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Procº nº 56/95 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Os Drs. A..., J..., AC..., F..., JR..., M..., JC..., JN..., JP..., AB..., AA..., MC..., JM... e JS... Juízes Conselheiros do Tribunal de Contas, interpuseram recurso, em 3 de Maio de 1993, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, da deliberação do Conselho Administrativo do Tribunal de Contas de 26 de Fevereiro de 1993, notificada em 1 de Março seguinte, que desatendeu a pretensão, anteriormente por eles formulada, de as suas remunerações atingirem os níveis determinados, entre outros, pelo disposto na Lei nº 2/90, de 20 de Janeiro.
Invocaram os recorrentes que a deliberação recorrida, tendo dado prevalência ao 'estatuído no artigo 1º da Lei nº
63/90, de 26.12, arranca dum preceito inconstitucional que viola, cumulativamente, o princípio da confiança e o princípio da igualdade'.
2. Por sentença de 9 de Dezembro de 1994, o Mmº Juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, depois de recusar a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos princípios da igualdade e da protecção da confiança, das normas dos nºs. 1 e 2 do artigo 1º da Lei nº
63/90, de 26 de Dezembro, concedeu provimento ao recurso e, em consequência, anulou a deliberação recorrida.
3. É desta sentença que vem interposto pelo Ministério Público o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo 'das disposições conjugadas dos artºs. 70º, nº 1, alínea a), 72º, nº 3, e 75º-A, todos da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, com as alterações da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro'.
4. O Exmº Prcurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal encerrou as suas alegações do seguinte modo:
'1º- A artificial e arbitrária equiparação remuneratória entre magistrados colocados em tribunais 'hierarquicamente' diferenciados - e, portanto, com um estatuto funcional e atribuições substancialmente diferenciadas
- resultante do congelamento dos vencimentos ao nível do montante correspondente
à remuneração base do cargo de Primeiro-Ministro, decretada pelo nº 2 do artigo
1º da Lei nº 63/90 - e que vigorou até à edição da Lei nº 19/93 - constitui violação do princípio constitucional da igualdade, afirmado pelos artigos 13º e
59º, nº 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, bem como da diferenciação funcional - e, portanto, necessariamente remunera- tória - ínsita nos artigos 212º e 217º da Lei Fundamental.
2º- Termos em que deverá, com este fundamento, ser confirmada a decisão recorrida'.
Por sua vez, os recorridos ofereceram o merecimento dos autos e requereram a confirmação da sentença recorrida 'nos seus precisos termos e fundamentos'.
5. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir.
II - Fundamentos.
6. A sentença aqui sob recurso fundamentou o julgamento de inconstitucionalidade do seguinte modo:
'[...]
Nos termos do artº 4º nº 2 da Lei nº 2/90, de 20 de Janeiro, os magistrados judiciais podiam ver ascender as suas remunerações ilíquidas até ao limite de 75% do montante equivalente ao somatório do vencimento e abono mensal para despesas de representação do Presidente da República (cfr. artº 3º da Lei nº 102/88, de 25 de Agosto).
Por força da suspensão prevista nos nºs 1 e 2 do artº 1º da Lei nº
63/90 esse limite foi reduzido ao montante correspondente à remuneração base do cargo de Primeiro Ministro.
Assim e por força da suspensão prevista no nº 2 da Lei nº 63/90, a partir de determinado momento e até 31.12.93 (cfr. DL 19/93, de 25 de Junho) a remuneração do Juiz Desembargador, passou a ser igual à remuneração mensal auferida pelo Juiz Conselheiro.
O princípio da igualdade que os recorrentes entendem mostrar-se ofendido pelo acto impugnado, não postula o tratamento igual de todas as situações ou uma 'proibição em absoluto de toda e qualquer diferenciação de tratamento' (Gomes Canotilho e Vital Moreira, 'in'CRP (Anotada), 3ª ed., pág.
265), mas apenas o tratamento igual de situações idênticas.
Como vem sendo jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional, 'o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa', - escreveu-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 186/90, de
6 de Junho (Diário da República, II série, de 12 de Setembro de 1990) - não veda
à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias,, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia de proibição do arbítrio' (cfr. ainda e entre outros ac. nº 243/94, D.R. II série, de 2.07.94, pág. 7609).
Tal princípio exige 'uma igualdade material, devendo tratar-se por igual o que é igual e desigualmente o que é desigual' (Gomes Canotilho, DC, 5ª ed., pág., 576).
Sobre a forma como actualmente o princípio da igualdade é entendido na doutrina e na Jurisprudência, escreve Gomes Canotilho 'in' Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 124, nº 3811, p. 327 'a operatividade do princípio da igualdade, como se salienta na jurisprudência mais recente, passa pela comparação das situações fácticas e jurídicas concretas de diferentes grupos de destinatários da actividade normativa, a fim de saber se entre eles se verificam diferenças fácticas com um peso jurídico suficiente para justificar um tratamento jurídico diferenciado' (cfr. ainda entre outros, ac. TC nº 806/93, DR, II série de 29.01.94).
Ou seja, o princípio da igualdade, se implica o tratamento igual de situações iguais, também exige o 'tratamento desigual de situações desiguais'
(Jorge Miranda, Manual de DC, tomo IV, Coimbra, pág. 241) ou, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira,, CRP Anotada, 1º vol. pág. 149 'o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes'.
Sem necessidade de tecer grandes considerações sobre a matéria, é notório e aliás público, que as funções exercidas por Juízes Conselheiros, são de natureza e qualidade diferentes das funções exercidas por Juízes Desembargadores, na medida em que o exercício das funções de Juiz Conselheiro, em princípio, obedecem a um maior grau de dificuldade e implicam uma maior exigência de conhecimentos, prática e capacidade, ou seja, um diferente nível de preparação profissional, relativamente ao exercício de funções exercidas por um juiz de instância inferior, como seja o Juiz Desembargador.
De tal é de concluir que é igualmente notório que as diferentes categorias profissionais ora em confronto, por traduzirem manifesta desigualdade de situações, justificam, no aspecto remuneratório, um tratamento jurídico diferenciado.
Assim, por força do princípio da igualdade na formulação referida, os nºs 1 e 2 do artº 1º da Lei nº 63/90, de 26 de Dezembro, na medida em que determinam remuneração igual para o cargo de Juiz Conselheiro e Juiz Desembargador, violam o princípio da igualdade consagrado nos preceitos constitucionais indicados pelos recorrentes.
[...]
Convém acrescentar que, como entendem os recorrentes, os referidos preceitos violam igualmente o princípio da confiança, ínsito no do Estado de Direito Democrático, vertido no artº 2º da CRP, na medida em que resultam frustradas as expectativas criadas pela Lei nº 2/90, negociada com as estruturas sindicais dos magistrados.
Com efeito, na sua vertente de Estado de direito democrático, o princípio do Estado de direito democrático, escreve Gomes Canotilho e Vital Moreira 'in' CRP Anotada, 3ª ed., pág. 63, 'mais do que constitutivo de preceitos jurídicos, é sobretudo englobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia da
sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança', que engloba uma segurança jurídica, no sentido de as decisões estaduais ou as leis não deverem 'poder ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável alteração das mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes' (Gomes Canotilho, DC,
6ª ed., pág. 381).
Nesta última obra a pgs. 377, citando jurisprudência do TC, Gomes Canotilho escreve 'o princípio do Estado de direito democrático garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica'.
A realização do princípio do Estado de direito, no quadro da Constituição, escreveu-se no 'voto de vencido' ao ac. TC nº 303/90, DR I série, de 26.12.90, pág. 5223, 'significa o asseguramento de um certo grau de calculabilidade e previsibilidade dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, a garantia da confiança na actuação dos entes públicos'.
Após a negociação, aprovação e posterior publicação da Lei nº 2/90, é manifesto que nos destinatários de tal Lei, criou-se a convicção ou pelo menos uma fundada expectativa segundo a qual, os magistrados, nomeadamente os Juízes Conselheiros e Juízes Desembargadores, futuramente, iriam beneficiar de uma melhoria substancial dos seus vencimentos, derivada da evolução dos mesmos, em tal lei prevista. Isto porque e em princípio nada fazia prever que, decorridos apenas alguns meses após a sua publicação, a Lei nº 2/90 ou a evolução dos vencimentos dos magistrados nela previstos, tivesse significativas alterações por força da suspensão operada pela Lei nº 63/90.
A Lei 63/90, por sua vez não fornece qualquer elemento ou indicação das razões ou interesses, sejam eles político-económicos ou outros e que eventualmente tivessem levado ou aconselhassem o legislador a afectar um
'direito adquirido' - direito a que os vencimentos evoluissem nos termos previstos na Lei 2/90 - sendo que, na ausência de circunstâncias que justifiquem essas razões que motivaram essa suspensão operada pela Lei 63/90, é de concluir que a suspensão em questão veio frustrar direitos e expectativas legitimamente fundadas dos magistrados [...]'.
7. É o seguinte o conteúdo das normas desaplicadas, com fundamento em inconstitucionalidade, pela decisão judicial submetida a recurso para este Tribunal:
'Lei nº 63/90, de 26 de Dezembro
[...]
Artigo 1º
1 - É suspensa, a partir de 1 de Janeiro de 1991, e até que a Assembleia da República aprove os princípios de actualização das remunerações dos titulares de cargos públicos, a vigência do disposto no artigo 2º da Lei nº
26/84, de 31 de Julho, para efeitos de aplicação do regime transitório previsto nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 31º do Decreto-Lei nº 353-A/89, de 16 de Outubro, aplicando-se, enquanto vigorar a suspensão, unicamente o regime previsto no artigo 4º deste diploma.
2- A suspensão prevista no número anterior é apenas aplicável à parcela das remunerações e pensões fixadas pela Lei nº 2/90, de 20 de Janeiro, que exceda o montante correspondente à remuneração base do cargo de Primeiro-Ministro'.
Objecto do presente recurso de constitucionalidade não são as duas normas acabadas de transcrever em toda a sua extensão, mas apenas numa determinada dimensão. De facto, a norma do nº 1 do artigo 1º da Lei nº 63/90, de
26 de Dezembro, não abrange somente os magistrados judiciais e do Ministério Público, antes abarca também outros titulares de cargos públicos.
Recorde-se que, desde a Lei nº 26/84, de 31 de Julho, as remunerações do Presidente da República são 'automaticamente actualizadas, sem dependência de qualquer formalidade, em função e na proporção dos aumentos do vencimento correspondente à mais alta categoria da função pública' (artigo 2º), princípio que a Lei nº 102/88, de 25 de Agosto, não alterou, apenas especificando que tal actualização automática de vencimentos se faria 'em função e na proporção das alterações à remuneração mensal ilíquida fixada para o cargo de director-geral na Administração Pública' (artigo 1º). Ora, por efeito da Lei nº 4/85, de 9 de Abril, alterada pela Lei nº 102/88, o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro e os restantes membros do Governo, os deputados e os Ministros da República para as Regiões Autónomas têm o seu regime remuneratório indexado ao vencimento ilíquido do Presidente da República. E em consequência da Lei nº 29/87, de 30 de Junho, o mesmo se passa em relação aos presidentes e aos vereadores das câmaras municipais.
Assim, o regime de indexação dos vencimentos dos magistrados judiciais, previsto, a partir de 1 de Janeiro de 1991, pela Lei nº 2/90, de 20 de Janeiro, é apenas uma parte de um regime mais amplo, todo ele afectado pela suspensão da actualização automática do vencimento e abono mensal do Presidente da República, prevista no artigo 2º da Lei nº 26/84, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 102/88 - suspensão essa que, como se referiu, abrangeu outros titulares de cargos públicos.
O mesmo não se passa com a norma do nº 2 do artigo 1º da Lei nº
63/90, que diz estritamente respeito à situação remuneratória dos magistrados judiciais e dos magistrados do Ministério Público.
Tendo em conta que os destinatórios do acto administrativo impugnado contenciosamente perante o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa são todos Juízes Conselheiros do Tribunal de Contas, as normas dos nºs. 1 e 2 do artigo 1º da Lei nº 63/90 apenas foram desaplicadas por aquele tribunal na parte em que prevêem a suspensão da actualização das remunerações dos magistrados judiciais. Objecto do presente recurso é, pois, a questão da constitucionalidade das normas conjugadas dos nºs. 1 e 2 do artigo 1º da Lei nº
63/90, no segmento em que estabelecem a suspensão da actualização das remunerações dos magistrados judiciais.
Aqui chegados, cabe perguntar: violarão as normas dos nºs. 1 e 2 do artigo 1º da Lei nº 63/90, na dimensão assinalada, o princípio da igualdade, consagrado nos artigos 59º, nº 1, alínea a), e 13º da Constituição, bem como o princípio da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado nos artigos 2º e 9º, alínea b), da Lei Fundamental, como defenderam os ora recorridos perante o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa e foi decidido por sentença deste de 9 de Dezembro de 1994?
Vejamos então.
8. Antes de se confrontarem as duas normas aqui questionadas com os referidos princípios constitucionais, importa esclarecer que, antes da prolação da sentença do tribunal a quo, entrou em vigor, com possibilidade de efeitos retroactivos a 1 de Janeiro de 1993, a Lei nº 19/93, de 25 de Junho, a qual alterou substancialmente os resultados das transcritas normas da Lei nº 63/90. Dispõe essa lei o seguinte:
'Artigo 1º - Ao artigo 1º da Lei nº 63/90, de 26 de Dezembro, é aditado o nº 3, com a seguinte redacção:
Artigo 1º
[...]
1- ................................................
2- ................................................
3- À remuneração ou pensão que resulta da aplicação do número anterior é acrescentado o montante necessário para que se verifique uma diferenciação de 3% em relação à categoria que detenha o índice imediatamente inferior, de acordo com os mapas mandados anexar pela Lei nº 2/90, de 20 de Janeiro, à Lei nº 21/85, de 30 de Julho, e à Lei nº 47/86, de 15 de Outubro.
Artigo 2º
1- A presente lei entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 1994.
2- O Governo pode determinar, por decreto-lei, a sua imediata entrada em vigor, com efeitos retroactivos a Janeiro de 1993'.
A atribuição dos efeitos retroactivos previstos no nº 2 do artigo 2º da Lei nº 19/93 foi operada pelo Decreto-Lei nº
339/93, de 30 de Setembro.
Em face desta ocorrência deve colocar-se a questão de saber se a entrada em vigor, em 1 de Janeiro de 1993, do nº 3 do artigo 1º da Lei nº 63/90, aditado pela Lei nº 19/93, que restabeleceu uma diferenciação de 3% entre as remunerações das várias categorias de magistrados judiciais, se traduziu numa
'modificação substancial significativa' do quadro legal aqui em apreciação, da qual terá resultado uma alteração do sentido que é imputado às normas dos nºs. 1 e 2 do artigo 1º da Lei nº 63/90.
As consequências da entrada em vigor da Lei nº 19/93 não foram devidamente consideradas pelos autores do recurso contencioso e pela decisão recorrida, mas foram sublinhadas nas alegações do Exmº Procurador-Geral Adjunto que, distinguindo os efeitos da procedência da violação do princípio da confiança (a repristinação do regime instituído pela Lei nº 2/90, como única forma de obviar a que as 'expectativas' criadas com a sua publicação não acabassem por ser frustradas) dos decorrentes da violação do princípio da igualdade (que se bastaria com a criação de um efectivo 'desnivelamento' entre os diferentes escalões das magistraturas), acaba por concluir que 'a manutenção, até à entrada em vigor da Lei nº 19/93, de uma artificial equiparação entre as remunerações auferidas por escalões diferenciados das magistraturas terá constituído efectiva violação do princípio constitucional da igualdade, entendido como limite objectivo ao arbítrio legislativo, impondo o tratamento diferenciado de situações materialmente distintas'.
9. De acordo com a decisão recorrida - a qual aderiu ao essencial da fundamentação aduzida pelos recorrentes no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa e recorridos no presente processo - as normas do nºs. 1 e 2 do artigo 1º da Lei nº 63/90, de 26 de Dezembro, colidem com o princípio constitucional da protecção da confiança.
A violação desse princípio constitucional resultaria, por um lado, da circunstância de, após a negociação, aprovação e posterior publicação da Lei nº 2/90, terem os magistrados judiciais, nomeadamente os Juízes Conselheiros e Juízes Desembargadores, adquirido a convicção ou pelo menos uma fundada expectativa de que 'iriam beneficiar de uma melhoria substancial dos seus vencimentos, derivada da evolução dos mesmos, em tal lei prevista', e, por outro lado, do facto de a Lei nº 63/90 não fornecer 'qualquer elemento ou indicação das razões ou interesses, sejam eles político-económicos ou outros, e que eventualmente tenham levado ou aconselhassem o legislador a afectar um 'direito adquirido' [...]'.
Uma tal argumentação não é, porém, suficientemente probante, como se verá de seguida.
9.1. Constitui jurisprudência uniforme e constante deste Tribunal
(seguindo, neste ponto, as pistas traçadas pela Comissão Constitucional) que o princípio da 'protecção da confiança' vai ínsito no princípio do 'Estado de direito democrático', consagrado no artigo 2º da Constituição. O princípio do
'Estado de direito democrático' - do qual emana o princípio da protecção da confiança dos cidadãos - é um princípio cujos contornos são fluidos, variando no tempo e segundo as épocas e lugares, pelo que tem um conteúdo relativamente indeterminado, quando não acha directo apoio noutros preceitos constitucionais. Por isso, tais características sempre inspirarão prudência ao intérprete e convidá-lo-ão a não multiplicar, com apoio nesse princípio, as ilações de inconstitucionalidade (cfr. o Acórdão 437, de 26 de Janeiro de 1982, da Comissão Constitucional, in Apêndice ao Diário da República de 18 de Janeiro de 1983, e o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 83/84, publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Novembro de 1984).
Seja qual for a latitude jurídica do princípio do 'Estado de direito democrático', é seguro que ele leva postulada uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica (cfr., entre outros, os arestos citados anteriormente e ainda: o Acórdão nº 463 da Comissão Constitucional, de 13 de Janeiro de 1983, in Apêndice ao Diário da República de 23 de Agosto de 1983; Parecer da Comissão Constitucional nº 14/82, de 22 de Abril de 1982, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 318, pág. 224 e ss.; e os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 11/83, 10/84, 17/84, 89/84 e 303/90 (publicados no Diário da República, I Série, de 20 de Outubro de 1983, II Série, de 4 de Maio de 1984, de
14 de Maio de 1984 e de 5 de Fevereiro de 1985, e I Série, de 26 de Dezembro de
1990, respectivamente).
No entanto, uma norma jurídica apenas violará o princípio da
'protecção da confiança do cidadão', ínsito no princípio do Estado de direito, se ela postergar de forma intolerável, arbitrária, opressiva ou demasiado acentuada aquelas exigências de confiança, certeza e segurança que são dimensões essenciais do princípio do Estado de direito (cfr. os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 287/90, 303/90, 339/90 e 352/91 (o primeiro publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Fevereiro de 1991, o terceiro no de 17 de Junho de 1991 e o quarto no de 17 de Dezembro de 1991).
No caso das normas dos nºs. 1 e 2 do artigo 1º da Lei nº 63/90, não estamos, de modo algum, perante uma postergação da confiança que assuma tais características de intolerabilidade, arbitrariedade e opressão, pelo que não poderão colidir com o princípio constitucional da protecção da confiança.
9.2. No que respeita à invocada ausência de razões ou fundamentos justificativos da solução trazida pela Lei 63/90, importa salientar que a
'exposição de motivos' que acompanhou a Proposta de Lei nº 153/V (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 47, de 7 de Junho de 1990) não era suficientemente clara quanto à occasio legis, indicando genericamente uma alteração superveniente das circunstâncias, que justificaria 'a suspensão de um critério de actualização automática, que foi definido e aprovado num contexto diferente do actualmente vigente', remetendo para a Assembleia da República - a quem constitucionalmente compete legislar nesta matéria - a apreciação de tal questão (a das remunerações dos titulares de cargos públicos), 'elaborando e desenvolvendo os estudos considerados indispensáveis para que os critérios de transparência, de rigor e de justiça relativa sejam assegurados e salvaguardados'. Todavia, o Relatório e Parecer da Comissão de Economia, Finanças e Plano sobre a Proposta de Lei nº 153/V, elaborados pelo deputado Octávio Teixeira (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 56, de
5 de Julho de 1990), são suficientemente claros no tocante aos fundamentos do conteúdo da futura Lei nº 63/90. Pode ler-se, entre o mais, naquele Relatório:
'2 - Enquadramento da proposta de lei
2.1 - A Lei nº 26/84, de 31 de Julho (regime de remuneração do Presidente da República), no seu artigo 2º, veio estabelecer que as remunerações do Presidente da República «serão automaticamente actualizadas, sem dependência de qualquer formalidade, em função e na proporção dos aumentos do vencimento correspondente à mais alta categoria da função pública».
Aquele normativo veio a ser alterado pela Lei nº 102/88, de 25 de Agosto (altera o regime remuneratório dos titulares de cargos políticos), a qual especificou que a actualização automática das remunerações do Presidente da República se operaria em função e na proporção das alterações «à remuneração mensal ilíquida fixada para o cargo de director-geral na Administração Pública».
2.2. - A Lei nº 4/85, de 9 de Abril (estatuto remuneratório dos titulares de cargos políticos), em conjugação com a Lei nº 102/88, de 25 de Agosto, estabeleceu, por sua vez, para o vencimento do Presidente da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro e restantes membros do Governo, dos deputados e dos ministros da República para as regiões autónomas um regime de indexação percentual ao vencimento ilíquido do Presidente da República.
2.3. - Pela Lei nº 29/87, de 30 de Junho, artigo 6º, idêntico regime de indexação percentual foi fixado para os vencimentos dos presidentes e vareadores das câmaras municipais.
Do mesmo modo, a Lei nº 2/90, de 20 de Janeiro, indexou, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1991, a actualização das remunerações dos magistrados judiciais e dos magistrados do Ministério Público aos aumentos percentuais da remuneração do Presidente da República.
Por sua vez, o artigo 15º da Lei nº 4/85, de 9 de Abril (artigo 15º), fixa para os juízes do Tribunal Constitucional vencimentos iguais aos dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça.
2.4. - O Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, desenvolvido pelo Decreto-Lei nº 352-A/89, de 16 de Outubro, instituiu um novo sistema retributivo dos funcionários e agentes da Administração Pública, substituindo a tabela de letras, até então em vigor, por uma estrutura remuneratória assente em escalas salariais diversificadas para as carreiras de regime geral e especial, para os cargos dirigentes e para os diferentes cargos especiais.
Nos termos do nº 2 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 353-A/89, o valor base de cada uma das novas escalas salariais seria fixado por portaria do Primeiro-Ministro e do Ministro das Finanças.
2.5. A Portaria nº 904-A/89, de 16 de Outubro, estabeleceu para o cargo de director-geral o valor base de remuneração de 290.000$00, a vigorar no ano de 1990, o que significou um aumento do vencimento base da ordem dos 56% face ao valor então em vigor.
2.6. Em 24 de Outubro de 1989, deputados do Grupo Parlamentar do PCP, PRD e PEV e deputados independentes apresentaram o projecto de lei nº 437/V, que visava, por um lado, «a suspensão do efeito automático do aumento dos directores-gerais operado pela Portaria nº 904-A/89, de 16 de Outubro, e, consequentemente, dos aumentos de 56% dos cargos políticos» e, por outro lado,
«que a actualização dos vencimentos dos titulares de cargos políticos passe a ser definida na Lei do Orçamento do Estado [...], tendo como fundamento que devem ser os titulares de cargos políticos a responsabilizar-se, em cada momento, pelo seu estatuto remuneratório».
O referido projecto de lei nº 437/V foi objecto de discussão na generalidade na sessão plenária da Assembleia da República de 7 de Novembro de
1989 (Diário da Assembleia da República, I Série, nº 11, de 8 de Novembro de
1989) e, submetido à votação na sessão plenária de 9 de Novembro (Diário da Assembleia da República, I Série, nº 12, de 10 de Novembro de 1989), foi rejeitado pelos votos do Grupo Parlamentar do PSD.
2.7. Por efeito da indexação estabelecida nas leis anteriormente referidas e da rejeição do projecto de lei nº 437/V, o aumento de 56% do vencimento base ilíquido do cargo de director-geral repercutiu-se, na mesma proporção e de forma automática, no aumento dos vencimentos ilíquidos do Presidente da República, de outros titulares de cargos políticos ou equiparados e dos eleitos locais.
2.8. Nos termos do artigo 31º do Decreto-Lei nº 353-A/89, de 16 de Outubro, o vencimento base do cargo de directo-geral em vigor em 1990 será objecto, para além das actualizações salariais anuais dos funcionários e agentes da Administração Pública, de uma actualização de 18% em 1991 e de mais 14,4% em
1992.
Assim a presente proposta de lei visa, de forma imediata, impedir a repercussão automática destes aumentos no correspondente aumento proporcional das remunerações do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro e restantes membros do Governo, dos deputados, dos ministros da República para as regiões autónomas, dos presidentes e vereadores das câmaras municipais, dos juízes do Tribunal Constitucional e dos magistrados judiciais e do Ministério Público'.
Em face da reacção negativa da opinião pública a um aumento dos vencimentos dos 'políticos' em 56%, em 1990, foi unanimemente entendido pela Assembleia da República que um novo aumento excepcional de 18%, em 1991, e um outro de mais 14,4%, em 1992,afectariam gravemente o prestígio do regime democrático. Foram estas, portanto, as razões justificativas da Lei nº 63/90, que atingiu indirectamente os magistrados judiciais e os magistrados do Ministério Público, por força da equiparação, adoptada pela Lei nº 2/90, entre a retribuição base da categoria mais elevada da magistratura judicial e a retribuição base de Ministro (514.000$00 e 522.900$00 em 1990, para Juízes Conselheiros e Ministros, respectivamente).
Não é legítimo, por isso, afirmar que a Lei nº 63/90 não se alicerçou em razões ou fundamentos materiais bastantes. Essas razões ou fundamentos existiram, como se viu, escapando à competência do Tribunal Constitucional a apreciação do seu valor ou mérito intrínseco.
9.3. Ao invés do que salientam os ora recorridos e a decisão judicial aqui sob recurso, a Lei nº 63/90 não afectou quaisquer 'direitos adquiridos'. Com efeito, não houve nenhum retrocesso remuneratório, apenas se suspendeu uma esperada actualização, ou seja, apenas se impediu um progresso - razão pela qual a invocação do Acórdão deste Tribunal nº 303/90 (publicado no Diário da República, I Série, de 26 de Dezembro de 1990) se afigura desajustada. Neste aresto, foram determinantes a circunstância de a diminuição de vencimentos ter ocorrido após a entrada em vigor da norma que determinava o aumento e, bem assim, o facto de nem a lei, nem os seus trabalhos preparatórios darem 'qualquer indicação sobre a existência de motivos ligados
à prossecução ou salvaguarda de interesses (designadamente económicos ou financeiros), tais que, de um ponto de vista proporcional, aconselhassem à suspensão do 'vencimento adquirido' pelos agentes de ensino em causa [...]'. Diversamente, nos presentes autos, está em causa um aumento automático da remuneração, em função da elevação, por portaria, do montante remuneratório dos directores-gerais, aumento automático esse que ocorreu em 1990 e que nesse ano foi suspenso para os aumentos a ocorrer em 1991 e 1992, encontrando-se nos trabalhos preparatórios da lei que operou a suspensão dos aumentos de vencimento uma ampla motivação dessa solução - motivação essa que, repete-se, não compete a este Tribunal sindicar.
Não implicando as normas dos nºs 1 e 2 do artigo 1º da Lei nº 63/90 uma lesão de um 'direito' dos beneficiários do aumento de 56% em 1990 que não tiveram aumentos de 18% e 14,4% acima da actualização dos vencimentos da função pública, em 1991 e 1992, respectivamente, não colidem eles com o princípio constitucional da 'protecção da confiança' (e isto é assim, mesmo sem considerar que os efeitos negativos da suspensão de uma tal actualização de remuneração foram minorados em relação aos magistrados judiciais e aos magistrados do Ministério Público, primeiro pelo nº 2 do artigo 1º da Lei nº 63/90 e, a partir de 1 de Janeiro de 1993, pelo aditado nº 3 do artigo 1º da mesma lei).
O que acaba de dizer-se é seguramente subscrito por quem votou o Acórdão nº 303/90, acima citado. A idêntica conclusão chegará também, e até por maioria de razão, quem dissentiu da decisão tomada neste aresto. De facto, também no caso aqui sub judicio, o aumento de vencimentos que a norma veio suspender não se havia ainda subjectivado, uma vez que a norma que previu aqueles aumentos ainda não se tinha tornado efectiva. E, por isso, as expectativas dos magistrados à percepção de um vencimento mais elevado não tinham uma consistência tal que a sua suspensão deva considerar-se intolerável.
E a isto acresce que houve fundadas razões para a decisão legislativa de suspensão desses aumentos - razões que têm a ver com o alarme provocado pelo aumento dos vencimentos dos titulares de cargos políticos, anteriormente aludido.
Eis, pois, as razões pelas quais as normas questionadas no presente recurso, na dimensão assinalada, não infringem o princípio da 'protecção da confiança', ínsito no princípio do 'Estado de direito democrático', consagrado nos artigos 2º e 9º, alínea b), da Lei Fundamental.
10. Na óptica dos recorridos no presente processo e da decisão judicial aqui sob recurso, as normas conjugadas dos nºs. 1 e 2 do artigo 1º da Lei nº 63/90 brigam com o princípio constitucional da igualdade, plasmado nos artigos 13º e 59º, nº 1, alínea a), da Constituição.
A violação de um tal princípio reside, na perspectiva dos mesmos, na circunstância de aquelas normas determinarem uma remuneração igual para os Juízes Conselheiros e Juízes Desembargadores, cujas funções são de natureza e qualidade diferentes, sendo que as daqueles, 'em princípio, obedecem a um maior grau de dificuldade e implicam uma maior exigência de conhecimentos, prática e capacidade, ou seja, um diferente nível de preparação profissional', relativamente ao exercício de funções por juízes de instância inferior, como sejam, os Juízes Desembargadores.
10.1. É manifesto que a norma do nº 1 do artigo 1º da Lei nº 63/90 coloca todos os beneficiários da actualização automática das suas retribuições em função da do Presidente da República em posição de igualdade.
Tratando-se de situações materialmente muito diversas, a igualdade de tratamento quanto à forma de operar a actualização das remunerações desses vários titulares de cargos públicos é um mero expediente técnico para evitar evoluções diferenciadas geradoras de injustiças relativas. Justamente por isso, a suspensão introduzida pelo nº 1 do referido normativo operou em bloco, atingindo da mesma forma as situações materialmente diversas, a que o legislador, por razões perfeitamente justificáveis, tinha inicialmente conferido um tratamento idêntico.
Ou seja: embora houvesse razões para tratar em termos diversos os vários titulares de cargos públicos, considerou o legislador que havia mais e melhores razões para que, quanto à forma de actualização das retribuições correspondentes, estes tivessem um tratamento integrado. Assim sendo, poderia até entender-se que violaria o princípio constitucional da igualdade a diferenciação quanto ao alcance da suspensão de um regime anteriormente comum.
10.2. Pelo que vem de ser referido, poderá questionar-se se o tratamento mais favorável para as magistraturas em comparação com os restantes titulares de cargos públicos abrangidos pelo nº 1 do artigo 1º, constante da norma do nº 2 do artigo 1º da Lei nº 63/90, é constitucionalmente legítimo e se existe uma diferenciação fáctica e jurídica concreta 'com um peso suficiente para justificar um tratamento jurídico diferenciado', como se escreveu na decisão recorrida.
A resposta é claramente positiva: ao contrário dos outros beneficiários do regime de actualização automática suspenso, os magistrados são titulares permanentes dos cargos públicos que ocupam, não usufruem de prerrogativas especiais de reinserção ou reforma, não beneficiam (excepto os presidentes dos Tribunais Superiores e os titulares dos cargos superiores do Ministério Público) de abonos para despesas de representação, nem, na generalidade dos casos, da possibilidade de constituírem um gabinete de apoio ou de utilizarem viaturas oficiais, além de estarem vinculados constitucionalmente
à exclusividade de funções (cfr. o nº 3 do artigo 218º da Constituição). Compreende-se, portanto, que o legislador, a quem, em primeira linha, compete
'averiguar [...] da existência de um particularismo suficientemente distinto para justificar uma desigualdade de regime jurídico e decidir das circunstâncias e actores a ter como relevantes nessa averiguação [...]' (como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 142/85, publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1985), tenha diferenciado a situação das magistraturas das restantes.
10.3. Apurado que a norma do nº 2 do artigo 1º da Lei nº 63/90, enquanto estabelece um regime mais favorável para os magistrados do que o previsto para os restantes titulares dos cargos públicos abrangidos pela suspensão de actualização das remunerações contemplada na norma do nº 1 daquele artigo, não é materialmente infundada e, por isso, não viola o princípio da igualdade, vejamos agora se as normas aqui questionadas, na medida em que 'esmagam' as diferenciações de vencimentos nos escalões superiores da magistratura judicial e do Ministério Público, estão em rota de colisão com o princípio geral da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, e com o princípio especial da igualdade, traduzido no 'princípio de que para trabalho igual salário igual', plasmado no artigo 59º, nº 1, alínea a), da Lei Fundamental.
De facto, em consequência da aplicação das normas que constituem o objecto do presente recurso assistiu-se a uma anulação da diferenciação de remunerações entre as categorias de Juiz Conselheiro e Juiz Desembargador, bem como entre as de Vice-Procurador-Geral e Procurador-Geral Adjunto (isto antes da entrada em vigor da Lei nº 19/93, de 25 de Junho, de cuja existência estamos a abstrair neste momento). Em 1 de Janeiro de 1992, aquelas quatro categorias ficaram, por força da aplicação das duas normas jurídicas sub judicio, com a mesma remuneração base (738.900$00), por ser também essa a remuneração base do cargo de Primeiro Ministro.
Como se viu, a sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa decidiu que o princípio constitucional da igualdade impõe que a diferentes categorias profissionais das carreiras de magistrado judicial e de magistrado do Ministério Público correspondam diferentes níveis remuneratórios. Também o Exmº Procurador-Geral Adjunto defende nas suas alegações produzidas neste Tribunal que as duas normas impugnadas ofendem aquele princípio constitucional. Vale a pena transcrever o seguinte trecho daquelas alegações:
'Cumpre, aliás, salientar que o carácter 'anómalo' desta situação - e a imperiosa necessidade de, mesmo transitoriamente, lhe por cobro - foi expressamente reconhecido pelo legislador nos trabalhos preparatórios que culminaram na edição da Lei nº 19/93.
Na verdade, no nosso direito administrativo sempre ocorreu diferenciação dos vencimentos-base que legalmente correspondem a cada categoria de funcionários ou agentes da Administração, entendida como qualificação comum dos lugares do mesmo grau e a que corresponde determinado e específico conteúdo funcional: tal regime constitui, aliás, simples expressão do princípio constante da alínea a) do nº 1 do artigo 59º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual todos os trabalhadores têm direito:
À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna.
No caso das magistraturas, sucede que é a própria Constituição a consagrar expressamente a existência de uma 'hierarquia dos tribunais' - a
que, pela própria 'natureza das coisas', deverão necessariamente corresponder escalões diferenciados das magistraturas, a que são atribuídas funções diversas, consoante a competência ou a medida da jurisdição que as leis de organização judiciária cometem aos diversos tribunais em que prestam serviço.
Assim, o artigo 212º estabelece, no seu nº 1 que:
O Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional.
E acrescenta o nº 3 que:
Os tribunais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca, aos quais se equiparam os referidos no nº 2 do artigo seguinte (ou seja; os tribunais com competência específica e os tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas).
Finalmente, prescreve o nº 4 deste mesmo preceito que:
Os tribunais de segunda instância são, em regra, os Tribunais da Relação.
Em consonância com esta 'hierarquia' dos tribunais, estabelece o artigo 217º - como corolário deste regime em sede de estatuto dos magistrados - uma clara diferenciação entre os juízes dos tribunais judiciais de primeira instância e dos tribunais judiciais de segunda instância (recrutados com prevalência do critério do mérito, por concurso curricular entre juízes de primeira instância); e, finalmente, dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça
(cujo acesso se faz por concurso curricular aberto aos magistrados judiciais e do Ministério Público e a outros juristas de mérito).
Pensamos, deste modo, que a arbitrária equiparação remuneratória de magistrados pertencente a escalões diferentes e a exercerem funções em tribunais
'hierarquicamente' diferenciados - para além de integrar violação flagrante da afloração do princípio da igualdade constante do citado artigo 59º, nº 1, alínea a) - constituirá, muito em particular, violação do estatuído nos artigos 212º e
217º da Constituição da República Portuguesa, preceitos que necessariamente levam ínsita a existência de escalões diferenciados - em termos funcionais e, portanto, remuneratórios - dos magistrados'.
O Tribunal Constitucional não pode deixar de concordar com esta argumentação e de reiterar que das normas e princípios constitucionais assinalados resulta a obrigação para o legislador ordinário de consagrar, nas carreiras da magistratura judicial e da magistratura do Ministério Público (tal como nas carreiras da função Pública), para as várias categorias, a que correspondem diferentes níveis de experiência e de responsabilidade, diferenciações de níveis remuneratórios. Tem sido esta, aliás, a prática legislativa no domínio das relações jurídicas de emprego público (prática essa prontamente restabelecida pelo legislador, através da Lei nº 19/93, logo que se apercebeu dos efeitos perversos da aplicação da Lei nº 63/90 às magistraturas judicial e do Ministério Público).
Uma tal diferenciação desapareceu por efeito das normas aqui impugnadas, sem que, para tanto, haja fundamento material bastante. Tais normas violam, assim, o princípio constitucional da igualdade, condensado no artigo 13º da Lei Fundamental, em conjugação com os artigos 59º, nº 1, alínea a), e 210º, nºs. 1, 3 e 4 da Constituição (anterior artigo 212º, nºs. 1, 3 e 4, da Lei Fundamental).
A desigualdade introduzida pelas normas aqui em apreciação desapareceu com a entrada em vigor da Lei nº 19/93, de 25 de Junho , que, como atrás se referiu, aditou um nº 3 ao artigo 1º da Lei nº 63/90, de 26 de Dezembro. As consequências daí decorrentes não têm, porém, de ser aqui analisadas.
Aqui há tão-só que confirmar o julgamento de inconsti-tucionalidade das normas desaplicadas pelo tribunal a quo.
III - Decisão.
12.Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma constante do nº 2 do artigo 1º da Lei nº 63/90, de 26 de Dezembro, em conjugação com a norma do nº 1 do mesmo artigo, na medida em que elimina as diferenciações de vencimentos entre categorias de magistrados judiciais, por violação das normas conjugadas dos artigos 13º, 59º, nº 1, e 210º, nºs. 1, 3 e 4, da Constituição;
b) Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, 04 de Março de 1998 Fernando Alves Correia Messias Bento Bravo Serra Luis Nunes de Almeida José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa