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade remete-se para Guilherme da Fonseca e Inês Domingos Breviário de Direito Processual Constitucional, Coimbra, 1997, págs. 40 e seguintes, em especial 46 e seguintes; além da jurisprudência aí citada, refiram-se os acórdãos nºs. 1169/96, in Diário, II, nº 54, de 5 de Março de 1997, 421/97 e 432/97, ainda inéditos).
14. O recorrente invoca, na resposta à questão prévia, o precedente contido no acórdão nº 1144/96 deste Tribunal, mas não tem razão ao fazê-lo. Nesse acórdão analisou-se um caso que foi considerado de dispensa de suscitação da questão de inconstitucionalidade, que não tem paralelo com o caso sub judicio. Escreveu-se nesse acórdão:
' É que, por um lado, não podem ser considerados patentes e manifestos os pressupostos da litispendência em termos de ser legítimo afirmar que a recorrente não poderia razoavelmente deixar de contar com a aplicação pelo acórdão recorrido das normas dos artigos 493º, nº 2, e 494º, nº 1, alínea g) do Código de Processo Civil. Por outro lado, na data em que a recorrente interpôs o recurso [...] ainda não tinha sido proferido o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de Março de 1993, que negou provimento ao primeiro recurso jurisdicional da recorrente e no qual o acórdão recorrido se alicerça para fundamentar a situação de litispendência.' (veja-se ainda um caso em que sobreveio uma norma inovadora na pendência de um recurso no acórdão nº 188/93, ainda inédito)
No caso sub judicio, o quadro factual não se alterou ao longo do processo e o recorrente não podia ignorar que o recurso havia sido interposto para além do prazo de 30 dias previsto no EMJ, sendo a questão prévia da tempestividade de análise liminar na tramitação do recurso (art. 173º, nº 3, EMJ). O recorrente, na petição de recurso, sustentou que a interposição deste era tempestiva, isto é, não se extinguira por caducidade o seu direito de recorrer contenciosamente, dando conta, porém, que o presidente do júri havia considerado incompetente o Tribunal Administrativo de Círculo para intimar esse júri quanto à entrega de documentos ao requerente (art. 15º da petição de recurso). Era, assim, previsível que poderia vir a ser considerado intempestivo o recurso, por aplicação directa dos arts. 169º e 172º, nº 4, EMJ. Ao preconizar a aplicação ao caso do art. 31º da LPTA (art. 96º da petição de recurso), o recorrente tinha o ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidades da norma nº 4 do art. 172º) que, primo conspectu, afastava a aplicação subsidiária daquele art. 31º LPTA (o qual só haveria de ser aplicado a título subsidiário, ex vi art. 178º EMJ).
15. Termos em que se julga procedente a questão prévia suscitada pela autoridade recorrida.
16. Face ao que fica dito, o objecto do presente recurso fica limitado à questão de constitucionalidade do nº 3 do art. 37º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro.
De facto, no requerimento de interposição do recurso de fls. 432, o ora recorrente indicou como objecto do recurso a questão de inconstitucionalidade da norma do nº 3 do art. 37º da referida lei 'por violação do disposto nos arts. 214º, 3 e 216º CRep.', indicando que havia suscitado essa questão na petição do recurso, tendo a questão sido apreciada pelo acórdão do plenário do Tribunal de Contas (no requerimento complemento de fls. 435 esclarece-se que o acórdão impugnado, 'ao vedar o acesso do recorrente à jurisdição administrativa com base na interpretação assim feita, aplicou indevidamente aquele normativo legal, porque desconforme ao estatuído no art.
268º-4 e 5 CRep.').
Nas alegações do recurso e quanto à única norma que subsiste como objecto do mesmo o recorrente coloca a questão da ilegalidade, por violação de normas de leis de valor reforçado (conclusão 2-1, a fls. 488), mas não pode conhecer-se de tal questão por a mesma não ter sido suscitada durante o processo, nem ter sido indicada como fundamento de recurso no requerimento de interposição. Como é sabido, nas conclusões do recurso o recorrente pode restringir o objecto, mas não ampliá-lo (cfr. art. 75º-A, nºs. 1 e 2, da Lei do Tribunal Constitucional e 684º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 69º daquela Lei).
III
17. Como se viu o ora recorrente sustentou durante o processo a inconstitucionalidade do nº 3 do art. 37º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, que estatui o seguinte:
' Dos actos definitivos relativos ao concurso e à nomeação dos juízes recorre-se para o plenário geral do Tribunal, aplicando-se subsidiariamente o regime de recurso das deliberações do Conselho Superior da Magistratura.'
Tratando-se de actos administrativos recorríveis, deveriam - na tese do recorrente - ser competentes para deles conhecer os tribunais administrativos atento o disposto no art. 214º, nº 3, da Constituição (versão resultante da segunda revisão constitucional; tal preceito encontra-se hoje no nº 3 do art.
212º, após a quarta revisão constitucional, mas a norma não sofreu qualquer alteração de redacção). Além disso, a norma em causa ofenderia ainda o princípio de igualdade, criando um foro especial para a impugnação de certos actos administrativos, afectando mesmo a competência 'estabilizada' do tribunal administrativo de círculo e violando a imperatividade das decisões transitadas em julgado.
18. O Tribunal Constitucional tem sido confrontado em outras ocasiões com a questão de saber se a Constituição cria uma reserva absoluta de jurisdição, em matérias administrativas, a favor dos tribunais administrativos.
A partir do acórdão nº 371/94 (in Diário da República, II Série, nº
204, de 3 de Setembro de 1994), de forma cautelosa, o Tribunal Constitucional sustentou que todos os elementos disponíveis apontavam 'para interpretar o artigo 214º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa como direccionado ao julgamento das acções e recursos que versem sobre relações jurídicas administrativas e fiscais litigiosas, não podendo a lei ordinária extravasar para outra coisa que não sejam tais relações, mas sem que isso signifique que, de todo em todo, se tenha impedido relegar para a mesma lei qualquer parcela definidora ou integradora da competência dos tribunais administrativos e fiscais, no que toca a processos executivos' (estava em causa uma execução instaurada nos tribunais fiscais pela Caixa Geral de Depósitos, antes da passagem desta instituição à forma de sociedade anónima regida pelo direito privado; no mesmo sentido, vejam-se os acórdãos nºs. 372/94, no mesmo Diário, nº
207, de 7 de Setembro de 1994, 508/94 e 509/94, ainda no mesmo Diário, nºs. 286 e 287, de 13 e 14 de Dezembro de 1994, respectivamente).
E com base em posições doutrinais sustentadas a propósito do sentido daquele nº 3 do art. 214º, o Tribunal Constitucional acolheu a ideia de que os tribunais administrativos e fiscais não teriam, em absoluto, jurisdição exclusiva no tocante às relações administrativas e fiscais. Assim, a propósito da competência dos tribunais comuns para o processo de expropriação por utilidade pública, o Tribunal Constitucional decidiu que não havia qualquer inconstitucionalidade da norma atributiva dessa competência, baseando-se na tradição jurídica existente de intervenção dos tribunais judiciais nesse domínio:
'Em síntese: sem se tomar posição quanto à consagração ou não aí de uma reserva material absoluta de jurisdição, o certo é que o sentido do nº 3 do artigo 214º da Constituição é o de que ele foi pensado para a fase declarativa da apreciação de acções e recursos administrativos, sendo este o «núcleo caracterizador do modelo», na expressão de Vieira de Andrade.' (esta orientação foi seguida nos acórdãos nºs. 799/96, 927/96, 965/96, 1102/96 e 65/97, de que está publicado apenas o terceiro, in Diário da República, nº 296, de 33 de Dezembro de 1996)
Mais recentemente, o Tribunal Constitucional veio a apreciar a inconstitucionalidade do nº 1 do art. 168º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, julgando que o mesmo não violava a Constituição, nomeadamente o nº 3 do art. 214º (versão da segunda revisão constitucional).
Assim, no acórdão nº 347/97 (publicado no Diário, II Série, nº 170, de 25 de Julho de 1997), o Tribunal Constitucional entendeu que o nº 1 do art.
168º do EMJ (norma que dispõe sobre a competência do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer dos recursos contenciosos interpostos de deliberações do Conselho Superior da Magistratura) não ofendia o nº 3 do referido artigo:
'... a finalidade principal que presidiu à inserção da norma constante do nº 3 do artigo 214º do texto constitucional foi a abolição do carácter facultativo da jurisdição administrativa, e não a consagração de uma reserva de competência absoluta dos tribunais administrativos. Todos estes argumentos confluem para a conclusão de que não existe impedimento constitucional à atribuição pontual e fundamentada de competência aos tribunais judiciais para a apreciação de determinadas questões de natureza administrativa. Assim: o caso, por exemplo, do julgamento dos recursos de aplicação de coimas
(Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro); dos recursos das decisões administrativas em matéria de patentes (artigo 2º do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei nº 16/95, de 24 de Janeiro) e de, em certos casos, o contencioso dos actos dos conservadores no domínio do direito registral e do notariado...'
19. A orientação jurisprudencial acolhida, por último, no acórdão nº 347/97 deve ser transposta para o caso sub judicio.
De facto, à data da segunda revisão constitucional - em que surgiu o novo art. 214º consagrando a obrigatoriedade constitucional de existência de tribunais administrativos e fiscais e estabelecendo a competência dos mesmos - o contencioso administrativo em matérias estatutárias, nomeadamente concursos de ingresso e matérias disciplinares dos juízes das diferentes ordens de tribunais estava reservado aos supremos tribunais da respectiva ordem, sendo, de resto, essa solução tradicional no nosso ordenamento. Bastará referir, ao lado do art.
37º, nº 3, da Lei do Tribunal de Contas (esta publicada já depois da publicação da segunda revisão constitucional), o disposto quanto ao recurso contencioso das deliberações do Conselho Superior da Magistratura (arts. 168º a 178º do EMJ), e quanto ao contencioso das deliberações disciplinares respeitantes aos juízes do Tribunal Constitucional (art. 25º, nº 2, da respectiva Lei Orgânica), para não falar, claro, do regime de recurso das deliberações do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (art. 26º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro).
Por isso se entende que não existe impedimento constitucional à
'atribuição pontual e fundamentada' da competência ao Tribunal de Contas para apreciação - enquanto órgão jurisdicional independente e imparcial - do contencioso administrativo respeitante às deliberações do júri de recrutamento dos seus juízes (a solução foi, de resto, mantida pelo art. 20º, nº 3, da Lei nº
98/97, de 26 de Agosto, nova Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas).
20. Atingida esta conclusão, não importa analisar outros fundamentos de alegada inconstitucionalidade da norma em apreciação (invasão da competência do tribunal administrativo de círculo; violação do princípio da imperatividade das decisões deste tribunal, com referência à invocada decisão de intimação do júri do concurso para entrega de documentos ao recorrente), visto que tais fundamentos de inconstitucionalidade são atinentes à própria decisão recorrida, não tendo a ver com a dimensão interpretativa do referido nº 3 do art. 37º da Lei nº 86/89 que o recorrente impugnou durante o processo.
21. Improcede, assim, o recurso na parte respeitante à invocada inconstitucionalidade do nº 3 do art. 37º da Lei nº 86/89.
22. A conclusão do sentido da não inconstitucionalidade do art. 37º, nº 3, desta Lei implica a confirmação da solução que, a título precário, se havia atrás tomado quanto ao não conhecimento da questão da constitucionalidade do nº 4 do art. 172º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, disposição aplicada no acórdão recorrido por força da remissão precisamente daquela primeira norma.
IV
23. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional: a) julgar improcedente a excepção de preterição de patrocinio judiciário obrigatório relativamente à subscrição da contra-alegação da autoridade recorrida; b) conceder atendimento à questão prévia suscitada pela autoridade recorrida quanto ao não conhecimento da questão de constitucionalidade do nº 4 do art.
172º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, suscitada pelo recorrente, por falta dos necessários pressupostos processuais; c) negar provimento ao recurso relativamente à invocada inconstitucionalidade do nº 3 do art. 37º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro.
Lisboa, 5 de Março de 1998 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa