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Procº nº 836/96 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. R... foi, em 22 de Novembro de 1993, acusada pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal Criminal da Comarca do Porto da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo
11º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, com referência aos artigos 313º e 314º, alínea c), do Código Penal.
2. Tendo sido requerida a abertura da instrução, em 13 de Dezembro de 1993, veio o debate instrutório a ter lugar, em primeira marcação, no dia 18 de Janeiro de 1995, no Tribunal de Instrução Criminal do Porto, sem a presença da arguida - que posteriormente veio a juntar atestado médico comprovativo da
ausência -,nem do seu mandatário - que, por fax de 23 de Janeiro, veio invocar um atraso de trinta minutos (suficiente para, entretanto, se ter dado por concluído o debate), requerer a repetição deste e arguir diversas nulidades da decisão instrutória.
Indeferido o requerido e a arguição de nulidades, por despacho de 21 de Fevereiro do Mmº Juiz do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, a arguida interpôs recurso de tal despacho e da decisão instrutória para o Tribunal da Relação do Porto. No tribunal a quo, foi admitido o recurso do referido despacho, sem efeito suspensivo, para subir com o recurso interposto da decisão que tiver posto fim à causa, mas já não foi admitido o recurso da decisão instrutória, por, face ao disposto no artigo 310º do Código de Processo Penal, tal decisão ser irrecorrível (despacho de 7 de Abril de 1995). Neste despacho, o Mmº Juiz do Tribunal de Instrução Criminal do Porto acrescentou:
'Por outro lado, diga-se ainda que, mesmo que aquela decisão instrutória recorrível fosse, sempre o recurso dela interposto também não seria admitido por extemporâneo, tendo em conta que a arguida foi notificada de tal decisão em 31 de Janeiro de 1995 (cfr. certidão de fls. 166) e o requerimento de interposição deu entrada na Secretaria deste Tribunal em 20 de Março de 1995
(cfr. fls. 175), portanto, já há muito decorrido o prazo do artigo 411º, nº 1 do C.P.P.'.
3. Ainda insatisfeita, apresentou a arguida, em 29 de Maio de 1995, reclamação do despacho de 7 de Abril de 1995, que não admitiu o recurso da decisão instrutória, concluindo do seguinte modo:
'C.1- O recurso da decisão instrutória nula pressupõe a arguição da respectiva nulidade no prazo de 5 dias previsto nos artigos 120º, 3, b), e 309º,
2, do C.P.P., e, não sendo atendida tal arguição o recurso do despacho de indeferimento consome e abarca, com fundamento na nulidade da decisão instrutória (nulidade desta mesma e nulidade dos actos que esta perfilhou).
Por isso, enquanto restrito às questões de nulidade (com aquele
âmbito) da decisão instrutória, o despacho reclamado não podia admitir o recurso enquanto se diz impugnar o despacho que indeferiu a arguição de nulidades e rejeitar expressamente o mesmo recurso enquanto dirigido à decisão instrutória.
C.2- Também por isso é nos dez dias após a notificação do despacho que indeferiu a arguição de nulidade da decisão instrutória que há-de interpôr-se o recurso pelo qual se impugne não só esse despacho, mas também a decisão instrutória, enquanto nula.
C.3- A decisão instrutória é recorrível sempre que padeça de nulidade insuprível, designadamente por falta de pronúncia, por absoluta falta de fundamentação ou por fundamentação manifestamente contraditória e por desrespeito do princípio do contraditório e do direito à presença do arguido no debate - o que tudo ocorre no caso 'sub judice', como acima se demonstrou.
Do disposto no artigo 309º, nº 1, do C.P.P., não resulta a degradação das nulidades da decisão instrutória (ou dos actos nela perfilhados) aplicáveis a todos os despachos - porventura mais graves que a
prevista naquele 309º, nº 1, como seria o caso, por exemplo da absoluta omissão da instrução ou, como no caso presente, da decisão instrutória que faz tábua rasa da instrução -, designadamente as nulidades por violação do disposto nos artigos 119º, c), 300º, nºs. 1 e 3, 97º, 4, 374º, 2, e 379º, a) do C.P.P., e 2º,
32º, nºs. 1 e 5º e 208º, nº 1, da Constituição.
C.4- Interpretados doutro modo e no sentido da irrecorribilidade da decisão instrutória quando enferma doutras nulidades que não a do artigo 309º, nº 1, os ditos normativos dos artigos 309º e 310º do C.P.P. seriam materialmente inconstitucionais, por violação dos preceitos da Lei Fundamental já referidos na conclusão anterior e ainda dos artigos 18º da mesma.
C.5- Pelas mesmas razões e ainda com apelo à recente evolução do sistema constitucional que flui, nomeadamente, da nova redacção do artigo 268º, nº 4, da Lei Fundamental, considerada a alta carga axiológica negativa consequente para o arguido de uma pronúncia ilegal, desde logo lesiva da sua honra e do seu bom nome social e comercial, resulta impor-se a subida imediata do recurso que tem por objecto a arguição de nulidade da decisão instrutória (e da instrução), sob pena ainda, de violação das referidas disposições da Lei Fundamental, mas também do prescrito no artigo 407º, nº 1, al. i) do C.P.P.'.
4. Por despacho de 22 de Junho de 1995 do Presidente do Tribunal da Relação do Porto, foi indeferida tal reclamação - o que motivou, em 15 de Setembro de 1995, nova arguição de nulidade por omissão de pronúncia quanto à subida apenas diferida do recurso, por um lado, e por outro, por insuficiência de fundamentação 'também no limiar da falta de pronúncia e enquadrável como tal' quanto à questão de 'saber se a arguição de nulidades da decisão instrutória suspendia (leia-se: interrompia) o prazo de interposição do recurso daquela'.
5. Indeferida esta nova arguição de nulidade, por despacho de 1 de Julho de 1996 do Presidente do Tribunal da Relação do Porto, trouxe a arguida recurso a este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º e dos artigos 75º e 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), quanto ao entendimento restritivo, professado no despacho do Presidente do Tribunal da Relação do Porto, do artigo 310º do Código de Processo Penal, ao 'só admitir recurso (nos termos do seu nº 2), seja contra a pronúncia com base em lei incriminatória inconstitucional, seja contra o indeferimento da arguição de nulidades da decisão instrutória, quando se verifique a pronúncia por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação'.
Nas suas alegações produzidas neste Tribunal, a recorrente concluiu assim:
'1ª- O trânsito em julgado da pronúncia ou o despacho equivalente (quando à acusação não se segue a abertura de instrução), afastando o sigilo processual, são susceptíveis, desde logo, de causar lesões irrepa- ráveis na honra e no património do arguido:
-os frequentes anúncios (notícias e comentários) na imprensa das decisões instrutórias de pronúncia condemam-no na opinião pública.
-relativamente aos crimes de cheque sem provisão - como é o caso dos autos -, os sistemas de infor- mações comerciais, a partir da pronúncia, veiculam a informação, prejudicando-se, com isso, o crédito e o nome comercial do arguido.
-A pronúncia é, desde logo, levada ao registo criminal (artigo 3º, a) do Decreto-Lei 39/83, de 25/1), maculando o arguido e prejudicando-o na habilitação em concursos e no acesso a determinados tipos de actividades.
-A partir do trânsito da pronúncia, o arguido já está, pelo menos, sujeito aos constrangimentos do 'Termo de Identidade e de Residência' (artigo
196º, nºs. 1 e 2 do CPP), obrigado, no mínimo, a comunicar as ausências da residência por mais de cinco dias e a manter-se à disposição do Tribunal, deixando a sua actividade e o seu ganha-pão sempre que o Tribunal mande comparecer - o que, não raras vezes, significa a perda de dias e dias de trabalho e deslocações, despesas e prejuízos e lucros cessantes que nunca lhe serão reparados (artigo 225º do CPP).
-E se o arguido for de férias e se esquecer de avisar o Tribunal, não comparecer a Tribunal quando convocado, não justificando a falta, por esquecimento, erro de apontamento da data ou de contagem do prazo, se a moldura penal do crime pelo qual está pronunciado não for de somenos, está sujeito a um agravamento das medidas de coacção, incluindo a ameaça de prisão preventiva
(artigo 203º do CPP) e a quebra da caucão prestada (artigo 208º do mesmo diploma), pagamento de uma sanção entre 24.000$00 e 120.000$00 ou a passar pelo vexame da detenção para comparência (artigo 116º, nºs. 1 e 2, do CPP).
-A partir do trânsito da pronúncia, a presunção de inocência passa a ser um conceito muito relativizado: o 'inocente' passa a ter um regime criminal que inspira cuidados; o 'inocente' passa a estar sujeito a medidas de COACÇÃO; o inocente passa, até na terminologia da Constituição a considerar-se com o estatuto de 'culpa formada' e, por isso, mais sujeito a uma prisão preventiva
(artigo 28º, nº 1 da Lei Fundamental.
-não é de desprezar a consideração das despesas que o arguido normalmente suporta para cuidar da sua defesa. Elas são naturalmente menores quando o processo é arquivado em fase de instrução do que quando o processo chega a julgamento: é o advogado, são as testemunhas, são as deslocações e o tempo gasto pelo próprio arguido, são os possíveis adiamentos por acumulação de serviço do Tribunal e especialmente por falta de comparência dos co-arguidos.
-Aquele vexame do arguido sentado no banco dos réus, em audiência pública e - quando não - com o acompanhamento diário da imprensa e dos seus palpites, só é considerado uma afirmação de dignidade por quem nunca passou por essa experiência.
2ª- É indiscutível que a constituição de arguido e, mais gravosamente, o trânsito em julgado da pronúncia, especialmente quando referidos a crimes a que correspondam molduras penais elevadas colocam o indivíduo numa situação de restrição das suas liberdades e garantias, condicionando e determinando, só por si (as ditas situações de constituição de arguido ou de pronunciado), a aplicação de medidas de coacção, até a prisão preventiva, e - ainda que a lei diga o contrário! - o enxovalhamento do nome na via pública, os vexames, os custos de contratar um bom advogado, a perda de tempo, a perda de oportunidades e de negócios - o que o Estado nunca mais reparará, salvo o caso de prisão ou detenção (mas mesmo aí em condições muito restritas). Isso é o inverso da liberdade, e da garantia do bom nome!
3ª- O trânsito em julgado da pronúncia, quando esta seja manifestamente injustificada, não fundamentada, inquinada de grosseira apreciação das provas e de erro grosseiro na aplicação da lei, dos tratados e da Constituição, é, desde logo, e na prática, um atentado à sua liberdade (designadamente de viver onde quiser e pelo tempo que quiser), ao bom nome, à reputação do arguido e ao seu património. A pronúncia agrava por si só a posição do arguido perante as medidas cautelares, como pressuposto autónomo qualificativo independen- temente da exacta medida delas - o que até é reconhecido pela Constituição (artº 28º).
4ª- Dispõe a Lei Fundamental que 'a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salva- guardar outros direitos ou interesses constitu- cionalmente protegidos' (artº 18º, nº 2).
5ª- Por isso, antes do CPP de 1987, sempre a lei ordinária admitiu e favoreceu o recurso, com conhecimento imediato, do despacho de pronúncia.
É manifesto que as restrições impostas pelo Código de 1987 não foram ditadas por razões doutrinais ou de regime, mas só por razões conjunturais de sobrecarga dos tribunais.
6ª- A irrecorribilidade da decisão instrutória não fundamentada é susceptível de levar e tem levado, na prática, alguns juízes e Tribunais a procurarem, por sistema, desmotivarem o recurso a essa fase do processo, quando precedida de acusação, seguindo a 'política' de, por norma, receberem sempre as acusações do M.P.
Como se vê nos presentes autos, a decisão instrutória não cuida de fundamentar minimamente a adesão à acusação.
Apesar do alto merecimento e espírito de missão da classe dos magistrados, trata-se de um risco sério que macula a justiça, ainda que tal desvirtuamento apenas ocorra em casos excepcionais.
7ª- A desejada celeridade da justiça não pode levar ao extremo de se permitir que seja retirada a dignidade à instrução, ao ponto de se impedir o recurso da respectiva decisão final, ainda que esta faça tábua rasa de tudo o que se tenha apurado ao longo de tal procedimento e ainda que não se preocupe minimamente em justificar, concretamente, a punibilidade da conduta do arguido face à lei e à Constituição.
Então, para que importaria que a Lei Fundamental se preocupasse com a defesa do Princípio do Contraditório na instrução (no nº 32º, 5), se, afinal, descuida o respeito pelos Princípios da Pronúncia (não denegação da justiça) e da Fundamentação (consagrados nos artºs 2º, 20º e 208º, nº 1), que são apanágio da função judicial?
E, por outro lado, de que serviria aos destinatários concretos de cada processo judicial uma fiscalização apenas disciplinar ou curricular do respeito por tais princípios?
8ª- É absurdo que exactamente quando a mais recente evolução do regime constitucional - mesmo no recurso judicial dos actos administrativos, no qual é sempre garantido o duplo grau de apreciação judicial - vai no sentido de assegurar aos cidadãos que impugnem, desde logo, quaisquer decisões ilegais ainda que não definitivas, bastando que se verifique uma lesão imediata dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (Vide a redacção que pela revisão de 1989 foi dada ao nº 4 do artº 268º, da Lei Fundamental, em paralelo com o nº
3 da redacção anterior) se venha justificar, no recurso penal, o retrocesso para a irrecorribilidade da constrangedora decisão de pronúncia, mesmo que nem minimamente fundamentada, nem de facto, nem de direito.
9ª- É manifesto que a censura penal decorrente da pronúncia (em processo crime) atinge, a maior parte das vezes, valores do cidadão (honra, consideração social, crédito e nome comercial) de muito maior carga axiológica que a daqueles valores que podem ser atingidos por uma decisão interlocutória, mas desde logo danosa, no procedimento administrativo.
E, por outro lado, abstraindo deste ou daquele caso concreto, o tempo que medeia entre os actos interlocutórios lesivos no procedimento administrativo e a decisão final deste não é necessariamente maior - antes pelo contrário - que o decorrente entre a pronúncia e a decisão definitiva em processo crime. Veja-se, por exemplo, o caso dos processos com vários arguidos que frequentemente se vêem adiados, por meses e anos em fase de julgamento.
10ª- Enquanto interpretado no sentido da irrecorribilidade da decisão instrutória nula por falta de pronúncia quanto às questões de facto e de direito
(designadamente a punibilidade da conduta face à lei, aos Tratados e à Constituição, questões que se deduziram no caso destes autos e não obtiveram
qualquer apreciação na decisão instrutória) e por falta ou obscuridade grave de fundamentação (no caso dos autos chegou-se ao cúmulo de a decisão instrutória deixar passar em branco, sem qualquer apreciação, apesar dos protestos da arguida, o facto de o crime lhe ser imputado por alegadamente ter emitido uma declaração escrita junta aos autos, quando é certo e manifesto da respectiva leitura que tal declaração foi emitida pelo seu co-gerente) o artº 310º do CPP é inconstitucional, por violação do disposto nos artºs. 2º, 18º, 20º, 32º e 208º da Lei Fundamental.
11ª- O Princípio do Estado de Direito (artº 2º da Constituição) exige que a decisão instrutória como decisão judicial que é, quando precedida de acusação, cumpra a função para a qual foi concebida no final da fase de instrução - no sentido de arquivamento ou da pronúncia - ponderando e justificando, ainda que sumariamente face à lei e às provas constantes dos autos, se conduta factual se verifica e se ela é punível à face da Constituição, dos Tratados internacionais e da Lei. Se a decisão instrutória, apesar de omitir tal função e tal enquadramento, não é recorrível, então é violado o Princípio do Estado de Direito.
12ª-Se não pode recorrer-se, em tempo útil, da decisão instrutória à qual falte aquela ponderação e fundamentação, então estão negadas, na prática, as garantias de deefesa e toda a utilidade do contraditório que a Constituição pretendeu assegurar no seu artº 32º, nºs. 1 e 5.
13ª- A irrecorribilidade, em tempo útil, da decisão instrutória não fundamentada, é, afinal, clara violação do dever de fundamentação das decisões judiciais (artº 208º, nº 1, da Constituição), porque, na falta de recurso, tal princípio fica letra morta, sem o controlo dos cidadãos, apenas sujeito, quando muito, a uma fiscalização disciplinar corporativa.
14ª- A irrecorribilidade da decisão instrutória que padeça de omissão de pronúncia representa também uma displicente denegação de justiça que os cidadãos
deveriam poder exigir, mesmo os carentes de meios económicos (artº 20º da Constituição).
15ª- A falta de controlo da decisão instrutória, através do direito de recurso é também, como acima se disse, negação do princípio da limitação das restrições ao mínimo necessário (artº 18º, nº 2, da Constituição).
Se de tudo se pode recorrer apenas e só da sentença final, ainda que a decisão instrutória só formalmente não seja totalmente omissa, então a instrução, quando precedida de acusação, não tem razão de ser. Acabe-se com ela, se a Constituição deixar (artº 32º, nº 4)'.
Por sua vez, o Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal suscitou a questão prévia da inutilidade do presente recurso, por impossibilidade de a resolução da questão de constitucionalidade suscitada se reflectir 'no concreto sentido da decisão recorrida', já que 'a decisão proferida pelo Exmº Presidente do Tribunal da Relação considera ocorrer uma outra causa - a extemporaneidade do recurso - que, só por si, seria suficiente para condenar ao insucesso a pretensão da ora reclamante, levando à rejeição do recurso por ela interposto. Isto sem prejuízo de acrescentar que 'está perfeitamente sedimentado na jurisprudência constitucional que a norma constante do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, impugnada nos autos, não padece de qualquer inconstitucionalidade - cfr. o acórdão nº 265/94, para cuja fundamentação inteiramente se remete'.
6. Ouvida sobre a questão prévia suscitada, a arguida escreveu, designadamente, o seguinte:
'Se o TC decidir, como deve, pela inconstituciona- lidade os artº 310º do CPP enquanto interpretado no sentido de permitir ficcionar como dois recursos com tratamentos diferenciados,
aquele em que se recorre da decisão instrutória por nulidade desta, já reapreciada pela sua tempestiva arguição,
e aqueloutro em que se recorre da mesma decisão com qualquer outro fundamento,
essa decisão terá o seu efeito útil, uma vez que, no caso em análise, estamos exactamente perante um recurso com fundamento na nulidade da decisão instrutória,
interposto, no prazo legal (como é reconhecido nas decisões recorridas), após a decisão do respectivo requerimento de arguição de nulidades,
requerimento, por sua vez, tempestivamente deduzido'.
7. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir.
II - Fundamentos.
8. O recurso de constitucionalidade intentado ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) depende da verificação de certos requisitos específicos:
a) suscitação, durante o processo, da inconstitucionalidade de uma ou mais normas jurídicas;
b) aplicação da norma, ou normas, impugnada (s) pela decisão recorrida;
c) inadmissibilidade de recurso ordinário de tal decisão.
No caso vertente, a arguida sustentou a inconstitucionalidade da norma do artigo 310º do Código de Processo Penal na 'motivação do recurso do despacho de fls. 168 que indeferiu a arguição de nulidades da decisão instrutória e da própria decisão instrutória', mantendo tal posição na reclamação que, em 29 de Maio de 1995, dirigiu ao Presidente do Tribunal da Relação do Porto. Por outro lado, a decisão recorrida - que é o despacho do Presidente do Tribunal da Relação do Porto, de 22 de Junho de 1995, já que este consome a decisão reclamada (veja-se, por todos, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 323/94, publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Junho de 1994) - aplicou aquela norma, no sentido impugnado, e constitui, como se escreveu no Acórdão citado, 'a última palavra dentro da ordem judiciária a que pretence o tribunal que a tomou'. Ora, tendo o tribunal recorrido analisado a questão de constitucionalidade, esta 'não foi apresentada ao Tribunal Constitucional como uma questão nova, que é o que a lei, em direitas contas, pretende evitar, quando exige que ela seja suscitada durante o processo perante o tribunal recorrido' (cfr. o Acórdão nº 102/95, publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Junho de 1995).
É certo que, uma vez que o despacho de pronúncia é irrecorrível, poderia pensar-se que a invocação da inconstitucionalidade da norma que estabelece tal irrecorribilidade se situa necessariamente fora do processo, desde que uma tal suscitação não tivesse sido feita durante o debate instrutório. Porém, a mais de, no caso, se invocar precisamente a falta do advogado da recorrente em tal debate, a verdade é que foi deduzida arguição de nulidade, sendo esta recorrível nos termos do nº 2 do artigo 310º do Código de Processo Penal. E, como se viu, na motivação de tal recurso - e na subsequente reclamação - a recorrente suscitou a questão, não a tendo abandonado (cfr.os Acórdãos nºs. 36/91, 468/91 e 187/97, publicados, respectiva- mente, no Diário da República, II Série, de 22 de Outubro de 1991, 24 de Abril de 1992 e 12 de Maio de 1997).
Estando preenchidos os pressupostos específicos de conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada, cumpre, preliminarmente ainda, ponderar a questão da extemporaneidade do recurso que se pretendeu interpor da decisão instrutória.
É que, quer o despacho de 7 de Abril de 1995 do Mmº Juiz do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, quer o despacho impugnado do Presidente do Tribunal da Relação do Porto assentam numa dupla fundamentação: por um lado, o artigo 310º do Código de Processo Penal não admite o recurso que se pretende interpor; por outro, ainda que, em abstracto, tal recurso pudesse ser intentado, em concreto não o poderia ser, por se ter excedido o prazo para a sua interposição. Como a resolução da questão de inconstitucionalidade só poderia, se decidida no sentido favorável à recorrente, afastar aquele primeiro obstáculo, sempre permaneceria intacto este segundo, pelo que em nada interferiria com a solução da questão fundamental de direito, em relação à qual o recurso de constitucionalidade é instrumental (cfr., designadamente, os Acórdãos deste Tribunal nºs. 272/94 e 463/94, publicados no Diário da República, II Série, de 7 de Junho e 22 de Novembro de 1994).
Assim sendo, não se justificaria, pois, conhecer do recurso, já que, em qualquer caso, ele não teria qualquer repercussão na decisão recorrida.
9. Ora, as referidas decisões sobre a extemporaneidade da apresentação do recurso assentam na solução dada a uma questão não expressamente abordada nelas: a da interferência da arguição de nulidade - que, no entanto, a recorrente suscitou -, quer na reclamação de 29 de Maio de 1995, dirigida ao Presidente do Tribunal da Relação do Porto, quer na subsequente arguição de nulidades do despacho deste, nos seguintes termos:
'A.11- Padece aquele despacho de fls. 168 de erro manifesto, quando aí se diz que o requerimento de arguição da nulidade do debate e da decisão instrutórios
'deu entrada neste Tribunal decorridos já 5 dias'. Na verdade o debate realizou-se em 18/1/95 (acta de fls. 148) e a decisão foi exarada na respectiva acta (mesma data), sendo notificada à arguida na pessoa do mandatário constituído por carta registada no serviço emissor em 19/1/95 (5ª feira), pelo que se tem por recebida em 23/1 (2ª feira).
Ora, nesse mesmo dia 23/1/95 (portanto, também antes do 5º dia útil, mesmo a contar de 18/1) a arguida apresentou no Tribunal, via fax oportunamente confirmado com entrega do original, o requerimento de arguição de nulidades.
A.12- Tendo sido notificado em 6/3/95 (2ª feira) aquele despacho de fls. 168
(datado de 21/2/95) que indeferiu o requerimento de arguição das nulidades do debate e da decisão instrutória, a reclamante apresentou o recurso daqueles debate e decisão instrutória e do próprio despacho de fls. 168 em 20/3/95, seja, dentro do 10º dia posterior à notificação'.
Para se afirmar a intempestividade, é preciso, portanto, considerar que a invocação de nulidades não interfere com os prazos de apresentação de outros recursos. O problema, porém, é que o próprio processo demonstra não ser este entendimento uniforme, porquanto o recurso do despacho de 22 de Junho de 1995, do Presidente do Tribunal da Relação do Porto, interposto para o Tribunal Constitucional, apresentado naquele Tribunal em 29 de Outubro de 1995, foi aí expressamente considerado tempestivo - o que só se pode explicar por o prazo para a interposição deste recurso só ter começado a contar a partir da notificação à parte (em 15 de Outubro de 1996) da decisão proferida em 1 de Julho de 1996 sobre tal arguição de nulidades.
É certo que não cabe a este Tribunal sindicar a interpretação do direito ordinário feita nos outros Tribunais, a não ser quando tal implique uma questão de constitucionalidade (cfr. os Acórdãos deste Tribunal nºs. 32/86,
353/86, 339/87 e 153/90, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 9 de Maio de 1986, de 16 de Dezembro de 1986, de 19 de Setembro de
1987 e de 3 de Maio de 1990).
Porém, a invocada inutilidade da decisão deste Tribunal sobre o sentido da decisão recorrida dependeria de um entendimento uniforme sobre a interferência (ou não interferência) das arguições de nulidades nos restantes prazos de recurso, que se evidencia dos autos não existir.
Nestes termos, vai o Tribunal Constitucional apreciar a questão de constitucionalidade suscitada, para que, caso venha a ser decidida no sentido favorável à recorrente, possa o tribunal a quo emitir um juízo definitivo sobre uma questão efectiva, e não meramente hipotética, como o foi à altura da sua primeira pronúncia sobre a tempestividade do pretendido recurso.
10. Uma decisão favorável à recorrente só ocorrerá se houver razões para alterar a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a norma impugnada: vejam-se os Acórdãos nºs. 265/94 e 610/96, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1995 e de 6 de Julho de 1996 (na sequência, aliás, de anteriores decisões sobre o equivalente artigo 390º, nº 2 do Código de Processo Penal de 1929, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 377/77, de 6 de Setembro). Tais razões, porém, não se verificam . É certo que, formalmente, o presente recurso abrange as normas do artigo 310º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Penal, ao passo que naqueles arestos só foi analisada a questão da constitucionalidade da norma do seu nº 1. No entanto, estando em causa a eventual inconstitucionalidade da irrecorribilidade do despacho de pronúncia na situação descrita supra, no relatório, ela decorreria directamente da norma do nº 1 - onde se fixa a irrecorribilidade da pronúncia - e só indirectamente da norma do nº 2 - onde se fixa uma única excepção (rectius, um sucedâneo, na medida em que o que é alvo de recurso continua a não ser a decisão de pronúncia, mas sim o despacho que indeferiu a arguição da nulidade desta, nos casos previstos no artigo 309º). Tal não impede, todavia, que se possa formular um juízo autónomo sobre a norma nº 2 do artigo 310º, tanto mais que os fundamentos de inconstitucionalidade invocados pela recorrente vão para além daqueles que já foram apreciados por este Tribunal. Vejamos então.
10.1. Em relação à norma do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, a invocada violação das garantias de defesa (artigo 32º, nº 1, da Constituição) foi analisada no já referido Acórdão nº 610/96. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, invoca-se especialmente o nº
5 do artigo 32º da Constituição (princípio do contraditório no julgamento e nos actos instrutórios), mas tal não implica, no caso, um alargamento das garantias de defesa já reconhecidas no nº 1 do artigo 32º da Lei Fundamental, porquanto nem estamos perante actos instrutórios (sim no seu termo), nem, na própria letra daquele nº 5 do artigo 32º, o princípio do contraditório vale fora dos termos da lei.
Por sua vez, a pretensa violação do artigo 2º da Lei Fundamental é demasiado vaga para se ter verificada no caso, até porque o princípio do Estado de direito opera na circunstância através de subprincípios densificados noutros preceitos constitucionais, sendo, por isso, dispensável a sua invocação directa.
Quanto à suposta violação (indirecta) do artigo 8º da Constituição, por alegado desrespeito do 'disposto no artigo 1º do Protocolo nº 4, adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem anexo à Lei 65/78, de 13/10', não tem o Tribunal Constitucional que tomar este preceito como padrão autónomo de um juízo de constitucionalidade: é que (suposto que, em matéria de direitos do homem, o controlo de constitucionalidade abrange o confronto das normas suspeitas de inconstitucionalidade com os preceitos jurídico-internacionais recebidos in foro domestico), ele nada diz que se não contenha já nas normas constitucionais (cfr. os Acórdãos nºs. 440/87, 99/88, 149/88, 124/90 e 935/96, publicados no Diário da República, II Série, de 17 de Fevereiro de 1988, 22 de Agosto de 1988, 17 de Setembro de 1988, 8 de Fevereiro de 1991, e 11 de Dezembro de 1996, respectivamente).
Também a hipotética violação do artigo 208º da Constituição (e dos seus artigos 2º, 18º, 20º e 32º), por a falta ou obscuridade grave da fundamentação da decisão instrutória não darem origem a recurso, desloca o problema da sua sede própria: a haver inconstitucionalidade de alguma norma legal seria a da norma do artigo 97º do Código de Processo Penal [no entendimento segundo o qual a fundamentação que nele se impõe para o despacho de pronúncia (e outros actos decisórios) tem um conteúdo insuficiente para dar cumprimento à exigência constitucional) - norma essa cuja inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo e, por isso, não faz parte do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
Finalmente, a norma do artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal não infringe o nº 2 do artigo 18º da Constituição, ou seja, o princípio da limitação das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias ao mínimo necessário. Como se escreveu no Acórdão nº 610/96, já citado:
'...o que se questiona no presente recurso é se o desígnio de celeridade, que é consagrado constitu- cionalmente, legitima a irrecorribilidade de certas decisões instrutórias: justamente os despachos de pronúncia que não alteram os factos constantes da acusação do Ministério Público. E a resposta a essa questão indica que a celeridade não só é compatível com as garantias de defesa, podendo coincidir com os fins de presunção de inocência, como é instrumental dos valores
últimos do processo penal - a descoberta da verdade e a justa decisão da causa
-, próprios de um Estado democrático de direito'.
10.2. Os argumentos referidos anteriormente podem ser convocados, mutatis mutandis, em relação à norma do nº 2 do artigo 310º do Código de Processo Penal, a qual determina a recorribilidade do despacho que indeferir a arguição de nulidades da decisão instrutória que pronunciar o arguido. Tal regime excepcional em relação à regra estabelecida no nº 1 do mesmo artigo não viola o princípio da igualdade, plasmado no artigo 13º da Constituição. Como recentemente se escreveu no Acórdão nº 241/97 (inédito),
'o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República, impõe [que] se dê o mesmo tratamento ao que for essencialmente igual e se trate de maneira diferente o que for essencialmente desigual. Tal princípio não proíbe soluções jurídicas diferenciadas, apenas veda o arbítrio legislativo, as soluções legais que, por carecerem de fundamento material ou racional, sejam irrazoáveis ou injustificadas. Se houver motivo capaz de fundar materialmente o regime jurídico estabelecido, não é o facto de ele ser um regime especial ou, mesmo, excepcional que o torna ilegítimo ratione constitutionis, que o mesmo é dizer no confronto com a exigência de igualdade que a ideia de justiça, própria de um Estado de Direito, faz ao legislador'.
Seja como for, a impugnação da constitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 310º traduz-se, ao cabo e ao resto, na impugnação da constitucionalidade da norma do artigo 309º do Código de Processo Penal - o que fica já fora do perímetro de averiguação do Tribunal, uma vez que tal norma não faz parte do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
Dir-se-á, por fim, que assim como a condenação de um inocente não implica automaticamente a inconstitucionalidade da norma que foi invocada na sua condenação, também a eventual incorrecção de uma decisão de pronúncia não chega para tornar inconstitucional a norma que impede o recurso de tal decisão.
Há, assim, que concluir que as normas dos nºs. 1 e 2 do artigo 310º do Código de Processo Penal não são inconstitucionais.
III - Decisão.
11. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, o5 de Março de 1998 Fernando Alves Correia Messias Bento Bravo Serra José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida