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Processo nº 494/97
1ª Secção Relator: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 20 de Junho de 1997, o Comando de Santarém da Polícia de Segurança Pública apresentou ao agente do Ministério Público o detido A... por, alegadamente, se encontrar na posse de sete pequenos sacos de um produto estupefaciente. O magistrado do Ministério Público mandou apresentar o detido ao magistrado judicial para primeiro interrogatório, atentos os indícios da prática do crime.
No dia seguinte, sábado, apresentado o detido à Senhora Juíza de Direito do Tribunal de Turno, lavrou esta o seguinte despacho:
'Uma vez que o diploma que criou os Tribunais de Turno (Lei nº 44/96, de 3/09) está ferido de inconstitucionalidade, designadamente na parte em que confere ao Presidente da Relação poderes para designar os magistrados que devem exercer funções nesses Tribunais, o que viola o disposto no Artº 219º da Constituição da República Portuguesa, declaro-me incompetente para assegurar qualquer serviço no
âmbito do Tribunal de Turno. Notifique e dê conhecimento ao Conselho Superior de Magistratura' (a fls. 17)'
Notificado deste despacho, o agente do Ministério Público mandou libertar o arguido de imediato, por não ser 'possível assegurar o prazo de 48 horas para o 1º interrogatório judicial do arguido (art. 254º, alínea a), do Código de Processo Penal)'.
Em seguida, interpôs recurso de constitucionalidade do despacho, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. O recurso foi admitido por despacho de fls. 23.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apresentou alegações o representante do Ministério Público, o qual formulou a seguinte conclusão:
'A Lei nº 44/96, de 3 de Setembro, adopta um sistema de designação dos magistrados judiciais que hão-de exercer funções nos tribunais de turno que pressupõe a sua anterior nomeação e colocação em determinadas comarcas, pelo que, ao atribuir competência ao presidente da relação para fazer tal designação, não está a violar o disposto no artigo 219º, nº 1 da Constituição.' (a fls.
35-36).
3. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver razões que a tal obstem, impõe-se conhecer do objecto do recurso
II
4. Dispõe o art. 90º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei nº
38/87, de 23 de Dezembro, abreviadamente LOTJ), na redacção introduzida pelo art. 1º da Lei nº 44/96, de 3 de Setembro (diploma que cria 50 tribunais de turno):
'1-Nos tribunais judiciais de 1ª instância organizam-se turnos para assegurar o serviço urgente durante as férias judiciais.
2-Para assegurar o serviço urgente previsto no Código de Processo Penal e na Organização Tutelar de Menores que deva ser executado aos sábados, domingos e feriados podem ser criados tribunais de turno.
3- A organização dos turnos referidos no nº 1 e a designação dos magistrados que devem exercer funções nos tribunais de turno competem, conforme os casos, ao presidente da relação ou ao procurador-geral-adjunto no distrito judicial.
4-A organização e a designação referidas no número anterior são precedidas de audição dos magistrados e concluídas, sempre que possível, com a antecedência mínima de 60 dias'.
A mesma Lei nº 44/96, através do seu artigo 3º, alterou o Regulamento da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Decreto-Lei nº 214/88, de
18 de Junho), alterando a redacção do artigo 22º-A deste diploma, sobre tribunais de turno, e do artigo 22º-B sobre os magistrados respectivos.
Não obstante a identificação de natureza genérica da norma desaplicada, constante do despacho recorrido, o objecto do presente recurso é constituído pela questão de constitucionalidade da norma constante do nº 3 do artigo 90º da Lei nº 38/87, na redacção introduzida pelo art. 1º da citada Lei nº 44/96, na parte em que prevê que compete ao presidente da Relação 'a designação dos magistrados judiciais que devem exercer
funções nos tribunais de turno'.
5. A nova redacção de 1996 do art. 90º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais não é totalmente inovadora.
De facto, o art. 1º da Lei nº 24/92, de 20 de Agosto, deu nova redacção ao preceito, estabelecendo o nº 1 desse art. 90º da LOTJ que, nos tribunais judiciais de 1ª instância, se organizam 'turnos para serviço urgente durante as férias judiciais, sábados, domingos e feriados', dispondo o nº 2 que a organização desses turnos compete ao presidente da Relação, fazendo-o, ouvidos os juízes, com a antecedência mínima de 60 dias.
Esta alteração decorreu da entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987, diploma que tornou obrigatória, para as entidades policiais, a comunicação a uma autoridade judiciária da detenção de uma pessoa, em acto subsequente a esta detenção (arts. 254º e 259º).
O Decreto-Lei nº 312/93, de 15 de Setembro, veio aditar ao Regulamento LOTJ os arts 21º-A e 22-A, dando execução à criação dos tribunais de turno. Esta legislação suscitou resistência e dificuldades de aplicação, dando origem à publicação do Decreto-Lei nº 167/94, de 15 de Junho, e da Por
taria nº 514/94, de 8 de Julho. Na prática, os tribunais de turno não chegaram a funcionar.
6. A Senhora Juíza recorrida considerou que a designação dos magistrados judiciais que têm de assegurar o serviço nos turnos pelo presidente da Relação do respectivo distrito judicial viola o disposto no nº 1 do art. 219º da Constituição, na versão em vigor à data da desaplicação daquela norma (a que corresponde, após a quarta revisão constitucional, o nº 1 do art. 217º, na versão introduzida pela Lei Constitucional nº 1/97, de 25 de Setembro).
De harmonia com esse nº 1 do art. 219º, 'a nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes dos tribunais judiciais e o exercício da acção disciplinar competem ao Conselho Superior de Magistratura, nos termos da lei'.
Como põem em relevo Gomes Canotilho e Vital Moreira, a Constituição de 1976, ao confiar a competência para a nomeação dos juízes, bem como a direcção e gestão da magistratura judicial a um órgão constitucionalmente autónomo, o Conselho Superior de Magistratura - em cuja composição tomam parte juízes eleitos -, 'produziu uma das mais significativas inovações em matéria judicial, abolindo toda a intervenção externa directa (designadamente do Governo e da Administração) na nome
ação, colocação, transferência e promoção de juízes dos tribunais judiciais
[...], bem como na respectiva disciplina. Trata-se evidentemente de importantes garantias da sua independência e autonomia face ao poder político' (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 826). De facto, através das competências atribuídas ao Conselho Superior de Magistratura, garante-se a autonomia dos juízes, por um lado - tornando-os independentes do Governo e da Administração - e 'atenua-se de algum modo a ausência de legitimação democrática dos juízes, enquanto titulares de órgãos de soberania'
(ob. cit., págs. 827-828).
7. Procederá a tese da inconstitucionalidade daquele nº 3 do art.
90º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais?
Importará ver, antes de mais, o que são os tribunais de turno organizados pela Lei nº 44/96.
Segundo o art. 22º-A, nº 2, do Regulamento da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais 'o tribunal de turno, instala-se, em regime de rotatividade, em qualquer das comarcas por ele abrangidas nos termos do mapa referido no número anterior e pela ordem alfabética dele constante' (fica excepcionado o regime do tribunal de turno do Porto que se instala no Tribunal de Pequena Instância Criminal respectivo). A rotatividade pre
vista nesta disposição 'toma em consideração a totalidade dos juízes que compõem os tribunais com sede na comarca' (cfr. mapa X anexo ao Regulamento LOTJ, aditado por esta lei).
Por outro lado, e como resulta do art. 23º-A, nº 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei nº 21/85, de 30 de Julho, redacção introduzida pelo art. 2º desta Lei nº 44/ /96), é devido aos magistrados que prestam trabalho suplementar em dias de descanso nos tribunais de turno 'um suplemento remuneratório diário' equivalente a '42% do índice 100 da escala salarial do regime geral do funcionalismo público'.
Para efeitos de prestação de serviço em cada tribunal de turno são considerados 'os magistrados que exerçam funções nos tribunais com sede nas comarcas abrangidas', recaindo a designação, sempre que possível, 'sobre os magistrados que exerçam funções no tribunal onde se encontre instalado o tribunal de turno' (nºs 1 e 2 do art. 22º-B do Regulamento LOTJ). Em cada dia e em cada tribunal de turno é, em regra, designado um juiz e um magistrado do Ministério Público (nas comarcas com uma acentuada especialização de tribunais, com sede nas áreas metropolitanas, são designados mais juízes - cfr. alíneas a) e b) do nº 3 deste art. 22º-B).
Por último, o art. 22º-C do Regulamento LOTJ dis
ciplina a competência e funcionamento destes tribunais de turno, explicitando o nº 1 do preceito que cada tribunal de turno 'tem competência territorial idêntica à dos tribunais normalmente competentes para a execução do serviço urgente que tenham sede em qualquer das comarcas por ele abrangidas, independentemente do âmbito territorial da comarca e do tribunal onde se encontre instalado'. O nº 5 deste artigo estabelece, por último, que, 'no primeiro dia útil subsequente, a secretaria do tribunal onde se encontrou instalado o tribunal de turno remete ao tribunal normalmente competente o expediente relativo ao serviço executado'.
Destas normas resulta, pois, que os tribunais de turno são tribunais eventuais, organizados para assegurar o expediente urgente nos fins de semana e feriados quanto a pessoas detidas, nos termos previstos no Código de Processo Penal e da Organização Tutelar de Menores, instalando-se, através de um sistema de rotatividade, em diferentes tribunais, os quais funcionam, por meio da organização de 'escalas de serviço' para os juízes e magistrados do Ministério Público e para os funcionários das secretarias judiciais (quanto a estes
últimos, veja--se o art. 7º-A do Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro, norma aditada pela Lei nº 44/96). Com a regulamentação referida visa-se evitar que os mesmos magistrados ou os mesmos funcionários estejam sempre de serviço durante os dias de descanso
semanal, admitindo-se uma prestação de serviço de carácter periódico, mas excepcional, que não penalize desproporcionadamente as suas necessidades de descanso.
8. No domínio da regulamentação anterior à introduzida pela Lei nº
44/96 - ou seja, durante a vigência dos citados Decretos-Leis nºs 312/93 e
167/94 e Portaria nº 514/94, os quais organizaram pela primeira vez os tribunais de turno, embora sem qualquer êxito na concretização prática - o Supremo Tribunal de Justiça veio a desaplicar os arts. 21º-A e 22º-A do Regulamento LOTJ
(normas aditadas pelo Decreto-Lei nº 312/93, de 15 de Setembro) com fundamento em inconstitucionalidade, por considerar que tal regulamentação afectava os princípios da separação de poderes, da independência dos tribunais, da inamovibilidade dos juízes, da reserva de lei e da fixação de competência
(acórdão de 19 de Setembro de 1995). Segundo este acórdão, haveria violação do princípio de separação de poderes mesmo que interviesse na designação dos juízes o Conselho Superior da Magistratura (o que sucedia nessa legislação apenas quanto aos tribunais de turno de Lisboa e Porto), por se entender que tal Conselho, 'apesar da sua especial dignidade constitucional', era 'um órgão de natureza administrativa, que, obviamente, não pode regular o funcionamento dos tribunais'. Dessa violação decorreria, como corolário, a violação do princípio da independência dos Tribunais.
Interposto recurso de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional não conheceu do seu objecto por falta de interesse jurídico relevante, dada a publicação entretanto ocorrida da Lei nº 44/96 (acórdão nº 1199/96, ainda inédito).
9. No caso sub judicio - e porque todo o regime dos tribunais de turno consta agora de lei parlamentar e não de decreto-lei, como sucedia anteriormente com os Decretos-Leis nºs 312/93 e 167/94, - a Senhora Juíza recorrida considerou que a designação dos juízes para os tribunais de turno não podia caber ao presidente do Tribunal de Relação do respectivo distrito judicial, porque tal competência tinha constitucionalmente de pertencer ao Conselho Superior da Magistratura.
Não pode partilhar-se este ponto de vista.
Como põe em destaque o Senhor Procurador-Geral Adjunto, nas suas alegações, não está em causa agora a nomeação de um juiz para um tribunal
'permanente', a qual tem de ser feita pelo Conselho Superior da Magistratura, nos termos do disposto nos arts. 40º a 45º do Estatuto dos Magistrados Judiciais. O que está em causa é tão-somente a organização de escalas rotativas de organização de trabalho suplementar esporádico durante os sábados, domingos e feriados em tribunais de turno, organizados de forma eventual para assegurar a prática de actos judiciais urgentes naqueles dias:
'Segundo o nº 1 do artigo 22º-B [...], a prestação de serviço em cada tribunal de turno compete aos magistrados que exerçam funções nos tribunais com sede nas comarcas abrangidas pelo tribunal de turno, e, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, a designação referida nos nºs 3 e 4 do artigo 90º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, recai, sempre que possível, sobre os magistrados que exerçam funções no tribunal onde se encontra instalado o tribunal de turno. Ou seja, a Lei nº 44/96 adopta um sistema de designação que pressupõe a anterior nomeação e colocação dos magistrados em determinadas comarcas, não prevê ela própria a sua nomeação e colocação para exercer funções nos tribunais de turno'.
(a fls. 34-35)
Neste contexto, a atribuição de competência ao presidente do Tribunal da Relação do respectivo distrito judicial - juiz que, além de precidir ao plenário do Tribunal, dispõe de competências administrativas, nomeadamente a de dar posse aos vice-presidentes, aos juízes Desembargadores, ao secretário do Tribunal e, ainda, 'aos juízes de direito da sede do respectivo distrito judicial' (art. 42º, nº 2, LOTJ) - para organizar as listas de serviço suplementar, designando, em casos pontuais, a ordem por que os juízes do respectivo distrito asseguram rotativamente funções aos fins de semana nos tribunais de turno, não viola o art. 219º, nº 1, da Constituição. Trata-se do asseguramento de uma tarefa administrativa de coordenação a cargo do magistrado de maior grau hierárquico do distrito judicial que não viola nem as competências constitucionais do Conselho Superior da Magistratura, nem o princípio de independência dos Tribunais, visto que o Governo e a Administração Judiciária dele dependente não intervêm nesse processo de designação.
10. O recurso há-de, assim, proceder.
III
11. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso.
Lisboa, 5 de Março de 1998 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa