Imprimir acórdão
Processo nº 63/96
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feira, A. instaurou acção declarativa com processo sumário contra o Estado, pedindo se declare: (a) nunca ter existido qualquer mútuo entre a A. e os accionistas da empresa; (b) inexistir qualquer facto tributável, nomeadamente a existência de mútuo ou abertura de crédito entre a A. e os accionistas da empresa que legitime ao Estado a liquidação do imposto de capitais à A. relativamente aos exercícios de 1985 e 1986; e, caso assim não seja entendido, (c) se declare que o mútuo que pudesse ter existido entre a A. e os accionistas constitui um mútuo gratuito, não auferindo a A., nem tendo auferido, nem tendo a possibilidade de vir a auferir pelos factos descritos, quaisquer rendimentos ou juros nos exercícios de 1985 e 1986; (d) que se declare que não existem factos legitimadores da liquidação pelo Estado do imposto de capitais, por inexistência de facto tributável.
Para tanto, alegou ter sido notificada para proceder ao pagamento da quantia de 1.391.952$00, relativa a imposto de capitais e juros compensatórios, com referência aos anos de 1985 e 1986, devidos pela existência de movimentos nas contas dos seus accionistas, movimentos estes que, por presunção, foram considerados pelos serviços, um mútuo ou abertura de crédito a seu favor.
Contudo, não existiu uma tal situação, limitando-se os accionistas a levantar os créditos que tinham depositado em contas que possuíam e possuem na Sociedade A., nunca tendo esta liquidado juros ou outra remuneração aos sócios ou estes à A..
Por sentença de 14 de Maio de 1993, foi a acção julgada improcedente e absolvido o Estado.
Para tanto, aduziu-se a fundamentação seguinte:
'Fixando o quadro legal em que se move a presente acção, demonstrado ficou que existiram movimentos das contas dos accionistas da A. nos anos de 1985 e 1986, considerando-se pois tais movimentos mútuos, para efeitos do artigo 14º do C. Imposto de Capitais.
Tendo em atenção a redacção vigente do parágrafo 2º do referido artigo a existência de mútuos entre a sociedade e os accionistas, nos termos referidos, não é ilidível, para efeitos de tributação, ao contrário, por exemplo da existência de mútuo ou abertura de crédito da sociedade em relação a terceiros ou vice-versa.
Trata-se de uma presunção juris et de jure que não admite prova em contrário (artigo 305º do C. Civil).
Sendo essa presunção inelidivel, ao contrário do que se passava na versão anterior (na qual concerteza se baseou a A. ao propor a acção) outra não pode ser a decisão do que a improcedência de todo o pedido'.
*///*
2 - Não conformada com o assim decidido, levou a A. recurso ao Tribunal da Relação do Porto, havendo nas alegações além do mais, suscitado a questão de inconstitucionalidade da norma contida no § 2º do artigo 14º do Código de Imposto de Capitais, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 197/82, de
21 de Maio, que afasta 'a inelidibilidade da presunção legal nos mútuos ou aberturas de créditos das sociedades comerciais aos sócios'.
Por acórdão de 14 de Novembro de 1995, foi concedido parcial provimento ao recurso, revogando-se a sentença impugnada na parte relativa à questão de constitucionalidade, já que se desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma do artigo 14º do Código de Imposto de Capitais na versão saída do Decreto-Lei nº 197/82.
No tocante à matéria de constitucionalidade, discorreu-se assim:
'Contudo, e a pretexto de medida mais dura para o combate à fraude e evasão fiscal, o legislador retirou à sociedade a possibilidade de poder ilidir a onerosidade dos mútuos ou de abertura de créditos a favor dos sócios, com a redacção dada ao parágrafo 2º do citado art. 14º do CIC pelo DL nº 197/82, de 21 de Maio.
Em nosso modesto entender, e após ter entrado em vigor tal redacção, não tinham qualquer possibilidade de deixarem de ser considerados como fonte de rendimentos da sociedade, para efeito de tributação de imposto de capitais, quaisquer mútuos ou abertura de créditos a favor dos sócios, independentemente de daí advirem ou não rendimentos para a sociedade com tais operações.
Em nosso modesto entender, esta situação é inaceitável face à Constituição da República Portuguesa, pois tal equivale, em termos práticos, quando o empréstimo é gratuito, à liquidação de imposto de capitais, sem haver rendimento, e que constitui a base tributária para a liquidação do imposto.
Desde logo porque, nos termos do art. 1º do CIC 'O imposto de capitais incide sobre os rendimentos de aplicação de capitais (...), e porque a inilidibilidade da presunção cria uma desigualdade injustificada face a todos os outros mutuantes, já que pressupõe o pagamento de imposto de capitais mesmo que não haja rendimento, sendo assim violadora do art. 13º da Constituição.
A redacção anterior do parágrafo 2º do art. 14º era já por si criadora de desigualdade, mas não ia tão longe, na medida em que permitia sempre a possibilidade de ilidir a presunção de onerosidade dos mútuos da sociedade aos sócios. Nessa medida, estava sempre na disponibilidade dos interessados a possibilidade de recurso aos Tribunais com vista a afastar a presunção de rendimentos, de que gozava a Administração Fiscal, o que lhe dava a garantia de não ser inconstitucional na medida em que se previa um meio idóneo e independente para arbitrar qualquer conflito.
Proibir o recurso ao Tribunal para ilidir essa presunção é um acto antidemocrático, atentatório dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, pelo que recusamos a aplicação do disposto no parágrafo 2º do art. 14º do CIC, na redacção que lhe foi conferida pelo DL nº 197/82, de 21 de Maio, julgando inconstitucional o segmento de norma do art. 14º, nº 2, do CIC, na parte em que não permite a ilisão de onerosidade dos mútuos entre a sociedade e os sócios.
O Código de Imposto de Capitais encontra-se revogado, e hoje a tributação por presunção desapareceu do ordenamento jurídico-fiscal nacional, o que não deixa de ser um sinal de que se quer transparência na liquidação de impostos e de que deve haver mútuo respeito e confiança na relação Estado/Contribuinte, apanágio da Democracia, e que mais reforça o nosso entendimento sobre esta matéria.'
*///*
3 - Em obediência ao disposto nos artigos 280º, nºs 1, alínea a) e 3, da Constituição e 70º, nº 1, alínea a) e 72º nº 3 da Lei do Tribunal Constitucional, trouxe o Ministério Público os autos em recurso obrigatório a este Tribunal.
Nas alegações depois oferecidas o senhor Procurador-Geral Adjunto formulou o seguinte quadro conclusivo:
'1º - A norma do artigo 14º, nº 2, do Código de Imposto de Capitais, com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 197/82, de 21 de Maio, na parte em que não permite a ilisão da presunção de onerosidade dos mútuos efectuados pelas sociedades a favor dos respectivos sócios, viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
2º - Deve, assim, negar-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido, na parte impugnada.'
Por seu turno, a recorrida, comungando do mesmo entendimento, ofereceu alegações assim concluídas:
'1 - O art. 14º, nº 2, do C.I.C., com a redacção que lhe foi dada pelo D.L. 197/82, de 21/5, ao não permitir a ilisão da presunção de onerosidade dos mútuos feitos pelas sociedades aos seus sócios, viola o princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a Lei (artº 13 da C.R.P.);
2 - A exigência de acção judicial para ilidir a presunção legal pelo CIC na redacção anterior ao DL 197/82, de 21/5, garante e acautela a evasão fiscal, por ser um ónus com encargos e despesas para o contribuinte, não havendo fim legítimo para a descriminação de tratamento dos contribuintes que é a inilibilidade de tal presunção.'
Seguiram-se os vistos de lei, mostrando-se agora os autos prontos para apreciar e decidir.
*///*
II - A fundamentação
1 - O Código do Imposto de Capitais, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 44561, de 10 de Setembro de 1962, para começar a vigorar no dia 1 de Janeiro de 1963, dispunha no artigo 4º que ' a obrigação do imposto tanto pode resultar da atribuição efectiva dos rendimentos como da presunção da sua existência nos termos do presente diploma, ou ainda da simples possibilidade legal de os exigir'.
E, no artigo 14º, regendo sobre a determinação da matéria colectável na Secção A, estabelecia-se a presunção de que os mútuos e as aberturas de crédito vencem juros e à taxa anual de 6 por cento, se outra mais elevada não constar do título constitutivo ou não houver sido declarada, entendendo-se que o juro começa a vencer-se, nos mútuos, desde a data do contrato, e, nas aberturas de crédito, desde da sua utilização.
Esta disposição baseava-se no princípio posto em destaque no preâmbulo daquele diploma, segundo o qual 'a consagração efectiva do princípio da tributação mais aproximada do rendimento real exigia, naturalmente, que se atribuísse a maior relevância à declaração do contribuinte, quer suprimindo uma presunção que actualmente existe, quer admitindo a ilisão de outras que prudentemente se entendem conservar'; e também no pressuposto de que, na acção judicial, se esgotassem as diligências 'quanto à efectividade de não recebimento de quaisquer juros' segundo a livre e segura convicção do juiz.
Com efeito, no § 2º admitia-se a ilisão das presunções estabelecidas no corpo do artigo através de decisão judicial intentada pelo contribuinte contra o Estado, em que se declare ter ficado provado que não foram recebidos juros antecipadamente, nem eram ou são devidos, ou, sendo-o, têm taxa diferente.
No entanto, o Decreto-Lei nº 197/82, de 21 de Maio, editado ao abrigo da autorização legislativa contida na Lei nº 40/81, de 31 de Dezembro,
'com vista a uma maior justiça tributária' (cfr. a respectiva exposição preambular), veio introduzir diversas alterações no Código do Imposto de Capitais, modificando, designadamente, 'a natureza da presunção de um juro mínimo nos mútuos e aberturas de crédito feitas pelas sociedades aos seus sócios'.
Em conformidade com este desígnio, mantendo-se o corpo do artigo com a formulação que lhe havia sido dada pelo Decreto-Lei nº 139/81, de
30 de Maio - a taxa anual dos juros passou a ser de 15% - concedeu-se ao § 2º a seguinte redacção:
'Exceptuados os mútuos e as aberturas de crédito efectuados pelas sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial a favor dos respectivos sócios, em que se considera sempre como mínimo tributável a importância que resultar da aplicação da taxa prevista no corpo deste artigo, as presunções aí estabelecidas só podem ser ilididas por decisão judicial proferida em acção intentada pelo contribuinte contra o Estado, em que se declare ter ficado provado que não foram recebidos juros antecipadamente, nem eram ou são devidos ou, sendo-o têm taxa diferente, ou por declaração passada pelo Banco de Portugal em que se confirme a taxa de juro efectivamente praticada ou a sua inexistência.'
Deste modo, e ao contrário do que sucedia na versão originária, foi estabelecida uma dualidade de regimes quer, quanto à natureza da presunção, quer, quanto à possibilidade da sua ilisão.
No tocante aos mútuos e às aberturas de crédito efectuadas pelas sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial a favor dos respectivos sócios a presunção de vencimento de juros de 15% passou a ter a natureza de juris et de jure, tornando-se inviável a sua ilisão, mesmo através da via judicial.
Contrariamente, nos mútuos e aberturas de créditos dos sócios
à sociedade, das sociedades a terceiros, ou ocorridos entre pessoas singulares, a presunção assume-se como tantum juris, pois se admite a ilisão da presunção de vencimento de juros através de sentença judicial em acção a propor contra o Estado, ou através da declaração do Banco de Portugal em que se confirme a taxa de juro efectivamente praticada ou a sua inexistência.
No entendimento da decisão impugnada, sufragada nas alegações do Ministério Público e da recorrida, a norma do artigo 14º, § 2º, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 197/82, na parte em que não permite a ilisão da presunção de onerosidade dos mútuos feitos pelas sociedades a favor dos respectivos sócios, viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
Será efectivamente assim?
*///*
2 - A Constituição, no artigo 107º, relativo aos impostos, dispõe no nº 2 que 'a tributação das empresas incidirá fundamentalmente sobre o seu rendimento real'.
Adoptou-se assim, entre as soluções típicas possíveis, a tributação dos lucros reais, isto é, em princípio, dos lucros efectivamente verificados em cada ano, se bem que, exigindo tal opção um sistema fiável de conhecimento dos resultados das empresas e porque isso não se mostra possível em muitos sectores, se admita que aquela tributação possa incidir pelo menos sobre os lucros presumivelmente realizados.
No entendimento de Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 5ª ed., Coimbra, 1995, pp. 294 e ss., podendo ser vária a matéria colectável, há-de reconduzir-se sempre ou a património ou a rendimento, uma vez que que só com um ou com outro os impostos podem ser pagos [e daí a distinção que este Autor faz apenas entre impostos sobre o património e impostos sobre o rendimento ao contrário de outra doutrina que distingue impostos sobre a riqueza
(património) impostos sobre o rendimento e impostos sobre o consumo ou despesa].
E o Mestre de Coimbra, depois de caracterizar conceitualmente as figuras do rendimento real e do rendimento normal, inquire sobre se deve tributar-se o primeiro ou o
segundo.
Responde assim:
'À primeira vista, parece ociosa a pergunta. Na verdade, é do rendimento real, e não do rendimento normal, que depende a capacidade tributária.
Por vezes, todavia, não há mais remédio do que tributar o rendimento normal: é quando se torna impossível conhecer com suficiente aproximação o rendimento real. Sucede isso frequentemente na agricultura, onde a maioria das explorações não fazem contas, e sucede igualmente no sector da pequena indústria e do pequeno comércio onde as oficinas e as lojas não fazem contas também. Faltando as contas das receitas e das despesas, como há-de determinar-se o respectivo rendimento real?
Mas o facto é haver quem entenda que, mesmo quando seja determinável o rendimento real, é preferível tributar o rendimento normal (rendimento médio de uma série de anos)'.
Por seu turno, pronunciando-se sobre a forma de determinação da matéria colectável relativamente aos impostos directos, Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Coimbra, 1990, pp. 581 e 582, escreveu assim:
'No sistema da matéria colectável real, quer a Administração quer o contribuinte pretendem apurar o efectivo valor da riqueza que servirá de base ao imposto, determinando, por exemplo, objectivamente quais foram os lucros efectivos de uma determinada empresa num certo ano.
Quanto à matéria colectável presumida, a posição da Administração e do contribuinte é diferente: entende-se que não é possível, por ser fácil a fraude ou o arbítrio, qualquer tentativa de fixação real e directa da matéria colectável.
Escolhem-se então indicadores, com base nos quais se determina o valor que vai ser tributado. Por exemplo, e ainda para retomar o caso da empresa, admite-se que existe uma correlação entre o número de empregados, o volume de vendas ou o capital social e o lucro que a empresa deve ter obtido: e são os primeiros indicadores que servem de base à fixação do imposto por presunção da Administração, aplicando critérios legais.
Na matéria colectável normal, parte-se do princípio de que nem sequer é possível o conhecimento da matéria tributável real, pois não existem indicadores suficientemente esclarecedores para poder fazer-se qualquer presunção. Trata-se então de tributar a empresa pelo lucro que uma empresa com aquelas características teria obtido em condições normais, independentemente de isso se ter verificado ou não: dos indicadores escolhidos decorre uma relação vinculada e automática com o encargo fiscal. Se o capital social da empresa for x, o imposto será y: há então uma presunção legal insusceptível de prova em contrário.'
No entendimento deste Autor a tributação real, sobretudo por razões de justiça e eficiência económica, é preferível - representa um sistema mais justo, que permite a personalização do imposto e uma mais correcta distribuição da carga fiscal - sendo certo que tal forma de tributação tem recebido entre nós uma concretização efectiva limitada, desde logo porque pressupõe a existência de uma economia desenvolvida: um elevado grau de precisão e desenvolvimento da máquina administrativa, uma estrutura económica com empresas de razoável dimensão, dispondo de processos de contabilidade normalizados e rigorosos, com sujeitos económicos racionais e uma economia altamente monetarizada e baseada na troca (cfr. ob. cit. p. 583).
Também Manuel Pires, 'A Constituição de 1976 e a Fiscalidade', Estudos sobre a Constituição, 2º vol., Lisboa, 1978, pp. 417 e ss., a propósito da mesma matéria, ponderou o seguinte:
'Sobre a tributação das empresas, adoptou o legislador constitucional a tributação do rendimento real, embora cuidadosamente tenha inserto o advérbio 'fundamentalmente' e não poderia deixar de ser de outro modo. Num país em que existe um número imenso de empresários que não dispõe de contabilidade ou se dela dispõe ela não oferece as condições de confiança para o apuramento do verdadeiro rendimento, será utópico considerar a tributação sempre segundo o rendimento real. Numa grande parte dos casos, esse apuramento terá de ser feito 'à forfait' ou presumidamente, embora tal implique um elemento não homogéneo para efeito do imposto pessoal (soma de rendimentos reais com rendimentos não reais), no caso de empresários individuais ou mesmo de certo tipo de sociedades em relação às quais se possa decidir uma não tributação autónoma (os lucros seriam repartidos finalmente entre os sócios de acordo com determinados critérios)'.
Aliás, este Tribunal, apreciando a legitimidade constitucional da norma do artigo 4º, nº 3, do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos de Macau, aprovado pela Lei nº 21/78/M, de 9 de Setembro, segundo a qual os contribuintes são tributados com base no lucro presumido, tirou o Acórdão nº 26/92, Diário da República, II Série, de 11 de Junho de 1992, não julgando tal norma inconstitucional por a mesma não violar o direito fundamental de 'não pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição' de acordo com o nº 3 do artigo 106º.
Poderá assim afirmar-se que da Constituição e nomeadamente do seu artigo 107º, nº 2 - que rege directamente, aliás, para um tipo de imposto que não é o que está em causa nos presentes autos - não pode retirar-se a conclusão de ser vedada entre nós a tributação de rendimentos presumidos, ou a utilização de 'presunções' na determinação da base tributável.
Cabe porém indagar se o legislador não se encontra constitucionalmente limitado na utilização desta via, sendo-lhe proibida a utilização de presunções absolutas.
*///*
3 - O dever de os cidadãos pagarem impostos constitui uma obrigação pública com assento constitucional. Como tal, está sujeito a algumas regras equivalentes às dos direitos fundamentais, designadamente os princípios da generalidade e da igualdade, ou seja, de que devem estar sujeitos ao seu pagamento os cidadãos em geral (artigo 12º, nº 1), e devem estar sujeitos a ele em idêntica medida, sem qualquer discriminação indevida (artigo 13º, nº 2), isto constituído o princípio da igualdade tributária. Este princípio é relevante não apenas para o caso da imposição fiscal mas também para o caso das isenções e regalias fiscais, que não podem deixar de o respeitar sob pena de privilégio constitucionalmente ilícito (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 459).
No âmbito dos impostos fiscais que aqui interessa considerar
(as coisas não são inteiramente idênticas no plano da extrafiscalidade), a sua repartição deve assim obedecer ao princípio da igualdade tributária, fiscal ou contributiva que se concretiza na generalidade e na uniformidade dos impostos, sendo que, como ensina Teixeira Ribeiro (cfr. ob. cit., p. 261), 'generalidade quer dizer que todos os cidadãos estão adstritos ao pagamento de impostos, não havendo entre eles, portanto qualquer distinção de classe, de ordem ou de casta, isto é, de índole meramente política; por seu turno, uniformidade quer dizer que a repartição dos impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério idêntico para todos'.
Deste modo, a generalidade do dever de pagar impostos significa o seu carácter universal (não discriminatório), e a uniformidade
(igualdade) significa que a repartição dos impostos pelos cidadãos há-de obedecer a um critério idêntico para todos. E tal critério, como acentua José Casalta Nabais, Contratos Fiscais (Reflexões acerca da sua admissibilidade), Coimbra, 1994, p. 265 e ss., '(...) é o da capacidade contributiva (capacidade económica, capacidade para pagar, etc.), o que significa que os contribuintes com a mesma capacidade contributiva devem pagar o mesmo imposto (igualdade horizontal) e os contribuintes com diferente capacidade contributiva devem pagar diferentes (qualitativa e/ou quantitativamente) impostos (igualdade vertical)', sendo certo que o âmbito subjectivo deste princípio vale tanto para os indivíduos (pessoas físicas) como para as pessoas colectivas.
O legislador, na selecção e articulação dos factos tributáveis deverá ater-se a factos reveladores da capacidade contributiva
'definindo como objecto (matéria colectável) de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto'.
A tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto, exigindo-se, por isso, 'um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo'.
*///*
4 - Revertendo ao caso em apreço, deve recordar-se que a norma do § 2º do artigo 12º, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 197/82 estabeleceu, sem possibilidade de ilisão, a presunção de vencimento de juros de
15% nos mútuos e nas aberturas de créditos efectuados pelas sociedades a favor dos respectivos sócios, admitindo porém tal ilisão, nos mútuos e aberturas de créditos dos sócios à sociedade, das sociedades a terceiros, ou ocorridos entre pessoas singulares.
Segundo o entendimento de Vítor Faveiro, Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, II vol., Coimbra, 1986, p. 259, 'o pressuposto em que se baseou esta distorção do espírito do sistema - de que as sociedades não emprestam dinheiro sem juros - localiza-se precisamente ao invés da solução que veio a ser tomada: Na verdade, se os interesses das sociedades são interesses dos sócios, natural e frequente é a realidade de empréstimos gratuitos da sociedade aos sócios; o contrário sucede, naturalmente, nas relações entre as sociedades e terceiros em que a concessão de empréstimos não remunerados se apresenta, obviamente, como operação anómala'.
Mas, independentemente desta consideração e das virtualidades que nela se contêm, o certo é que o estabelecimento pelo legislador fiscal de uma presunção juris et de jure veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria colectável fixada à revelia do princípio da igualdade tributária.
Com efeito, o estabelecimento de presunções com o objectivo de conferir certeza e simplicidade às relações fiscais, de permitir uma pronta e regular percepção dos impostos e de evitar a evasão e a fraude fiscal, como adverte Casalta Nabais (ob.cit, p. 279) 'tem de compatibilizar-se com o princípio em análise, o que passa, quer pela ilegitimidade constitucional das presunções absolutas na medida em que impedem o contribuinte de provar a inexistência da capacidade contributiva visada na respectiva lei, quer pela exigência de idoneidade das presunções relativas para apresentarem o pressuposto económico tido em conta'.
O Tribunal Constitucional italiano, como refere aquele autor, em diversas decisões (cfr. as sentenças nºs 103/1967, 109/1967, 167/1976 e
200/1976, in Enrico de Mita, Fisco e Costituzione), estabeleceu que 'as presunções devem apoiar-se em elementos concretamente positivos que as justifiquem racionalmente e admitir prova em contrário, de modo a que o imposto se ligue a um pressuposto económico certo, provado e não apenas provável'.
E assim sendo, à luz destes princípios há-de concluir-se que a norma em causa, na parte em que não permite a ilisão da presunção de onerosidade dos mútuos efectuados pelas sociedades a favor dos respectivos sócios, viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
*///*
III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, no que à questão de constitucionalidade respeita, o acórdão recorrido.
Lisboa, 29 de Abril de 1997 Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa