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Proc. nº 731/96
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I
1. F... propôs, em 10 de Outubro de 1990, no Tribunal de Trabalho de Lisboa, acção declarativa comum com processo ordinário contra 'U...
', sociedade cooperativa de responsabilidade limitada, pretendendo a condenação da ré, sua entidade patronal, no pagamento de indemnização no montante global de
21.138.110$00, a título de indemnização por prejuízos materiais e morais sofridos em virtude de alegadas atitudes ilícitas por parte da U..., nomeadamente a determinação de baixa da categoria profissional, diminuição de remuneração, perseguições e atitudes discriminatórias contra a pessoa do autor, aplicação ilegal de sanção disciplinar e colocação ilegítima do trabalhador sem qualquer ocupação efectiva.
A acção foi contestada, houve audiência preliminar, tendo, depois, sido elaborado despacho saneador, especificação e questionário.
Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença em 11 de Maio de
1992 que julgou a acção parcialmente procedente e provada.
Inconformada, veio a ré interpor recurso de apelação, impugnando a sentença condenatória, considerada ilegal e nula.
Através de acórdão proferido em 17 de Janeiro de 1996, a Relação de Lisboa verificou que havia 'deficiência na fixação da matéria de facto' e, por isso, anulou o julgamento e ordenou 'a baixa do processo à 1ª instância, para, em novo julgamento, se corrigir a matéria fáctica em ordem à decisão de direito'
(a fls. 318).
Notificado deste acórdão, o autor apelado veio interpor recurso de revista dessa decisão, o qual não foi, porém, admitido com o fundamento de que era 'entendimento uniforme desta Relação confirmado por sucessivos despachos do Exmº. Conselheiro Presidente do S.T.J. não ser admissível recurso de revista da decisão da matéria de facto apurada pelo julgador naquela 1ª Instância', por não fazer sentido que não se pudesse 'recorrer do acórdão da Relação que revoga o saneador-sentença e determina a organização de especificação e questionário' e se pudesse recorrer na hipótese dos autos (a fls. 324 e vº).
Discordando deste despacho, veio o autor apresentar reclamação em 26 de Fevereiro de 1996, para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo dos arts. 688º e 689º do Código de Processo Civil, disposições aplicáveis por força do art. 1º, nº 2, al. a), do Código de Processo do Trabalho. Nessa reclamação sustentou que o acórdão da Relação de Lisboa fizera mau uso do art.
712º, nº 2, do Código de Processo Civil, suscitando desde logo a inconstitucionalidade das normas extraídas da conjugação dos arts. 510º, nº 5,
511º, nº 5, 712º, nº 2, 721º, 676º, 678º, nº 1, e 679º do Código de Processo Civil, na versão anterior à reforma de 1995-1996 deste diploma, interpretadas e aplicadas 'no sentido de consagrarem a irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão do Tribunal da Relação que, sob a invocação do nº 2 do art. 512º do C.P.C., anulou um julgamento da 1ª Instância, mesmo em causas de valor superior à alçada da 2ª instância', por violação do art. 20º da Constituição 'e dos princípios (maxime o do direito ao recurso) nele consagrados' (a fls. 330 dos autos).
O despacho reclamado foi sustentado pela conferência e veio a ser confirmado por despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Abril de 1996. Para tanto, considerou-se nesse despacho que da fundamentação do aresto onde foi proferido o assento de 13 de Abril de 1994 deste Alto Tribunal resultava inequivocamente que o acórdão da Relação que anulara o julgamento de
1ª instância era irrecorrível. E acrescentou-se:
' Ora, na hipótese em consideração, decidiu-se determinar novo julgamento, para alterar a matéria de facto em ordem à decisão pré-figurada. Estamos perante uma situação que corresponde a uma decisão sobre uma reclamação da especificação e questionário, pelo que dela não há recurso para o Supremo, embora a solução de direito prevista no despacho possa vir a ser impugnada em recurso que se interpuser da decisão posterior a conhecer do fundo (decisão final). A economia de meios processuais ínsita na alteração do nº 5 do art. 511º, introduzida pelo Decreto-Lei nº 242/85, de 9 de Julho, assim o impõe. Note-se: não há uma limitação do direito de recorrer, mas apenas o disciplinar o momento em que este pode ser exercido. As razões do recorrente, no plano dos seus direitos, podem ser reapreciadas por via de recurso. Só está em causa qual o momento oportuno.' (a fls. 338)
2. Notificado do referido despacho, veio o autor dele interpor recurso de constitucionalidade, nos termos da alínea b) do nº 1 do art.
70º da Lei do Tribunal Constitucional. O recurso foi admitido por despacho de fls. 351 vº.
3. Distribuído o recurso, apresentaram alegações recorrente e a sucessora da recorrida, NOVA U... - PRODUTOS ALIMENTARES, LDA, entidade que simultaneamente deduziu por apenso incidente de habilitação e requereu a concessão do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa total de pagamento de preparos e custas no processo principal e no apenso.
Através do acórdão nº 317/97, proferido em 17 de Abril de 1997, foi julgada habilitada a NOVA U... - PRODUTOS ALIMENTARES, LDA, como sucessora da extinta ré. Por despacho de fls. 72 a 75 do apenso foi negada a solicitada concessão de apoio judiciário. Ambas as decisões transitaram em julgado.
4. Nas aludidas alegações, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
' - O presente recurso mostra-se interposto tempestivamente e por quem tem para tal inteira legitimidade, para a instância correcta, e a questão de inconstitucionalidade foi oportunamente arguida no processo.
- A decisão ora recorrida consagrou um completo absurdo ao pretender existir analogia onde ela em absoluto não existe e ao esquecer que, tendo a irrecorribilidade natureza excepcional, esta impediria sempre a hipotética aplicação analógica das normas que eventualmente a consagrassem.
- A entender que, mesmo numa causa com valor superior - como aqui sucede - ao da alçada do Tribunal da Relação, este pode fazer uso a seu bel-prazer do poder de anular sentenças e julgamentos da 1ª instância, sem ver o uso desse poder sindicado pelo S.T.J., consubstância antes de mais um completo absurdo, em absoluto contrário à tão invocada «economia de meios».
- E também, e sobretudo, uma «compressão» - para não dizer «supressão» - absolutamente injustificável e injustificada do direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no art. 20º da C.R.P..
- Isto quer na vertente do direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, quer na do direito ao recurso de uma decisão judicial, para mais violentadora de direitos fundamentais como os de art. 53º e do art. 59º, nº 1, alínea b) da C.R.P.
- E ainda na da proibição da indefesa do cidadão perante os órgãos judiciais nos quais se discutem questões que aquele dizem respeito.
- Não tendo qualquer justificação, nem extrínseca, nem intrínseca - por inexistência de qualquer valor directamente constitucional, ou pelo menos alguma densidade constitucional que a pudessem sustentar - a referida compressão/supressão é constitucionalmente inadmissível.
- O art. 2º do C.C. bem como o invocado Assento do S.T.J. de 13/4/94 - a pretender-se que este, por absurdo, poderia ter aqui alguma aplicação - seriam materialmente inconstitucionais (ao menos da forma como foram interpretados e aplicados pela decisão recorrida) por violação do art. 115º, nº 1, da C.R.P.. Deste modo, interpretados e aplicados como foram - ou seja, no sentido de que, mesmo em causa de valor superior à alçada do Tribunal da Relação, não poderá haver recurso para o S.T.J. do Acórdão da mesma 2ª instância que precisamente anulou e mandou repetir o julgamento da 1ª instância - os arts. 712º, nº 2,
721º, 676º, nº 1, 678º, nº 1, 510º, nº 5, e 511º, nº 5, todos do C.P.C., são materialmente inconstitucionais por violação, frontal e múltipla, do art. 20º da C.R.P.' (a fls. 365 a 367)
A sociedade recorrida propugnou pela improcedência do recurso, formulando as seguintes conclusões:
'1. O Presidente do S.T.J., ao pronunciar-se pela irrecorribilidade do Acórdão da Relação ora em apreço, mais não fez do que proceder a uma interpretação harmónica dos dispositivos legais pertinentes (artigo 510º, nº 5, 511º, nº 5,
721º, 722º e 729º C.P.C.) sem cingimento à pura letra da lei, mas com toda a obediência pelo seu espirito.
2. Contrariamente ao que é alegado pelo recorrente, não foi feita uma aplicação analógica dos artigos 510º, nº 5, e 511º, nº 5, do CPC ao caso sub judice, mas apenas uma interpretação extensiva dos melhores artigos.
3. De facto, é jurisprudência firme do S.T.J., sufragada aliás pelo Assento nº
10/94, que a inadmissibilidade de recurso do despacho saneador que relegue para a sentença final o conhecimento das matérias que lhe cumpre conhecer nos termos das alíneas a) a c) do nº 1 do artigo 510º do CPC implica a não recorribilidade do Acórdão da Relação que revogue o saneador-sentença por entender haver insuficiência de factos na fase de saneamento de processo.
4. Por maioria de razão, implica também a insusceptibilidade de recurso no caso vertente em que o acórdão da Relação anula a decisão de 1ª instância, por deficiente fixação da matéria de facto, e ordena a repetição do julgamento.
5. E nem se vê que tal irrecorribilidade possa ser inconstitucional, pois no
âmbito do direito processual civil não se encontra constitucionalmente garantido o direito a um duplo ou terceiro grau de jurisdição.
6. Acresce, no caso concreto que a irrecorribilidade nem sequer se traduz numa limitação do direito de recurso, mas tão-somente numa regulação do momento em que tal direito deve ser exercido.
7. Sendo uma pura falácia pretender que a irrecorribilidade consubstância uma
«dilação indevida» do processo quando, a admitir-se o recurso, caso o STJ viesse a sufragar a decisão recorrida, o processo teria que prosseguir exactamente nos mesmos termos já decidido pela 2ª instância e demoraria ainda mais tempo!'
5. Foram corridos os vistos legais.
Por não se verem motivos que obstem ao conhecimento do objecto do recurso, passa a abordar-se o mesmo, começando por delimitar o seu objecto.
II
6. O autor, ora recorrente, indicou, como objecto do recurso uma norma que, em seu entender, foi extraída pelo despacho recorrido de uma conjugação de preceitos do Código de Processo Civil (na versão decorrente da Reforma Intercalar de 1985, introduzida pelo Decreto-Lei nº 242/85 de 9 de Julho), a saber, dos arts. 712º, nº 2, 721º, 676º, nº 1, 678º, nº 1, 679º, nº 1,
510º, nº 5 e 511º, nº 5.
Afigura-se, porém, que muitos destes artigos não têm a ver com a norma de explicitação jurisprudencial aplicada pela decisão recorrida (despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça), norma essa que pode formular-se, assim: 'não há recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (de agravo interposto em segunda instância) do acórdão da Relação que anula o julgamento feito em primeira instância, com fundamento em deficiência na fixação da matéria de facto, ordenando a realização de novo julgamento para se proceder à correcção ou ampliação da matéria fáctica em ordem à decisão de direito'.
Como resulta da leitura dos autos, sobretudo do despacho recorrido, esta norma é axtraída da conjugação das normas que delimitam o âmbito dos recursos interpostos de decisões de segunda instância (arts. 721º, nº 1, 722º, nº 1, 754º, alínea b), como a norma que determina a irrecorribilidade do despacho que haja decidido as reclamações contra a especificação e o questionário (art. 511º, nº 5, da mesma versão do Código).
No despacho do relator da Relação de Lisboa, objecto de reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, testou-se ainda a razoabilidade da interpretação conjugada das indicadas normas com a solução acolhida quer no nº 5 do art. 510º do Código de Processo Civil, quer no assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 10/94, de 13 de Abril de 1994 (publicado no Diário da República, I Série A, nº 122, de 26 de Maio de 1994), nos termos do qual não é admissível 'recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que, revogando o saneador-sentença que conhecera do mérito da causa, ordena o prosseguimento do processo, com elaboração da especificação e questionário'. Como pode ler-se nesse despacho, não faria sentido que se pudesse recorrer do acórdão proferido nos presentes autos e não se pudesse recorrer no caso tratado no aludido assento. Este argumento foi igualmente tido em conta no despacho recorrido, onde se chamou a atenção para a fundamentação do aresto onde se tirou aquele assento.
Contrariamente ao afirmado pelo recorrente, no despacho recorrido não se fez qualquer aplicação implícita ou explícita do assento nº 10/94, o qual apenas foi invocado naquele despacho para fundar um argumento de igualdade ou de maioria de razão, a propósito da interpretação das normas que disciplinam os recursos de revista e de agravo em 2ª instância.
7. Apesar de o recorrente ter incluído outras normas no objecto do recurso (nomeadamente, as normas gerais sobre o princípio geral da recorribilidade e pressupostos de recorribilidade - arts. 676º, nº 1, e 678º, nº
1; ou a norma sobre a irrecorribilidade dos despachos de mero expediente ou proferidos no exercício legal de um poder discricionário - art. 679º, nº 1; ou ainda a norma sobre a irrecorribilidade do saneador que relegue para final o conhecimento de matérias de nulidades e pressupostos processuais - art. 510º, nº
5) e não ter indicado a que delimita o agravo interposto em 2ª instância, é seguro que identificou suficientemente a norma de natureza jurisprudencial que foi aplicada no despacho recorrido, razão por que se pode passar a conhecer do objecto do recurso.
8. Será, pois, inconstitucional a norma que considera irrecorrível para o Supremo Tribunal de Justiça o acórdão da Relação que anula o julgamento feito em primeira instância por deficiência na fixação da matéria de facto, apesar de se verificarem os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso no processo presente?
Para responder a esta questão, importa referir brevemente a orientação jurisprudencial do Tribunal Constitucional na matéria, que se acha sedimentada ao longo de vários anos, em múltiplas decisões tiradas por unanimidade dos seus juízes.
9. Preliminarmente, far-se-á notar que carece de competência o Tribunal Constitucional para apreciar quaisquer questões atinentes à incorrecção, inconveniência ou injustiça da decisão da Relação que determinou a anulação do julgamento. De facto, nos termos do nº 1 do art. 71º da Lei do Tribunal Constitucional, os recursos de decisões judiciais interpostos para este Tribunal 'são restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitada'. É, por isso, impossível, em sede de recurso de constitucionalidade, discutir se se justifica ou não a decisão de anulação do julgamento, no caso sub judicio.
10. A Constituição de 1976 foi elaborada a partir de um ordenamento jurídico já existente, com características bem determinadas, que o levam a poder classificar-se como pertencendo a uma das famílias de sistemas jurídicos existentes no mundo contemporâneo.
Ora, como põe em destaque a recorrida, o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, em regra só conhece de matéria de direito
(art. 29º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, arts. 721º, nº 2, 722º, nº 2 e 763º, nº 1 do Código de Processo Civil na versão anterior à Reforma de
1995-1996). Trata-se de uma característica dos ordenamentos da família europeia continental ou do sistema romano-germânico ou, ainda, noutra terminologia de certos comparatistas anglo-americanos, da família da civil law, característica que, historicamente, entronca na criação e competência do Tribunal de Cassação francês, após a Revolução de 1789.
No caso presente acha-se garantido o duplo grau de jurisdição, na medida em que a decisão de primeira instância, que foi favorável em parte ao recorrente, pôde ser apreciada pela Relação de Lisboa. E acha-se mesmo garantido, quanto ao processo, um triplo grau de jurisdição, visto que da nova sentença que vier a ser proferida em primeira instância, após a realização do novo julgamento já ordenado - supondo que esta decisão da Relação transita em julgado - caberão, em princípio, recursos de apelação, revista ou agravo, que permitirão a subida dos autos até ao Supremo Tribunal de Justiça.
11. A jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de recursos de decisões jurisdicionais não penais considera que a Lei Fundamental não garante sequer a existência de duplo grau de jurisdição em todos os processos e, por isso, não garante, em todos casos o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça (a chamada garantia da tripla instância), antes deixando ampla liberdade de conformação ao legislador. A mesma jurisprudência, porém, considera que, no acesso aos tribunais, em todos os seus graus, há-de o legislador observar de forma estrita os ditames do princípio da igualdade, não sendo toleráveis opções discriminatórias de certas pessoas ou grupos, ou certos tipos de opções. Pode ler-se no acórdão nº 359/86 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º volume, págs. 605 e seguintes):
'... se se concebe que nem todas as decisões tenham de admitir recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, «o que a lei já não poderá fazer é admitir o recurso em toda uma categoria de casos e depois excluí-lo apenas em relação a um sector dessa categoria, sem que nenhuma justificação objectiva se verifique para tal discriminação».'
E afirma-se, mais recentemente, no acórdão nº 377/96, retomando formulações do acórdão nº 287/90 (publicado nos Acórdãos, 17º vol., págs. 159 e seguintes):
' O que se pode retirar, inequivocamente, das disposições conjugadas dos artigos
20º e 212º da Constituição [versão de 1989], em matérias diversas da penal, é que existe um genérico direito de recurso dos actos jurisdicionais, cujo preciso conteúdo pode ser traçado, pelo legislador ordinário em maior ou menor amplitude.'
E, especificamente, quanto às limitações dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça, afirma-se nesse acórdão nº 377/96:
' Subjaz a este entendimento uma visão desvirtuadora da essência e intencionalidade própria de um Supremo Tribunal («órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais», nos termos da Constituição - artigo 212º, nº 1), as quais não podem deixar de pressupor, na delimitação da respectiva competência, uma selecção dos casos mais importantes' (neste acórdão alude-se a várias soluções estrangeiras estudadas pelo Direito Comparado sobre as técnicas de selecção, desde o screening anglo-americano, às soluções alemã e italiana na matéria).
Como refere M. Teixeira de Sousa, ao examinar esta jurisprudência, da 'previsão constitucional de tribunais da diferente hierarquia resulta que o legislador ordinário não pode eliminar, pura e simplesmente, a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso (assim, v.g., TC-211/93 (16/3/1993), DR, II,
28/5/1993, 5612 = BMJ 425,173 = AcTC 24,565). Uma tal eliminação global dos recursos esvaziaria de qualquer sentido prático a competência dos tribunais superiores e deixaria sem conteúdo útil a sua previsão constitucional' (Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, pág. 377; sobre a mesma jurisprudência, veja-se Carlos Lopes do Rego, Acesso ao Direito e aos Tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Lisboa, 1993, págs. 74 e seguintes).
Igualmente, o Tribunal Constitucional no seu acórdão nº 447/93, depois de reafirmar a sua jurisprudência anterior na matéria, nomeadamente quanto às exigências do princípio da igualdade, sustentou que o juiz constitucional deve analisar as opções do legislador à luz do princípio da proporcionalidade, retomando um entendimento já expresso nos acórdãos nºs. 65/88 e 202/90. Aí se transcreve um passo do acórdão nº 65/88, que refere:
'... tal escalonamento das sucessivas instâncias, dentro da mesma ordem judiciária, exigirá apenas que, em alguns casos - naturalmente nos de maior relevo (por aplicação do princípio da proporcionalidade, que domina o regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias) - seja possível a impugnação de uma primeira decisão judicial junto de um tribunal superior e, eventualmente ainda, a impugnação da decisão deste último junto de outro tribunal, necessariamente colocado um grau acima na escala hierárquica.' (in Acórdãos, vol. 25º, pág. 689)
12. Fazendo a aplicação destes critérios ao caso sub judicio, logo se deve concluir que a norma aplicada no despacho recorrido não sofre, na dimensão interpretativa aí considerada, de inconstitucionalidade.
No modelo tradicional de orgânica judiciária acolhido nos sistemas jurídicos pertencentes à família continental sobressai 'a existência de duas instâncias quanto a «matéria de facto» e de uma instância de revisão quanto a
«questões de direito»' (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, 1993, pág. 653). De harmonia com este modelo, no direito português 'o tribunal de revista está vinculado aos factos fixados pelo tribunal recorrido
(art. 729º, nº 1). Como consequência desta vinculação à matéria de facto apurada nas instâncias, o Supremo está adstrito a uma obrigação negativa: a de não poder alterar, salvo em casos excepcionais, essa matéria de facto (art. 729º, nº 2). Estas vinculações implicam que o Supremo não pode controlar a apreciação da prova, porque uma vinculação à matéria de facto averiguada nas instâncias e uma proibição de a alterar conduzem necessariamente à impossibilidade (e também à desnecessidade) de controlar e sua apreciação' (M. Teixeira de Sousa, ob cit, págs. 422-423). E, mais à frente, este processualista põe em relevo que a
'demarcação da competência decisória do Supremo através da exclusão do conhecimento da matéria de facto mostra a utilidade da distinção entre as matérias de facto e de direito e assenta numa repartição de actividades e de competências entre as instâncias e o Supremo: àquelas está reservada a fixação dos factos relevantes para a decisão da causa; ao Supremo cabe o controlo sobre a aplicação do direito a esses factos. Esta distribuição encontra a sua justificação na maior proximidade das instâncias relativamente à matéria de facto e na função de harmonia da interpretação e aplicação da lei que está reservada ao Supremo' (ob cit, pág. 423).
Ora, tendo sido consagrada a regra legal de que as Relações podem controlar a selecção da matéria de facto feita pelo juiz de primeira instância ao elaborar a especificação e o questionário - e, mesmo assim, apenas no recurso da sentença final (art. 511º, nº 5) - e de que não há recurso sobre a matéria de facto, em regra, para o Supremo (arts. 721º, nº 2, 722º, nº 2, 729º, nº 1 e 3, e
755º, nº 2 do Código de Processo Civil), a solução, preconizada pelo recorrente, de consagrar recurso da decisão de anulação do julgamento para ampliação da matéria de facto seria incongurente e, eventualmente, violadora do princípio da igualdade, independentemente de a mesma ter sido acolhida por uma corrente jurisprudencial maioritária no próprio Supremo Tribunal de Justiça.
Não é, por isso, constitucionalmente admissível censurar as normas aplicadas pela decisão recorrida porque, por um lado, não está consagrada a garantia de um triplo grau de jurisdição em matéria civil e laboral e, por outro lado, seria dificilmente aceitável, em termos de lógica do sistema, o recurso no caso discutido nos autos e a sua exclusão em outros, nomeadamente naqueles que foram apreciados pela decisão onde foi tirado o assento nº 10/94. O lugar paralelo invocado pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça mostra que não se trata de aplicar analogicamente uma solução excepcional, mas antes aplicar de forma congruente o conjunto de regras que disciplinam os recursos interpostos para o tribunal de revista.
Tão-pouco se pode invocar a excepcionalidade das restrições à recorribilidade nas acções com valor superior à alçada da Relação. É que, mesmo aceitando-se tal excepcionalidade, não pode esquecer-se a divisão de tarefas que a lei processual civil faz entre os tribunais de instância e o Tribunal de revista, em termos de, no âmbito deste último Tribunal, a regra geral ser a da incompetência do Supremo Tribunal de Justiça para se ocupar de matéria de facto
(cfr. arts. 722º, nº 2, e 755º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Acresce que a admissão de mais um recurso para o Supremo nos termos preconizados pelo recorrente não propiciaria seguramente o ditame constitucional da justiça pronta e sem dilações indevidas, mormente na eventualidade possível de o Supremo não censurar a decisão de anulação proferida pela Relação.
Por último, não é possível argumentar com situações anómalas de
'patologia' processual, em casos de eventual verificação de eventual desvio de poder jurisdicional, para inconstitucionalizar a norma sub judicio: igualmente se poderia argumentar com a sistemática sujeição de recursos ao Supremo, interpostos pela entidade patronal, para atrasar o pagamento de indemnizações a um trabalhador, nos casos em que as Relações tivessem aplicado correctamente o disposto no art. 712º, nº 2, da anterior versão do Código, também aí se podendo encontrar então situações de indefesa do trabalhador, se tal solução tivesse sido consagrada legislativamente.
13. Há-de, assim, improceder o recurso interposto pelo autor, nos termos expostos.
III
14. Nestes termos e pelas razões referidas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso.
Lisboa, 4 de Março de 1998 Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa