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Processo n.º 71/12
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 105/2012:
“I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e B., Lda, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão proferido, em conferência, pela 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em 26 de outubro de 2011 (fls. 1267 a 1298).
2. Na medida em que a recorrente não identificou os elementos exigidos pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 75º-A da LTC, a Relatora junto do Tribunal da Relação de Coimbra proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento, ao abrigo do artigo 75º-A, n.º 6, da LTC, em 13 de dezembro de 2011 (fls. 1304).
Na sequência desse despacho, a recorrente veio esclarecer que:
“(…) o seu recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei 28/82 de 15/11, por violação de princípios constitucionais como sejam o princípio da presunção de inocência e da aplicação da lei mais favorável ao arguido, previstos nos artigos 32º e 29.º da C.R.P., violação consubstanciada na não aplicação dos artigos [sic] 2.º do C.P. e cuja violação da Lei Constitucional foi já devidamente invocada em sede de Alegações de Recurso para o Tribunal da Relação.” (fls. 1306)
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
3. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 1307) com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que deve começar-se por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum, ou alguns deles, não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
4. Deve começar por salientar-se que o modo como a recorrente delineou o objeto do seu recurso, em sede de requerimento de aperfeiçoamento, revela uma contradição intrínseca. Com efeito, não deve a recorrente interpor um recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC – que pressupõe a prévia prolação de uma decisão de aplicação de norma reputada de inconstitucional – e, simultaneamente, fixar como seu objeto uma alegada “não aplicação dos artigos [sic] 2.º do C.P.”. Ou seja, a recorrente não deve, ao mesmo tempo, pretender que se conheça de uma decisão que aplicou norma (alegadamente) inconstitucional e depois requerer que o Tribunal Constitucional sancione a não aplicação de determinada norma.
Assim sendo, verifica-se uma flagrante invocação de pedidos contraditórios e incompatíveis entre si, que não podem senão gerar a ineptidão do próprio requerimento de interposição de recurso, por aplicação do artigo 193º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil (CPC), aplicável, por analogia, “ex vi” artigo 69º da LTC. Fica, portanto, precludido o conhecimento do objeto do presente recurso.
5. Mas, ainda que se pudesse admitir que a expressa referência à “não aplicação dos artigos [sic] 2.º do C.P.” constituiria um mero lapso – o que se rejeita, em função da sua inclusão num requerimento aperfeiçoado cuja imperfeição poderia conduzir à deserção do próprio recurso –, sempre se diria, a título meramente subsidiário, que o recurso sempre seria de não conhecer.
Por um lado, a recorrente limita-se a indicar, de modo amplo, o artigo 2º do Código Penal (CP) quando aquele preceito legal é composto por quatro distintos trechos normativos dos quais se podem extrair inúmeras normas e interpretações jurídicas. Nenhuma delas identificadas expressamente pela recorrente. Assim, verificar-se-ia sempre um notório desfasamento entre a norma reputada de inconstitucional, naquele sentido tão amplo, e a interpretação normativa efetivamente adotada pela decisão recorrida (artigo 79º-C, da LTC).
Por outro lado, tratando-se de um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, cabia à recorrente ter suscitado a inconstitucionalidade de uma determinada norma ou interpretação normativa, em termos tais que o tribunal recorrido dela ficasse obrigado a conhecer (artigo 72º, n.º 2, da LTC). Ora, ao contrário do que afirma no requerimento aperfeiçoado, da tramitação processual vertida nos autos não se extrai que a recorrente o tenha feito. Na verdade, a recorrente limitou-se a tecer as seguintes considerações, em sede de conclusões de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra:
“G. Salvo o devido respeito, que é muito, a sentença recorrida violou claramente princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico, designadamente o princípio fundamental e basilar do direito penal como o princípio da presunção de inocência e do «in dubio pro reo», consagrado desde logo no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido, previstos no artigo 2.º n.º 4 do Código Penal.” (fls. 1183)
[…]
“AL. Não existe prova bastante e sem dúvida razoável que permitissem objetivamente o Tribunal a quo decidir como decidiu, condenando a arguida, dando o Tribunal a quo por assente a factualidade ora impugnada mediante rebuscado raciocínio de índole persecutória, inequivocamente sustentado numa presunção de culpa inaceitável face à Constituição da República Portuguesa, cujo artigo 32.º n.º 2 [sic].” (fls. 1188)
E ainda:
“AT. Ao aplicar a lei em vigor à data dos factos, bem sabendo que a atualização da unidade de conta importava a condenação da arguida pelo crime de abuso de confiança simples, ainda que na forma continuada, violou o princípio da aplicação da lei mais favorável previsto no n.º [sic] do artigo 2.º d[o] Código Penal.” (fls. 1189)
Destes excertos decorre, claramente, que a recorrente se limitou a imputar, de modo vago, algumas inconstitucionalidades à própria decisão recorrida, sem que individualizasse qualquer inconstitucionalidade especificamente dirigida a uma norma jurídica – único objeto possível da fiscalização da constitucionalidade (artigo 277º, n.º 1, da CRP). Especificamente quanto ao artigo 2º do CP, a recorrente não invoca a sua inconstitucionalidade. Pelo contrário, até defende a respetiva conformidade com a Lei Fundamental, pois alega que o tribunal de primeira instância não a teria aplicado.
Em suma, a recorrente nunca suscitou a inconstitucionalidade da norma que constitui objeto do presente recurso, tendo antes afirmado que o tribunal recorrido não a teria aplicado. Ora, assim sendo, também por falta de preenchimento do ónus de prévia suscitação da inconstitucionalidade, que lhe cabia por força do n.º 2 do artigo 72º da LTC, sempre seria forçoso concluir pela impossibilidade legal de conhecimento do objeto do presente recurso.
III – DECISÃO
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não conhecer do objeto do presente recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.”
2. Inconformada com a decisão proferida, a recorrente veio deduzir a seguinte reclamação, cujos termos ora se resumem:
“(…)
11º
Ora, salvo o devido respeito, que é muito, pelo douto Tribunal não pode a recorrente concordar com a decisão sumária proferida, nem com os fundamentos da mesma.
12º
Antes de mais a Reclamante considera e invoca que foram violados os artigos 32. ° e 29.° da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente os princípios constitucionais da presunção de inocência e da aplicação da lei mais favorável ao arguido.
13º
Assim, os Princípios Constitucionais e normas que considerou infringidos, encontram-se, claramente, mencionado.
14º
A Reclamante indica no seu requerimento aperfeiçoado, também, a peça processual em que foi suscitada a questão da inconstitucionalidade, tendo-o sido “em sede de Alegações de Recurso”.
15º
Pelo que os fundamentos da decisão sumária são de todo inválido.
Senão vejamos:
16º
A recorrente interpôs o seu recurso alegando não só a violação de normas nomeadamente os artigos 32º e 29.° da Constituição da República Portuguesa, mas também de respetivos princípios constitucionais.
17º
Ora, salvo douto e melhor entendimento, não se verifica qualquer contradição ou incompatibilidade de pedidos.
18º
A recorrente invoca não só os princípios como as disposições legais cuja decisão recorrida viola.
19º
Porquanto o Tribunal a quo violou tais preceitos constitucionais, designadamente, o estatuído no artigo 29. ° da CRP quando ultimou pela aplicação do artigo 202.° em detrimento da aplicação no artigo 2.°, ambos do CP.
20º
Ora, ao aplicar aquele dispositivo legal violou claramente o princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido, cuja previsão resulta também do artigo 2.° do CP, ao qual não deu primazia, enquanto garantia constitucional que é.
21º
Resulta pois, claro e inequívoco, que a inconstitucionalidade alegada pela recorrente decorre da violação daqueles preceitos e princípios constitucionais, porquanto o Tribunal a quo decidiu pela aplicação do artigo 202. ° em detrimento do artigo 2.° n.° 4, ambos do CP.
22º
Por sua vez, atendendo ao preceito e princípio que fundamenta mostrarem-se violados, sempre se dirá também que, aliás conforme resulta manifestamente das suas alegações e conclusões em sede de recurso para o Tribunal da Relação, ao referenciar o artigo 2.° do CP, pretendia a recorrente dizer n.° 4 do artigo 2.° do CP.
23.°
Dada a expressa referência daquele ao princípio violado pelo douto acórdão do Tribunal a quo.
24º
Pelo que é inválido este fundamento da decisão sumária do Tribunal, aliás douto, não se mostrando preenchidos os requisitos para a decisão sumária doutamente proferida.
25º
Quanto à alegada falta de preenchimento do ónus de prévia suscitação da inconstitucionalidade, sempre se dirá também que tal entendimento se mostra inválido por infundado.
(…)
31º
Por sua vez, resulta claro e inequivocamente das alegações do recurso interposto no Tribunal a quo os fundamentos de facto e de direito que determinaram a violação dos preceitos e princípios constitucionais invocados.
32º
Porquanto, ainda que de facto seja entendimento jurisprudencial maioritário que são as conclusões que fixam o objeto do recurso, sempre se dirá, sem prejuízo de outro douto entendimento, que, conforme resulta da própria denominação, são conclusões e portanto uma síntese das razões de facto e de direito que em alegações detalhada e pormenorizadamente se invoca.
33º
Pelo que, salvo o devido respeito, é infundada a falta de preenchimento de tal ónus com o douto Tribunal o faz mediante mera remissão para as conclusões do recurso interposto no Tribunal da Relação.
34º
Quando mais a recorrente invoca no requerimento de interposição de recurso que a alegada inconstitucionalidade se mostra previamente invocada nas alegações do recurso para o Tribunal da Relação, e não nas conclusões.
35º
É por isso, que a Vossa Excelência é levada a presente reclamação, no sentido de a final ser também admitido recurso para o Tribunal Constitucional, no segmento que acima ficou descrito.”
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio responder nos seguintes termos:
“1º
A recorrente, em 1.ª instância, foi condenada, como autora material, na forma continuada, pela prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelos artigos 30.º, n.º 2 e 205.º, n.º 1 e 4, alínea c) do Código Penal, na pena de multa de 1 440,00€ e, tendo recorrido para a Relação de Coimbra, foi negado provimento ao recurso.
2º
É deste Acórdão da Relação que vem interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
3º
Apesar de o requerimento de interposição do recurso ser pouco claro e poder revelar, inclusivamente, alguma contradições, como vem salientado na Decisão Sumária, do que dele se consegue extrair, parece-nos claro que a recorrente questiona não lhe ter sido aplicada a lei que, segundo ela, lhe era mais favorável (artigo 2.º do Código Penal) e que resultaria da alteração do valor da UC.
4º
A Relação apreciando tal questão diz:
“Por fim, em resposta às alíneas AO e AT dir-se-á apenas que o que releva para a qualificação do crime, como decorre com clareza do artigo 202.º do Código Penal, é o valor da UC à data da prática dos factos e não outro qualquer (…)”.
5º
Ou seja, para a Relação não se colocava sequer uma questão de sucessão de leis no tempo, não sendo, naturalmente, convocável o artigo 2.º do Código Penal.
6º
Ora a recorrente, também na motivação do recurso para a Relação, o que defende e sustenta é que há uma sucessão de leis no tempo e que lhe devia ser aplicável o regime mais favorável.
7º
Não vem enunciada de forma minimamente adequada, como se demonstra na Decisão Sumária, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, sendo até de salientar que, quando se refere a violação do princípio da aplicação da lei penal mais favorável, considera-se violado o artigo 2.º do Código Penal, nunca se mencionando o princípio constitucional correspondente, o artigo 29.º, n.º 4, da Constituição.
8º
Faltando, pois, aquele requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, deve indeferir-se a reclamação.”
4. Igualmente notificado para o efeito, a recorrida B., Lda. veio responder, limitando-se a corroborar o teor da decisão sumária proferida e a pugnar pelo não preenchimento dos pressupostos necessários ao conhecimento do objeto do presente recurso (fls. 1333 e 1333-verso).
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Em primeiro lugar, note-se que a manifesta contradição em que incorre o requerimento de interposição de recurso não reside em qualquer impossibilidade lógica da inconstitucionalidade alegada pela ora reclamante, mas apenas na circunstância de ter sido interposto um recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC e, ao mesmo tempo, se ter requerido um controlo da desaplicação do artigo 2º do Código Penal (de ora em diante, CP). Ora, os recursos interpostos ao abrigo daquela alínea pressupõem que tenha sido tomada uma decisão que aplicou uma norma jurídica inconstitucional e não uma decisão que desaplicou uma norma (ainda que sem fundamento na respetiva inconstitucionalidade). Foi por isso que a decisão reclamada apontou a referida contradição que, desde logo, prejudicaria o conhecimento do objeto do recurso.
Além disso, é evidente que só agora, em sede de reclamação, veio a recorrente identificar uma norma que – na sua perspetiva – teria sido aplicada pela decisão recorrida em desconformidade com a Constituição; neste caso, tratar-se-ia do artigo 200º do CP. Sucede, porém, que a delimitação dessa norma como inconstitucional deveria ter ocorrido logo em sede de interposição de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra bem como no próprio requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade. O que, manifestamente, não sucedeu. Com efeito, nem nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra nem no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade se verifica a suscitação da inconstitucionalidade de uma específica norma jurídica.
Pelo contrário, as referidas alegações limitaram-se a afirmar que a própria “decisão jurisdicional” recorrida nos presentes autos “violou o princípio da aplicação da lei mais favorável previsto no n.º [sic] do artigo 2.º do Código Penal” (cfr. artigo 104º, a fls. 1182). Ou seja, qualificaram a própria “decisão jurisdicional” como inconstitucional, nunca por ter aplicado uma norma inconstitucional, mas antes por não ter aplicado uma norma que – segundo a perspetiva da recorrente – deveria ter sido aplicada.
Ora, não pode evitar notar-se que, desde logo, só é possível sindicar a constitucionalidade de “normas jurídicas” (artigo 277º, n.º 1, da CRP) e não já das “decisões jurisdicionais”, enquanto tais. Por outro lado, é inegável que a recorrente nunca identificou uma específica e concreta norma que, aplicada em determinado sentido, resultasse numa violação da Constituição. Tanto basta para concluir pela impossibilidade de conhecimento do objeto do presente recurso, na medida em que este Tribunal só conhece da constitucionalidade de “normas jurídicas” cuja desconformidade com a Constituição tenha sido efetivamente suscitada perante o tribunal recorrido.
Em suma, deve manter-se integralmente a decisão reclamada.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pelo recorrente em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 26 de Abril de 2012. – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.