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Proc. nº 663/96
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I
1. A., secretário judicial aposentado, residente em .........., foi pronunciado no Tribunal de Círculo de Anadia, pela prática de um crime de peculato, previsto e punível pelo art. 424º, nº 1, do Código Penal, e por um crime de falsificação de documento, previsto e punível nos termos do art. 228º, nº 1, alínea a), e nº 3, do mesmo Código. Interpôs recurso do despacho de pronúncia para o Tribunal da Relação de Coimbra, mas viu confirmado esse despacho por acórdão de 8 de Janeiro de 1992. Pretendeu interpor recurso desse acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual não foi admitido. Após a suscitação de diferentes nulidades, reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o qual confirmou o despacho reclamado. Interpôs, depois, recurso para o Tribunal Constitucional mas, através do acórdão nº 607/94, proferido pela 1ª Secção em 22 de Novembro de 1994, este Tribunal não conheceu do objecto do recurso.
Remetidos os autos ao Tribunal de Círculo de Anadia, foi marcada a audiência de julgamento para 20 de Março de 1995. Por falta do arguido - por não se saber se havia sido notificado da data do julgamento, através de carta precatória - foi adiado sine die o julgamento. Veio depois a ser nomeada curadora ao arguido, por ter sido certificado que não tinha podido ser citado por sofrer de cegueira.
Marcada nova data de julgamento (8 de Janeiro de 1996), foi notificada a curadora da marcação.
Na data marcada, faltou o arguido. Veio a ser justificada a sua falta por doença.
Marcado o dia 24 de Junho de 1996 para o julgamento, foi notificada a curadora dessa data, com a cominação de que, se não comparecesse então o arguido, o mesmo seria julgado nos termos do art. 566º do Código de Processo Penal de 1929.
No dia 24 de Junho de 1996, verificou-se de novo a falta do arguido, tendo sido apresentado atestado médico comprovando a sua impossibilidade de comparecer, por estar internado numa clínica (a fls. 77 dos presentes autos).
Iniciado o julgamento sem a presença do réu, suscitou o mandatário oficioso - nomeado, em virtude da falta do mandatário constituído - a questão da inconstitucionalidade do § 1º do art. 566º do Código de Processo Penal de 1929. Após deliberação do tribunal colectivo, ditou o respectivo Presidente o seguinte despacho para a acta:
' O réu foi com efeito notificado da data designada para julgamento com a cominação prevista no § 1 do art. 566º do C.P.P. de 1929.
Em face da arguição pelo réu da inconstitucionalidade dessa norma, terá o Tribunal de se pronunciar acerca de tal questão.
Essa norma visa assegurar o poder punitivo do Estado. Porém, juntamente com esse interesse, não poderá deixar de se ponderar um outro interesse crucial no Estado de direito e que visa assegurar as garantias de defesa do réu.
A questão reside em saber se estas garantias ficam asseguradas no caso de se proceder a julgamento sem a presença do réu da mesma forma que ele estivesse presente.
Como se refere no acórdão nº 394 de 1989, Diário da República, II Série de 14 de Setembro, «O Estado está naturalmente interessado em punir os culpados de actos criminosos, pois estão em causa violações de bens jurídicos sociais ao viver comunitário, mas tem interesse em punir os verdadeiros culpados».
Por outro lado vem sendo defendido na nossa doutrina que a presença do arguido em julgamento constitui um verdadeiro direito que lhe cabe - ver o acórdão citado e a doutrina aí referida.
Em face disso e também porque o réu já manifestou expressamente no processo a intenção de estar presente na audiência de discussão e julgamento, do que se encontra impossibilitado, conforme consta da declaração que fez chegar a este Tribunal, tendo em atenção o estatuído no art. 207º do C.R., declara-se que a norma do § 1º do art. 566º do C.P.P. se encontra ferida de inconstitucionalidade por violação das garantias de defesa do réu, consignadas no art. 32º, nºs. 1 e
5, e 2º da Constituição da República Portuguesa, adiando-se, por isso, o julgamento para o dia 28 de Outubro de 1996, às 9.30 horas.'
Deste despacho interpôs recurso de constitucionalidade em acta o representante do Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. O recurso foi admitido para subir imediatamente e em separado, com efeito meramente devolutivo.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional. Fixado prazo para alegações, apresentaram alegações o Ministério Público e o recorrido.
O Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
'
1º
A norma do § 1º do artigo 566º do Código de Processo Penal de 1929, ao prescrever que, nos casos em que a causa de não comparência do réu em audiência final é temporária, o julgamento, em processo de querela, terá necessariamente lugar na data que venha a ser designada - ainda que o arguido tenha justificado a falta e manifestado vontade em estar presente no seu julgamento - é inconstitucional, por violação dos princípios do contraditório, da imediação e das garantias de defesa.
2º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
Por seu turno, o recorrido - depois de ter manifestado sérias dúvidas sobre a legalidade do regime de subida imediata em separado do recurso de constitucionalidade, considerando não ser líquida a questão de saber se a retenção do recurso o tornaria absolutamente inútil, mas acabando por afirmar
'nada ter a opor ao regime fixado para a imediata subida do recurso e para a razão de ter sido assim' - veio manifestar a sua concordância com o despacho recorrido e a posição assumida pela entidade recorrente na referida peça processual sobre a inconstitucionalidade da norma desaplicada, considerando conforme às exigências de política criminal a solução encontrada pelo Código de Processo Penal de 1987 em matéria de contumácia. Referiu ainda que a coexistência no tempo da vigência de dois Códigos de Processo Penal, com soluções diversas em matéria de não comparência do arguido a julgamento, violava o princípio da igualdade, acarretando a inconstitucionalidade do art. 7º, nº 1, do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, quando mantinha a vigência, para certos processos, do Código de 1929. Terminou sufragando 'inteiramente as conclusões do recurso do Ministério Público, embora, salvo o devido respeito, com fundamentação nem sempre sobreponível' (a fls. 104 dos autos).
3. Foram corridos os vistos legais.
Impõe-se conhecer do objecto do recurso.
II
4. Nas alegações do recorrido, alude-se à questão prévia do regime de subida do recurso, afirmando-se nada haver a opor ao regime de subida imediata e em separado do recurso, numa 'visão actualista' da leitura das pertinentes normas do Código de Processo Penal de 1929, à luz do regime do art.
407º, nº 2, do novo Código de Processo Penal. Não obstante tal afirmação, faz-se alusão ao entendimento de que a questão 'não deve deixar de ser suscitada por ser bom que o Tribunal Constitucional sobre ela se pronuncie, para que se faça luz'.
Sendo duvidoso se está suscitada verdadeiramente uma questão prévia - dada a concordância manifestada com a solução adoptada no tribunal a quo - sempre se dirá que entende este Tribunal não merecer censura o despacho de fixação do regime de subida. De facto, o recurso de constitucionalidade segue o regime de subida do recurso ordinário que poderia ser interposto da decisão
(art. 78º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional). Ora, parece indiscutível que essa decisão estava sujeita a recurso ordinário (arts. 645º e 646º do Código de Processo Penal), cuja subida seria em princípio diferida, ex vi art. 653º do mesmo diploma, salvo se o tribunal entendesse que o recurso devia ter subida imediata por aplicação subsidiária do nº 2 do art. 734º do Código de Processo Civil (a situação não se acha prevista no art. 655º do C. P. P. de 1929, mas a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, desde 1960, fixou-se no sentido da aplicabilidade ao processo penal do § único do art. 735º CPC 1939, a que corresponde hoje o nº 2 do art. 734º do CPC vigente). Ora, seguindo o recurso de constitucionalidade o regime do recurso ordinário que caberia, não há razões que levem o Tribunal Constitucional a pôr em causa o entendimento do tribunal recorrido.
5. Passar-se-á ao conhecimento do objecto do recurso, afirmando-se desde já que não merece censura o despacho recorrido.
Dispõe o art. 566º do Código de Processo Penal de 1929:
' Se o réu estiver praticamente impossibilitado de comparecer na audiência de julgamento por idade, moléstia ou por outra causa justificativa, como a de residir em lugar afastado do território português continental ou ultramarino, poderá ser interrogado no domicílio ou dispensado de comparecer em julgamento, procedendo-se a este, como se estivesse presente, nos termos do § 1º do artigo
418º, sem prejuízo, porém, de ulterior determinação sobre a sua comparência, se o tribunal a reputar necessária ao esclarecimento da verdade.
§ 1º Se a causa de não comparência do réu for de natureza temporária, adiar-se-á o julgamento pelo tempo reputado necessário, a requerimento do Ministério Público, do réu ou do assistente, ou oficiosamente em despacho fundamentado, e, decorridos dois meses, quando o processo for de querela ou correcional, ou um mês, quando for outra forma do processo, a contar do dia para esse julgamento designado e a que de novo tenha faltado, proceder-se-á ao julgamento à revelia no dia que for fixado, dentro dos quinze subsequentes ao decurso daqueles prazos, devendo o réu ser notificado para o julgamento com essa cominação.
§ 2º Se, antes de decorridos os prazos a que se refere o parágrafo anterior, o réu estiver ou se declarar em condições de comparecer em juízo, poderá o juiz, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, do assistente ou do próprio réu, marcar novo dia para julgamento. Se neste dia o réu também faltar, ainda que por causa legítima, será julgado à revelia, nos termos do § 1º.'
6. Como se refere detalhadamente nas alegações da entidade recorrente, o Tribunal Constitucional tem tido ocasião de apreciar a constitucionalidade dos regimes de julgamento penal de arguidos ausentes, quer no que toca ao Código de Processo Penal de 1929, quer no que toca ao Código de Justiça Militar ou a outros diplomas sancionatórios. Acrescente-se que a matéria da constitucionalidade dos regimes processuais de julgamento de ausentes foi objecto de consideração pela Comissão Constitucional (cfr. Parecer nº 12/78, in Pareceres da Comissão Constitucional, 5º vol. págs. 79 e seguintes) e pelo Tribunal Constitucional logo nos primeiros anos da sua actividade (cfr. acórdão nº 49/86, in Acórdãos, 7º vol., Tomo I, págs. 69 e segs.).
Mais recentemente, no seu acórdão nº 212/93 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., págs. 571 e seguintes), o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional o corpo do art. 566º do Código de Processo Penal de 1929, tendo entendido que a não presença do arguido à audiência podia constituir uma circunstância susceptível de influir na diminuição das garantias de defesa deste, sendo certo que o art. 32º, nº 1, da Constituição, havia erigido as garantias de defesa do arguido como um direito fundamental, inerente à pessoa humana e, nessa medida, indisponível e irrenunciável. De facto, ao não ser dada ao arguido a oportunidade para, pessoalmente, expor as razões da sua defesa, comprometia-se a possibilidade de ser ouvido pelo juiz, de forma a este poder aquilatar da sua personalidade. Daí que se houvesse decidido que a norma do corpo do art. 566º violava o art. 32º, nºs. 1 e 5, e o art. 2º da Constituição, afirmando-se que a efectivação do julgamento sem a presença do arguido impedia o fair trial, ou seja, um processo leal, apanágio do processo penal de um Estado de direito (formulação acolhida do acórdão nº 394/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., II, págs.
1087 e segs., tendo aí sido objecto do juízo de inconstitucionalidade o nº 3 do art. 304º do Código de Justiça Militar). A doutrina do acórdão nº 212/93 foi seguida noutros acórdãos que apreciaram a constitucionalidade da norma do corpo do art. 566º do Código de 1929 (acórdãos nºs. 479/93, 350/94, 351/94 e 333/95).
Por outro lado, no acórdão nº 443/95 (in Diário da República, II Série, nº 257, de 7 de Novembro de 1995), foi julgada inconstitucional a norma da 1ª parte do § 5º do art. 571º do mesmo Código de 1929, que regulava a tramitação no caso de revelia do réu, e que dispunha que o não comparecimento, por qualquer motivo, no dia novamente designado implicava o julgamento à revelia do arguido,
'como se estivesse presente, e o prazo para o trânsito em julgado' contar-se-ia
'desde a data da publicação, não podendo, em caso algum, requerer-se novo julgamento'. E, no mesmo sentido, relativamente à mesma norma se pronunciou ainda a 2ª Secção do Tribunal no acórdão nº 1183/96 (in Diário da República, II Série, nº 36, de 12 de Fevereiro de 1997).
Todavia, e como previne o Exmº. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, desta orientação jurisprudencial uniforme e pacífica não pode inferir-se 'que está postergada, em termos absolutos, a possibilidade de, em quaisquer circunstâncias, se proceder a julgamento «à revelia» do arguido no
âmbito do processo penal' (a fls. 88 dos autos). De facto, no acórdão nº 394/89, a propósito do art. 304º, nº 3, do Código de Justiça Militar, logo se admitiu a possibilidade de ocorrerem casos em que 'nem o direito de defesa, nem a verdade material [sofreriam] dano de maior dispensando-se a presença do arguido na audiência'. Em tais casos, porém, o legislador haveria de 'observar sempre um princípio de necessidade, proporcionalidade e adequação, por forma a não limitar, desnecessária ou desproporcionadamente, o direito-dever do arguido a ser ouvido e a assistir ao julgamento'. E, no acórdão nº 101/95 (in Diário da República, II Série, nº 138, de 17 de Junho de 1995) admitiu-se, embora sem unanimidade, que seria conforme à Constituição a norma do nº 2 do art. 11º do Decreto-Lei nº 17/91, que permite o julgamento em processo de transgressão do arguido que não foi localizado, nem chegou a ser notificado, mediante a nomeação de um defensor oficioso, pessoa a quem vem a ser feita a notificação da instauração do processo. Nesse julgamento avultou a ideia de que a norma em causa regia um processo 'que cura de questões de diminuta relevância ético-penal e nas quais estão em causa sancionamentos de não acentuada gravidade e que não contendem com a privação de liberdade' (bagatelas penais).
7. Porém, no caso sub judicio, a norma desaplicada - a do § 1º do art. 566º CPP 1929 - está afectada de inconstitucionalidade.
De facto, o arguido não compareceu no tribunal nas datas marcadas para julgamento, mas justificou, nos termos legais, as suas faltas, invocando razões de saúde, nomeadamente um internamento hospitalar coincidente com a data marcada para o julgamento com a cominação do § 1º do art. 566º CPP 1929, tendo desde sempre mostrado, pelo seu comportamento, que não se alheara do processo.
Quer dizer, não se está perante uma situação em que o arguido se tenha abstido de comparecer, sem qualquer justificação, nas datas sucessivamente marcadas para julgamento (cfr. o acórdão nº 100/95, inédito, em que se mostrou que o julgamento de inconstitucionalidade constante do acórdão nº 212/93, referente ao corpo do art. 566º do diploma de 1929, apenas abrangera o segmento da norma 'que permitia, independentemente da vontade do arguido, a dispensa de comparência ao julgamento, ainda que esta fosse justificada, - e só neste segmento', não podendo valer tal juízo para casos em que a falta do arguido ocorreu sem qualquer justificação).
Por isso, e tal como sustentam a entidade recorrente e o recorrido nas suas alegações, hão-de valer idênticas razões às adoptadas no acórdão nº 212/93 para inconstitucionalizar também o § 1º do art. 566º do CPP 1929, na dimensão em que impede que seja decretado um ulterior adiamento quando o arguido, notificado da nova data do julgamento, e tendo manifestado a intenção de estar presente na audiência de julgamento, venha a faltar na data marcada, por estar comprovadamente impossibilitado de comparecer por motivo justificado
(internamento hospitalar, no caso dos autos).
8. Importa, assim, confirmar o despacho recorrido no que respeita ao juízo de desaplicação da referida norma legal.
III
9. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional:
a) negar provimento ao recurso;
b) julgar inconstitucional a norma do § 1º do art. 566º do Código de Processo Penal de 1929, na dimensão em que impede que seja decretado um alterior adiamento da audiência de julgamento quando o arguido, notificado da nova data do julgamento e tendo manifestado a intenção de estar presente nessa audiência, venha a faltar na data marcada, por estar comprovadamente impossibilitado de comparecer por motivo justificado, confirmando a decisão recorrida no que respeita ao juízo de inconstitucionalidade formulado.
Lisboa, 23 de Abril de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Antero Alves Monteiro Diniz Luís Nunes de Almeida