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Processo n.º 77/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
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Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. No Tribunal Judicial de Braga foi, em 10 de janeiro de 2011, proferida sentença no processo de insolvência de pessoa singular que A. requereu contra B. e mulher, C., na qual se decidiu, em suma, «a) Desaplicar, por inconstitucionalidade material (violação do principio da indefesa), o art. 8.º, n.º 1, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, na interpretação de acordo com a qual tal norma signifique, em todos os casos, mesmo colocando em causa o direito à tutela jurisdicional efetiva, a proibição da suspensão da instância nos casos previstos no art. 279.º, n.º 1, do C.P.C.; b) Determinar, nos termos do disposto no art. 279.º, n.º 1, do C.P.C., a suspensão da presente instância até trânsito em julgado da decisão a proferir nos autos de ação declarativa ordinária que corre termos na Vara Mista deste Tribunal sob o n.º 3438/I0.1TBBRG (4)».
Notificado, o representante do Ministério Público naquele tribunal recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro (LTC), pretendendo ver apreciada a questão da inconstitucionalidade da norma desaplicada. Recebido o recurso, o Ministério Publico alegou e concluiu:
1.º – O processo de insolvência tem natureza urgente (artigo 9º do CIRE)
2.º – A natureza e especificidade própria daquele processo admitem que nele, as exigências quanto à prova, possam, eventualmente, ser menores que no processo declarativo comum.
3.º – Havendo possibilidade de, no processo, os requeridos questionarem a validade de uma transação invocada pelo requerente e apresentar a prova que reputam de pertinente – apesar de correr também uma ação declarativa com esse objeto – o Juiz, a final, deverá estar habilitado a proferir decisão, declarando a insolvência, ou indeferindo o pedido.
4.º – Assim, a norma do n.º 1 do artigo 8º do CIRE, ao admitir a suspensão da instância apenas nos casos previstos nesse Código, não é inconstitucional por violação do artigo 20º, nº 1, da Constituição.
5.º – Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso.
A recorrida não apresentou contra-alegação.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
2. O tribunal recorrido desaplicou a norma do artigo 8º n.º 1 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março, alterado pelo Decreto-Lei 200/2004, de 18 de agosto, que proíbe, «mesmo colocando em causa o direito à tutela jurisdicional efetiva», a suspensão da instância nos casos previstos no artigo 279º n.º 1 do Código de Processo Civil. Porém, como salta à vista, esta enunciação não corresponde à real determinação jurídica da norma em questão, pois incorpora o motivo que o tribunal recorrido julgou encontrar para justificar a desconformidade que a tornaria inconstitucional. Tal adjetivação, ou outras que é possível encontrar em casos semelhantes, deve ser arredada da norma, na análise da questão de inconstitucionalidade, pois esta consiste em determinar se a vinculação jurídica em causa representa, realmente, a invocada violação «do direito à tutela jurisdicional efetiva», isto é, se ocorre a alegada violação de norma ou princípio constitucional que a faça incorrer em vício de inconstitucionalidade.
O objeto do recurso consiste, portanto, na norma do artigo 8º n.º 1 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), na parte em que proíbe a suspensão da instância nos casos previstos no artigo 279º n.º 1 do Código de Processo Civil.
3. A sentença, no que agora interessa considerar, diz o seguinte:
[...] Sucede, entende o Tribunal, que no jogo, ou mesmo antagonismo, entre as exigências de celeridade processual contempladas nesta norma e as da justiça e acerto da decisão, deverá ser também ponderado o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva e proibição da indefesa, consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa. Um dos direitos consagrados nesta norma constitucional é o direito de acesso aos tribunais, o qual compreende, enquanto «subdireito», o direito de ação, o qual, por sua vez, se há de efetivar através de um processo equitativo, enquanto processo «materialmente informado pelos princípios materiais de justiça nos vários momentos processuais», incluindo o «direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte...» e «o direito à prova, isto é, à apresentação de provas destinadas a demonstrar e provar os factos alegados em juízo; (8) direito a um processo orientado a uma justiça material sem demasiadas peias formalísticas» (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa – Anotada”, Coimbra Editora, 4 Edição, págs. 414 a 416). E, conforme tem sido consistentemente entendido pelo Tribunal Constitucional, a violação do princípio da proibição da indefesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efetivos para os seus interesses.
Ora, a requerente, ao intentar o presente requerimento de insolvência, invocando uma transação que, como sabia já na data em que o intenta, estava sujeita a uma ação destinada à sua anulação, coloca, por força da especial tramitação do processo de insolvência, a requerida mulher (autora na ação de anulação), numa situação de indefesa, por lhe estar vedado o recurso a meios de prova que pode usar livremente naquela outra ação, cujo objeto é, como acima se disse, instrumental, ou pré-requisito para a decisão da presente ação. Na verdade, conforme já se escreveu (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo 1489/09.7TYLSB.Ll-7. embora seguindo uma forma diversa de abordar o problema), «por força dos princípios de urgência e celeridade que lhe subjaz, o processo [de insolvência] não atribui às partes as garantias de um processo declarativo comum».
A única forma de assegurar essa defesa, de forma completa e eficaz, de acordo com os princípios gerais do processo, é garantir que o processo onde se discute – com todas as garantias – a questão prejudicial, siga os seus termos, suspendendo-se a presente instância até à decisão daquele, com trânsito em julgado, ou seja, aplicando o princípio do art. 279.º, nº 1, do C.P.C., aplicação essa vedada, por sua vez, pelo art. 8º, nº 1, do CIRE, por implicar uma suspensão da instância não expressamente prevista na regulação do processo de insolvência. A prosseguirem os presentes autos os seus termos, estaria irremediavelmente perdida a possibilidade de exercício, por parte da requerida mulher, dos direitos mencionados no parágrafo anterior, caso viesse a ser decretada a sua insolvência.
Sublinhe-se que, ao abrigo do princípio da proibição das «decisões surpresa», consagrado no art. 3.º, nº 3, do C.P.C., foram as partes do presente processo previamente ouvidas quanto à intenção do Tribunal em decidir nos termos expostos, nada tendo, em contrário, alegado.
Por tudo o exposto, neste caso concreto, em conformidade com o referido art. 20.º, da Constituição da República Portuguesa, decide-se:
a) Desaplicar, por inconstitucionalidade material (violação do principio da indefesa), o art. 8.º, n.º 1, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, na interpretação de acordo com a qual tal norma signifique, em todos os casos, mesmo colocando em causa o direito à tutela jurisdicional efetiva, a proibição da suspensão da instância nos casos previstos no art. 279.º, n.º 1, do C.P.C.;
b) Determinar, nos termos do disposto no art. 279.º, n.º 1, do C.P.C., a suspensão da presente instância até trânsito em julgado da decisão a proferir nos autos de ação declarativa ordinária que corre termos na Vara Mista deste Tribunal sob o no 3438/I0.1TBBRG (4). [...]
4. A norma em causa possui a seguinte redação:
Artigo 8º
Suspensão da instância e prejudicialidade
1 - A instância do processo de insolvência não é passível de suspensão, exceto nos casos expressamente previstos neste Código.
...
O tribunal a quo considerou que a norma em causa, interpretada no sentido de que significa a proibição da suspensão da instância nos casos previstos no artigo 279º n.º 1 do Código de Processo Civil padecia de inconstitucionalidade material, por violação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva e proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º da Constituição.
5. Importa começar por recordar os contornos do presente caso.
A requerente do processo de insolvência invocou ser titular de um crédito sobre os requeridos, no valor de 130.000 Euros, alegando, entre o mais, que em processo de falência anteriormente intentado contra os requeridos, tinha ocorrido uma transação, homologada por sentença transitada em julgado, que não fora cumprida. No entanto, a requerida mulher invocou que a referida transação era nula. Nesse seguimento, intentou ação declarativa de condenação, na qual pedia que fosse declarada a nulidade da transação homologada por sentença.
Só posteriormente a requerente veio intentar ação de insolvência. O juiz do processo de insolvência considerou que na ação declarativa se iria discutir uma questão prejudicial da questão de insolvência. No entanto, nos termos da norma objeto do recurso – artigo 8º, nº 1, do CIRE –, não seria possível suspender a instância no processo de insolvência, já que essa não era uma das hipóteses expressamente previstas na regulação do processo de insolvência, pelo que estaria vedada a aplicação do artigo 279º nº 1 do C.P.C.. Considerou o juiz que, ao não ser possível a suspensão da instância até decisão da referida questão prejudicial, a requerida mulher não teria a possibilidade de provar os factos alegados relativos à validade da transação, pelo que o artigo 8.º, n.º1 do CIRE, na interpretação de acordo com a qual tal norma significa sempre a proibição da suspensão da instância fora os casos previstos no próprio diploma, padeceria de inconstitucionalidade material. Em causa estaria a violação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva e proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º da Constituição.
Na análise da presente questão importa sublinhar, desde logo, que não incumbe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a qualificação da questão relativa à validade da transação homologada como “questão prejudicial do processo de insolvência”. Incumbe apenas sindicar se a norma objeto do presente recurso – na medida em que não permite a suspensão da instância – viola a Constituição, nomeadamente o princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no seu artigo 20º. O que importa saber é se, não permitindo a suspensão da instância no presente contexto, a norma em causa coarta de forma inadmissível os direitos de defesa das partes.
6. O n.º 1 do artigo 8º é uma norma inovatória introduzida pelo CIRE, pois não constava qualquer determinação nesse sentido no diploma por ele revogado, o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-lei n.º 132/93 de 23 de abril. O novo diploma pretendeu atribuir maior celeridade ao processo de insolvência, como se pode ler no preâmbulo (n.º 12 e 15) do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, que aprovou o CIRE.
O objetivo da celeridade adquire, no processo de insolvência, uma dimensão de primeiro plano (MENEZES CORDEIRO “Introdução ao Direito da Insolvência”, O Direito, 137.º, 2005, III, p. 479), que se justifica por duas ordens de razões; em primeiro lugar, devido à situação de incerteza que caracteriza o estado do património envolvido durante o processo de insolvência; em segundo lugar, devido à natureza do próprio processo de insolvência, que é uma execução universal que envolve inúmeros interesses contrapostos: o do insolvente, porventura interessado em retardar ou evitar a insolvência, os dos diferentes credores, marcados por objetivos concorrentes e muitas vezes antagónicos e, ainda, o interesse de terceiros, que aspiram à normal prossecução da sua atividade, sem serem afetados por operações falimentares que venham a ocorrer no futuro.
Tendo presente as várias posições em conflito, a ordem jurídica optou claramente pela celeridade na obtenção da sentença final nesses processos, preocupação que se concretizou, por exemplo, na simplificação do respetivo procedimento; o CIRE qualifica o processo de insolvência como processo urgente, submetido a um regime processual expedito, gozando de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal. A celeridade justifica ainda a limitação da possibilidade de suspensão da instância, que permitiria, inevitavelmente, alongar o decurso do processo.
7. O Tribunal Constitucional reconheceu já várias vezes que a natureza específica do processo de insolvência poderia justificar a previsão de desvios às normas processuais gerais.
Foi a natureza urgente dos processos decorrentes das especificidades do processo falimentar que levou o Tribunal a não considerar inconstitucionais determinadas normas do anterior CPEREF, conforme, por exemplo, se decidiu no Acórdão n.º 178/2007, que não julgou inconstitucionais as normas dos artigos 20º, n.º 3, 188º, n.º 1 e 205º daquele Código, na interpretação segundo a qual “no caso específico do credor hipotecário, tabularmente inscrito em relação a um imóvel constante do ativo da massa falida, dispensa a sua citação pessoal, contando-se o prazo para a reclamação de créditos ou propositura da ação a partir dos anúncios publicados, mesmo que o credor deles não tenha conhecimento”. Diz o aresto:
“Tendo o processo, por determinação constitucional (art.º 20.º, n.ºs 1, 4 e 5 da CRP), de ser equitativo e propiciar uma tutela plena, efetiva e em tempo útil, dos concretos direitos, liberdades e garantias pessoais, sobre os quais exista litígio ou simplesmente ameaça dele, há de o mesmo de ser o adequado para a obtenção da específica tutela que decorre da titularidade dos específicos direitos, liberdades ou garantias pessoais que estejam em causa.
A ser assim, há de reconhecer-se ao legislador ordinário uma margem de ponderação constitutiva sobre o modo como deve ser desenhado o figurino processual adequado à efetivação jurisdicional da tutela própria dos específicos direitos ou interesses legalmente protegidos.
Não pode, pois, defender-se, sem mais, que certas regras ou até institutos jurídico-processuais, que foram constituídos pelo legislador para dar resposta a certas exigências, até de matriz constitucional, postulados pela natureza específica dos direitos que são objeto de discussão no processo, devam ser igualmente adotados em outras formas ou espécies de processo diferentes, eles próprios estruturados para dar resposta a diferentes exigências dos direitos que neles se discutem”.
(…)
se a celeridade processual constitui uma dimensão do direito de acesso aos tribunais (cf. art.º 20.º, n.º 5, da CRP) e por isso deve estar presente na configuração de todo o processo judicial, a necessidade da sua prossecução não deixa de assumir, no processo de falência, uma maior intensidade, na medida em que é suscetível de atingir e de se repercutir na esfera jurídico-económica de um maior universo de credores e se impõe, aí, a tomada de medidas urgentes de apreensão, de conservação e de venda de bens
(…)
A específica natureza da tutela jurisdicional que é dispensada aos direitos e interesses legalmente protegidos no processo de falência não impede que o legislador tenha considerado, ao invés do juízo que fez na execução singular, que o meio mais adequado para propiciar, em relação a todos os credores, incluindo os titulares de direitos reais de garantia, o conhecimento da declaração judicial de falência e de que deve, se o quiser, deduzir a sua reclamação de créditos, seja a publicação da sentença declaratória de falência no Diário da República”.
Ainda no sentido de que a natureza do processo de insolvência permite ter por justificadas certas especificidades, é de referir o Acórdão n.º 50/2009 [Diário da República, IIª Série, 27 de fevereiro de 2009] em que estava em causa a norma do CIRE (artigo 120º) que alargou, em relação ao que dispunha o CPEREF, o campo de aplicação da figura da resolução de atos prejudiciais à massa falida, em situações que anteriormente apenas admitiam o recurso à ação de impugnação pauliana pelo liquidatário ou por qualquer credor em benefício comum.
O regime especial do processo de insolvência salvaguarda, aliás, um interesse constitucionalmente tutelado; é que o direito à tutela jurisdicional efetiva implica a previsão pelo legislador de procedimentos que possibilitem uma decisão em prazo razoável e se caracterizem pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
8. É certo que a natural especificidade do processo e a necessidade de celeridade não podem constitucionalmente justificar toda e qualquer solução legislativa ditada com tais objetivos. O Acórdão n.º 556/2008 (Diário da República, IIª Série, de 20 de janeiro de 2009) julgou inconstitucional a norma do artigo 30º, n.º 2, do CIRE na interpretação segundo a qual deve ser desentranhada a oposição que não se mostra acompanhada da informação sobre a identidade dos cinco maiores credores do requerido, sem que a este seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência. O Tribunal considerou que a cominação estabelecida pelo Código para a falta de indicação pelo requerente dos credores a citar, que tinha como consequência a confissão dos factos alegados na petição inicial, retirava à parte demandada a possibilidade da sua defesa ser valorada, sendo, por isso, inadmissivelmente desproporcionada; considerou, por isso, violada a exigência do processo equitativo, resultante do artigo 20.º, n.º 4 da Constituição.
Em suma, como se afirmou no já citado Acórdão n.º 178/2007, as exigências de celeridade não podem ser de tal ordem que se revelem desproporcionais e violadoras do direito de acesso aos tribunais:
“O direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e obtenção de uma sua tutela jurisdicional, plena e efetiva, constitui um direito ou garantia fundamental que se encontra consagrada no art.º 20.º da Constituição. Mas daí não decorre que seja um direito absoluto, de uso incondicionado. Desde logo, ele consente as restrições que caibam nos parâmetros estabelecidos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 18.º da CRP. Por outro lado, decorre da própria previsão constitucional que a tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos seja efetuada “mediante um processo equitativo” e cujos procedimentos possibilitem uma decisão em prazo razoável e sejam “caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos” que esse direito, além do mais, está sujeito a regras ou condicionamentos procedimentais e a prazos razoáveis de ação ou de recurso.
Ponto é que esses condicionamentos, pressupostos e prazos não se revelem desnecessários, desadequados, irrazoáveis ou arbitrários, e que não diminuam a extensão e o alcance do conteúdo desse direito fundamental de acesso aos tribunais”.
Aceitando-se, como princípio, que no processo de insolvência são justificáveis, em nome da celeridade, “desvios” em relação ao processo comum, a questão reside em saber se o “desvio” em causa é constitucionalmente tolerável, face ao princípio consagrado no artigo 20º, n.º1, da Constituição.
Importa, assim, determinar se a norma ínsita no n.º 1 do artigo 8.º do CIRE, ao não admitir a suspensão da instância dos processos de insolvência em caso de surgimento de “questões prejudiciais”, viola o artigo 20º n.º 1 da Constituição. Foi esse o entendimento do juiz a quo, que considerou que a suspensão da instância para o julgamento da questão prejudicial era a única forma de assegurar o respeito pelas garantias de defesa da requerida.
Deverá, em consequência, apurar-se se a norma arrasta a privação do direito de defesa do requerido.
9. Um dos direitos consagrados no artigo 20º da Constituição é o direito de acesso aos tribunais, o qual compreende o direito de ação, que, por sua vez, se há de efetivar através de um processo equitativo, enquanto processo materialmente informado pelos princípios materiais de justiça nos vários momentos processuais (assim, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 415). O Tribunal Constitucional já afirmou por diversas vezes que o princípio do processo equitativo postula “a efetividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas” (JORGE MIRANDA, RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 192). Assim, entre muitos outros, o Acórdão n.º 358/98, in Diário da República, IIª Série, de 17 de julho de 1998, e o Acórdão n.º 259/00, in Diário da República, IIª Série, de 7 de novembro de 2000). O direito ao contraditório deve enformar qualquer processo, quer os processos de natureza declarativa – em que cada uma das partes deve expor as suas razões perante o tribunal em condições que a não desfavoreça, em confronto com a parte contrária –, quer ainda nos processos executivos, através do mecanismo da oposição à execução (Acórdão n.º 335/95, publicado no Diário da República, IIª Série, de 29 de julho de 1995).
O direito ao contraditório traduz-se, fundamentalmente, na possibilidade de cada uma das partes poder exercer uma influência efetiva no desenvolvimento do processo, oferecer provas e controlar as provas da outra parte, e invocar razões de facto e de direito antes de o tribunal decidir a questão. É esse o conteúdo constitucionalmente exigido do direito à defesa e ao contraditório. Da Constituição não decorre a exigência de que o exercício dos referidos direitos se tenha de processar através de um concreto mecanismo processual específico, como a obrigatória suspensão da instância perante questões prejudiciais. O Tribunal tem sublinhado que a Constituição não impõe um determinado modelo concreto de processo, reconhecendo ao legislador liberdade constitutiva na concretização do princípio do contraditório e da proibição da indefesa. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 222/90 (Diário da República, IIª Série, 20 de junho de 1990):
“[...] não podendo extrair-se dela um determinado «modelo» de processo civil, que o legislador esteja adstrito a adotar segue-se que não pode deixar de reconhecer-se a este (ao legislador) uma «liberdade constitutiva» muito ampla para decidir, segundo razões de eficácia (isto é, sobretudo, de utilidade e celeridade) processual, dos casos e situações em que a efetividade de uma audiência deve ou pode ser dispensada. Por isso, só verdadeiramente onde a escolha legislativa a esse propósito se mostrar ostensiva e decididamente incompatível com as exigências de um cabal contraditório (onde ela acabava por postergá-lo por inteiro, ou não consinta uma sua efetivação minimamente aceitável) será legítimo censurá-la de um ponto de vista constitucional, com a consequência própria dessa censura”.
O que é decisivo é que à parte seja dada a possibilidade de alegar, apresentar provas e contraditar factos que sejam determinantes para a decisão final, pois o legislador não está vinculado a prever um determinado meio específico – designadamente, a suspensão da instância – para efetivar esse direito fundamental das partes. Na verdade, a não admissibilidade da suspensão da instância em caso de ocorrência de questões prejudiciais não viola, só por si, o direito de defesa e de contraditório. O que importa saber é se, não sendo admissível essa suspensão, ainda assim é salvaguardado o exercício do direito de defesa e do contraditório no processo de insolvência através de outros mecanismos, ou se apenas aquele se afigurava suscetível de salvaguardar adequadamente esse direito, o que impõe averiguar se, no processo de insolvência, as partes podem exercer efetivamente o seu direito ao contraditório.
10. O processo de insolvência, apesar de ser considerado uma execução, apresenta-se como um processo de elevada complexidade, envolvendo múltiplas atividades repartidas pela sua fase declarativa (a inicial, em que é permitida a oposição) e a executiva (MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, Almedina, 2009, p. 19). O legislador previu a reserva de decisão jurisdicional dos pontos litigiosos que se apresentem no decurso do processo, pelo que o Tribunal está vinculado a solucionar os múltiplos pleitos secundários que podem surgir no decurso do processo, com respeito pelo contraditório e pela produção da prova que considere necessária. Estando em causa um crédito que se revela litigioso, a decisão do juiz pode ter em consideração a questão da validade da transação invocada pela requerente; trata-se de questão a ser apreciada pelo juiz para declarar a insolvência (artigo 36º) ou indeferir o pedido (artigo 44º).
E a verdade é que o CIRE prevê um mecanismo que permite ao devedor questionar a validade da referida transação e apresentar prova. Trata-se do mecanismo previsto no artigo 30º n.º 3 do CIRE, nos termos do qual o devedor pode deduzir oposição à declaração de insolvência, oferecendo os meios de prova de que disponha. É certo que essa norma refere que a oposição se pode basear na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na inexistência da situação de insolvência. Mas a norma não impõe uma limitação taxativa dos fundamentos da oposição; conforme afirmam LUÍS CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, a oposição pode ser fundada “alternativa ou conjugadamente na não verificação do facto-índice em que o autor baseia o pedido ou na inexistência de uma situação de insolvência”. O preceito não visa, por isso, limitar os meios de defesa do devedor, mas sim “afirmar que ao devedor é dado alegar e provar somente a inexistência do facto fundamentante sem simultaneamente ter de demonstrar a sua solvabilidade”. Deste modo, não é negada ao devedor a possibilidade de sustentar a sua oposição na invocação de exceções dilatórias insupríveis ou mesmo na inexistência de créditos que o autor se arroga para fundamentar a sua legitimidade (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Iuris, 2008, p. 171. No mesmo sentido, MENEZES LEITÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 4ª Edição, Almedina, 2008, p. 79 e Direito da Insolvência…, cit., p. 143).
O devedor poderá, assim, fundamentar a sua oposição na nulidade de uma transação na qual assenta o pedido de insolvência. Existindo oposição do devedor, será realizada audiência de discussão e julgamento, pelo que o tribunal não está impedido de conhecer da validade da referida transação e, eventualmente, indeferir o pedido, nos termos do artigo 44.º do CIRE.
11. A sentença afirma que, a não ser possível a suspensão, a requerida fica colocada “numa situação de indefesa, por lhe estar vedado o recurso a meios de prova que pode usar livremente” na ação de anulação da transação.
É certo que, por confronto com a tramitação a seguir na ação de anulação, é mais simples (e mais célere) a que corresponde à oposição. Da conjugação entre o nº 1 do artigo 40º e o nº 2 do artigo 25º do CIRE resulta que o devedor dispõe do prazo de 10 dias para a deduzir, que “deve ainda oferecer todos os meios de prova de que disponha, ficando obrigado a apresentar as testemunhas arroladas, cujo número não pode exceder os limites previstos no artigo 789º do Código de Processo Civil”, ou seja, os que valem para o processo sumário de declaração.
Recorde-se que, desde o Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de março, a oposição à execução passou a seguir “os termos do processo sumário de declaração” (nº 2 do artigo 817º do Código de Processo Civil), num propósito evidente de simplificação e de celeridade, objetivos manifestamente mais prementes em processo de insolvência.
Ora, os termos em que a oposição é regulada, particularmente no que à prova diz respeito, não justificam de forma alguma a conclusão retirada pela sentença. Como se escreveu no acórdão n.º 286/11 deste Tribunal [Diário da República., IIª Série, de 19 de julho de 2011], “O princípio da proibição da indefesa, ínsito no direito fundamental de acesso à justiça, tem sido caracterizado pelo Tribunal Constitucional como a proibição da “privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito'. No Acórdão n.º 353/08 (Diário da República, IIª Série, de 11 de agosto de 2008) refere o Tribunal:
“O Tribunal tem entendido o contraditório, exigido no artigo 20.º da Constituição, essencialmente, como o direito de ser ouvido em juízo, do qual retira uma genérica proibição de indefesa, isto é, a proibição da limitação intolerável do direito de defesa do cidadão perante o tribunal onde se discutem questões que lhe dizem respeito”.
Mas o Tribunal tem feito sentir a necessidade de ponderar a preocupação de garantir o acesso ao tribunal para permitir o contraditório, com outros princípios processuais. Afirmou-se no Acórdão n.º 20/2010, (Diário da República, IIª Série, de 22 de fevereiro de 2010):
“Da estrutura complexa que detém o princípio do processo equitativo, consagrado no artigo 20.º da Constituição, decorrem, para o legislador ordinário, para além da obrigação que se cifra em não lesar o princípio da 'proibição da indefesa', a obrigação de conformar o processo de modo tal que através dele se possa efetivamente exercer o direito a uma solução jurídica dos conflitos, obtida em tempo razoável e com todas as garantias de imparcialidade e independência, existindo à partida, entre os valores da 'proibição da indefesa' e do contraditório e os princípios da celeridade processual, da segurança e da paz jurídica, uma relação de equivalência constitucional, devendo o legislador optar por soluções de concordância prática, de tal modo que das suas escolhas não resulte o sacrifício unilateral de nenhum dos valores em conflito, em benefício exclusivo de outro ou de outros”
Este critério foi respeitado pela solução encontrada. A natureza urgente do processo de insolvência é por si só suficiente para justificar as diferenças existentes em matéria de prova, por confronto com o regime aplicável à ação de anulação, e que se reconduzem ao momento de junção dos meios de prova, à apresentação das testemunhas e ao respetivo número. São limitações claramente adequadas ao objetivo prosseguido.
O regime do processo de insolvência prevê, em suma, mecanismos processuais que permitem efetivar o direito à defesa e ao contraditório, possibilitando, assim, à requerida questionar a validade de uma transação invocada pelo credor e apresentar a prova pertinente, e permitindo ao juiz ter em conta os factos alegados e provados para proferir a decisão. Ou seja, o mecanismo da suspensão da instância, afastado pelo artigo 8.º do CIRE, não se afigura como o único meio processual que permite à requerida alegar e apresentar prova relativa à validade da transação, uma vez que se mostra devidamente salvaguardado o princípio da tutela jurisdicional efetiva. A norma em causa não traduz, enfim, uma restrição constitucional inadmissível.
12. Nestes termos, o Tribunal decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 8º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004 de 18 de março, na parte em que proíbe a suspensão da instância nos casos previstos no n.º 1 do artigo 279º do Código de Processo Civil;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso;
c) Determinar a reformulação da sentença, de acordo com o julgamento de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 22 de maio de 2012.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.