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Proc.Nº 92/97 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida (Consº Ribeiro Mendes)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1. - V..., soldado da Brigada de Trânsito da GNR, veio a ser condenado no Tribunal Militar Territorial de Tomar, por acórdão de 21 de Março de 1996, na pena de 10 meses de presídio militar, em cúmulo, pela prática de dois crimes previstos e punidos pelo art. 88º do Código de Justiça Militar por se ter provado que tinha agredido dois menores à coronhada, na sequência de uma acção de fiscalização de trânsito. O acórdão recorrido contém uma fundamentação do julgamento da matéria de facto inspirada no artigo 374º, nº 2, do Codigo de Processo Penal.
2. - Inconformado, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal Militar. Na motivação do recurso suscitou as seguintes questões de inconstitucionalidade: a) - art. 408º do Código de Justiça Militar (adiante,CJM) por violação do art.
32º, nº 1, da Constituição; b) - art. 418º, nº 1, do CJM por violação do art. 32º, nº 1 da Constituição; c) - Normas do Capítulo III, do Título I, do Livro I do CJM, por violação do art. 13º da Constituição; bem como arguíu a nulidade, prevista na alínea c) do artigo 458º do mesmo Código, reultante de deficiência, obscuridade ou contradição no julgamento da matéria de facto, embora sem identificar em concreto o vício em face dos termos da decisão recorrida. No entanto, o STM houve por bem conhecer oficiosamente dessa invocação e, por entender, tendo em conta o disposto no artigo 418º, nº 2, do mesmo Código, que efectivamente se verificava obscuridade no acórdão sob recurso, anulou o julgamento.
Novamente no Tribunal Militar Territorial de Tomar foi o arguido condenado na mesma pena, e novamente recorreu para o STM, mantendo os fundamentos do anterior recurso. Mas desta vez viu negado provimento à sua pretensão, tendo sido confirmada a decisão recorrida, por acórdão de 16 de Janeiro de 1997.
4. - Notificado deste acórdão, interpôs o recorrente recurso de constitucionalidade, quanto às normas impugnadas na motivação, indicando que o fazia ao abrigo das alíneas b) e g) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
O recurso foi admitido.
5. - Após a subida ao Tribunal Constitucional, o relator convidou o recorrente a esclarecer o requerimento de interposição do recurso
(art. 75º-A, LTC), tendo o recorrente dito que o recurso baseado na alínea g) se referia ao acórdão nº 401/91, proferido a propósito do art. 665º CPP 1929.
6. - Nas alegações do seu recurso, o arguido manteve a tese de que estavam afectadas de inconstitucionalidade as normas anteriormente impugnadas durante o processo.
O Ministério Público, por seu turno, entendeu que não devia o Tribunal Constitucional tomar conhecimento das questões de inconstitucionalidade quanto às normas do Capítulo III, do Título I do Livro I, CJM (arts. 24º a 52º), por não terem sido suscitadas durante o processo, de forma adequada. Preconizou que o recurso devia improceder quanto às inconstitucionalidades dos arts. 408º e 418º, nº 1, C.J.M..
7. - Ouvido o recorrente sobre a questão prévia suscitada, nada disse.
8. - Por não ter colhido vencimento a proposta de solução apresentada em memorando inicialmente elaborado, vericou-se mudança de relator, pelo que cumpre agora conhecer e decidir quer a questão prévia quer o mérito. II - FUNDAMENTOS:
9. - Relativamente à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, deve a mesma ser atendida.
De facto, e no que toca à impugnação das normas do referido Capítulo III do Título I do Livro I C.J.M., não só o recorrente não suscitou, de forma clara e adequada, a questão de inconstitucionalidade da norma que, do seu ponto de vista, impede que, em processo penal militar, seja aplicado o regime mais favorável do direito penal comum (art. 50º, nº 1, do Código Penal
- no fundo, o recorrente pretendia que lhe fosse aplicado o instituto de suspensão da pena ou de conversão da pena de presídio em pena de multa) - como também o Supremo Tribunal Militar não aplicou essa pretensa norma impeditiva, tendo, pelo contrário, mantido a pena aplicada ao recorrente, que considerou ajustada.
10. - Quanto à apreciação do mérito do recurso, que vai incidir sobre as normas constantes dos artigos 408º e 418º, nº 1, do CJM, importa começar por referir que o Tribunal, por esta secção, proferiu recentemente o acórdão nº 126/98, de 5 de Fevereiro, ainda inédito, em que concluiu pela não inconstitucionalidade das normas em questão.
Nesse Acórdão, pronunciando-se sobre o artigo 408º do CJM, que alegadamente, como se refere nas conclusões das alegações, seria contrário ao artigo 32º, nº 1, da Constituição 'por não permitir a documentação de declarações orais', o Tribunal, fundamentou a conclusão que alcançou na doutrina constante do Acórdão nº 234/93 (publicado no 'Diário da República', II Série, de 2 de Junho de 1993). Desse acórdão de 1993 atente-se no seguinte trecho:
'[...]o Supremo Tribunal de Justiça não pode realizar quaisquer diligências de prova, substituindo-se ao tribunal recorrido: o que faz é ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, relativo à totalidade da causa ou às questões concretas que indicar, julgamento esse que incumbe ao tribunal de categoria e composição idênticas ao tribunal a quo que se encontrar mais próximo
(artigos 426º e 436º do Código de Processo penal).
Mas, se assim é, as declarações documentadas na acta da audiência não podem ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo que não se destinam
à apreciação do recurso. Poderão antes, como já foi sugerido, servir, por exemplo, de base à elaboração do acórdão pelo próprio tribunal colectivo ou do júri, particularmente nos julgamentos mais complexos, em que a audiência se prolongue por vários dias, semanas ou até meses.
Mas se as declarações documentadas nos autos nunca podem ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, então o facto de o tribunal de 1ª instância as documentar ou não, por dispor ou não de meios técnicos adequados, em nada prejudicará a observância do princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto: se o Supremo Tribunal de Justiça concluir pela necessidade de reenvio do processo, indicará oficiosamente que diligências de prova deverão ser realizadas no novo julgamento a efectuar nos termos dos referidos artigos 426º e
436º do Código de Processo Penal; também não cria qualquer desigualdade, já que os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça são sempre os mesmos, independentemente da existência, ou não, de documentação da prova.'
Estas considerações, que naquele Acórdão nº 234/93 conduziram à constatação da não violação de normas constitucionais como as dos artigos 12º, nº 1, 13º, nº 1, ou 32º, nº 1, da Constituição, são de retomar agora, por a elas se aderir. E è tanto mais assim quanto a decisão recorrida entendeu adoptar como critério aquele que fora seguido em anterior decisão do mesmo STM, proferida em 16 de Maio de 1996. É patente que se procurou uma interpretação do artigo 408º do CJM compaginável com a leitura dos artigos 410º e 433º do CPP, visando o respeito do texto constitucional.
Escreveu-se na decisão recorrida, em transcrição do referido Acórdão do STM de 16 de Maio de 1996:
Atente-se no seguinte trecho:
'Não consagrando a Constituição entre as garantias de defesa nem o direito de requerer depoimentos escritos nem o princípio do duplo grau de jurisdição, terá de entender-se que o que está em causa nesta questão posta pelo recorrente será o direito ao recurso e a sua amplitude.
Relativamente ao artigo 408º do CJM, cabe salientar que este preceito não estabelece qualquer restrição ao direito nem à amplitude do recurso, limitando-se a consagrar um regime equivalente ao adoptado na lei processual penal comum quanto à produção da prova em audiência - princípio da oralidade quando o julgamento é feito pelo tribunal colectivo, como acontece sempre no processo criminal castrense.
É hoje um dado adquirido, aceite pela doutrina e pela jurisprudência, considerar-se como uma das garantias de defesa em processo criminal o direito de recurso abarcando tanto a matéria de direito como a de facto, embora aquelas doutrina e jurisprudência também estejam de acordo em que tal amplitude do recurso não tenha que ser ilimitada, no que toca à matéria de facto, podendo a apreciação pelo Tribunal Superior limitar-se à verificação de o julgamento da instância ter sido ou não feito correctamente.
Assim, o próprio Tribunal Constitucional tem entendido como suficiente para assegurar o direito de recurso em matéria de facto e o princípio do duplo grau de jurisdição a possibilidade de o tribunal de recurso poder anular a decisão recorrida se nele encontrar deficiência, contradição insanável, erro notório na apreciação da prova ou ainda inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade insanável, como resulta do disposto no artº 410º, nºs. 2 e
3 do C.P.P.
Ora, acontece que, não obstante o teor do artº 418º, nº 1, do CJM, como se demonstrou no acórdão de 22/6/95 deste Tribunal, a intervenção deste S.Tribunal, no que toca à matéria de facto, é mais lata do que a levada a efeito na jurisdição comum pelo S.T.J., já que a decisão do tribunal de instância sobre a matéria de facto apenas será definitiva se não existir nulidade essencial, mesmo que esta não constitua fundamento do recurso - artº 457º, nº 2 e 458º do CJM.
Assim sendo, terá de concluir-se que nem o artº 408º, nem o artº
418ºm, nº 1, do CJM, na interpretação que este Supremo Tribunal lhes tem dado, violam as garantias de defesa consagradas na Lei Fundamental e, por isso, não são inconstitucionais.'
A interpretação feita pelo Acórdão agora em apreciação não merece censura atendendo ao que se deixou exposto. Com efeito, o STM agiu como tribunal de revista alargada em consonância com o regime dos artigos 410º e
433º do CPP. Mas, sendo assim, só teve de conhecer de suficiência ou da insuficiência da matéria de facto apurada, da existência ou não de contradição insanável na fundamentação, bem como do cometimento ou não de erro notório na apreciação da prova. A falta do registo da prova não põe em causa o direito de recurso em matéria de facto nem o princípio do duplo grau de jurisdição porque a decisão recorrida poderá vir a ser anulada em recurso com a inevitável consequência da repetição do julgamento.
Quanto à norma constante do nº 1 do artigo 418º do mesmo Código de Justiça Militar, cuja constitucionalidade vem questionada por alegadamente 'não admitir a apreciação da matéria de facto pelo Tribunal de Recurso' novamente o Tribunal Constitucional não encontra razões para divergir da jurisprudência anterior.
É o caso, nomeadamente, do acórdão nº 17/97, publicado no 'Diário da República', II série, de 30 de Abril de 1997, também em parte transcrito no citado acórdão nº 126/98. A boa hermenêutica do preceituado no artigo 418º, nº 1, do CJM, não se basta com uma sua interpretação meramente literal, antes requer a convocação de outras normas como as dos artigos 410º e
433º, nº 1, do CPP. O Acórdão recorrido a elas recorreu, como ficou documentado, para estruturar uma 'revista ampliada' da matéria de direito, pois que, quanto à matéria de facto, a intervenção da instância de recurso se cinge aos vícios de erro notório ou de apreciação de prova.
Valerá a pena, portanto, transcrever o seguinte trecho do Acórdão nº 17/97, tal como também se fez no citado Acórdão nº 126/98, que temos vindo a acompanhar de perto:
'[...]porque o tribunal de instância julga de facto definitivamente, segundo a sua consciência, com plena liberdade de apreciação, e de direito
(artigo 418º, nº 1), no que respeita à matéria de facto o STM limita-se a verificar se existe ou não deficiência, obscuridade ou contradição no julgamento da matéria de facto ou preterição de acto substancial para a boa administração da justiça, de modo que possa ter influido ou influa no exame e decisão da causa
[alíneas c) e d) do artigo 458º].
Se o tribunal de recurso constata a ocorrência de algum dos vícios referidos e não pode decidir a causa, tem de determinar o reenvio do processo para se proceder a novo julgamento, que pode abranger a totalidade do objecto do processo ou questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
Na apreciação a que procedeu, não se considerou o STM limitado ao que resulta do próprio texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, limitação essa contida no artigo 410º, nº 1, in fine, do CPP, muito embora o tribunal de recurso, enquanto tal, não possa substituir-se à 1ª instância na apreciação directa da prova nem realizar ele próprio diligências de prova.'
E mais a seguir:
'O recurso penal, interposto do acórdão final do tribunal colectivo para o STM, à luz do que decorre da decisão sob recurso, estrutura-se, assim, como um recurso de revista ampliada, em que a decisão de 1ª instância é apreciada quanto à matéria de direito, pois que, quanto ao facto, o tribunal de recurso intervém somente para «despistar situações indiciadoras de erro judiciário» (Cf., Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 394, de algum modo transponível para esta sede).'
O texto constitucional não exige, como princípio geral, o duplo grau de jurisdição. A este propósito, lê-se ainda no citado Acórdão nº
17/97:
'Aquele preceito constitucional [refere-se ao nº 2 do artigo 32º] não consagra expressamente o princípio do duplo grau de jurisdição, como aliás acontece também com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Tal princípio surge consagrado apenas no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (aprovado, para ratificação, pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho), no seu artigo 14º, nº 5, onde se refere que «qualquer pessoa declarada culpada de crimes terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei».
É sabido que constitui jurisprudência firme do Tribunal Constitucional que uma das garantias de defesa a que se reporta o artigo 32º, nº
1, da Constituição é justamente o direito ao recurso contra sentenças penais condenatórias, o que equivale a reconhecer o aludido princípio. Todavia, sublinha essa jurisprudência que, «tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência de imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito; basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal colectivo». Conforme resulta do Acórdão nº 401/91, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,
20º vol., a pp. 153 e segs., que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, não estará em conflito com a Constituição «outra solução que não seja a da repetição da prova em audiência perante as relações», pois outros sistemas haverá «que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, por força do citado preceito constitucional».
Devem assim ser considerados como compatíveis com a Constituição aqueles regimes legais que protejam o arguido dos perigos de erro de julgamento
- designadamente de um erro grosseiro na decisão da matéria de facto - e que, em consequência, o defendam do risco de uma sentença injusta.'
A esta luz também improcede a alegada inconstitucionalidade da mnorma constante do nº 1 do artigo 418º do CJM. III - DECISÃO:
Em face do exposto,o Tribunal Constitucional decide:
a) - Não tomar conhecimento do recurso realtivamente às normas do Capítulo III, do Título I, do Livro I do Código de Justiça Militar;
b) Quanto às restantes normas, negar provimento ao recurso, assim se confirmando o acórdão recorrido na parte impugnada.
Lisboa, 1998.03.04. Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes (vencido quanto à alínea b) da conclusão, nos termos da declaração de voto junta ao acórdão nº 126/98) Maria da Assunção Esteves (vencida, quanto à alínea b) da conclusão, nos termos da declaração de voto do Exmº Cons. Armindo Ribeiro Mendes). José Manuel Cardoso da Costa