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Processo n.º 103/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Inconformado com os acórdãos proferidos na Relação de Coimbra em 9 de dezembro de 2010 e em 10 de janeiro de 2011, A. recorreu, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro (LTC), pretendendo ver apreciada a 'inconstitucionalidade do artigo 380.º do Código de Processo Penal e dos artigos 50.º, 137.º e 291.º, todos do Código Penal', por violação do disposto nos artigos 18.º, 20.º, 27.º, 29.º e 30.º, da Constituição. Invocou, no requerimento de interposição do recurso, o seguinte:
I. Da decisão recorrida
Antes de mais, importa deixar claro que a Decisão ora recorrida engloba não só o Acórdão de 9.12.2010, mas também a decisão de 20.12.2011, a qual indeferiu o pedido de reforma daquele acórdão apresentado pelo ora Requerente.
Com efeito, a Decisão ora recorrida – Acórdão de 9.12.20 10 – confirmou a decisão da 1.ª instância de condenação do ora Requerente em (i) 20 (vinte) meses de prisão efetiva pela prática dos crimes de homicídio por negligência e de condução perigosa de veículo rodoviário, previstos e punidos nos artigos 137.º e 291.º do Código Penal; e (ii) na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 24 (vinte e quatro) meses.
Contudo, em 10.1.2011, o ora Requerente apresentou um pedido de reforma da Decisão ora recorrida, ao abrigo do disposto nos artigos 379.º e 380.º do Código de Processo Penal e 669.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal.
Através do supra aludido pedido de reforma, o ora Requerente suscitou, por um lado, dois lapsos manifestos na qualificação jurídica dos factos e, por outro, uma nulidade por falta de fundamentação da decisão de não suspender a execução da pena de prisão aplicada.
Em 20.12.2011, o Tribunal a quo indeferiu o pedido de reforma apresentado pelo ora Requerente com fundamento numa razão estritamente formal, a saber: a alegada impossibilidade de se introduzir quaisquer correções à Decisão ora recorrida, uma vez que as mesmas importariam modificação essencial de tal decisão, o que não seria permitido nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 380.º do Código de Processo Penal.
Aliás, o Tribunal a quo transcreve inclusivamente o despacho de pronúncia do Ministério Público no qual se diz que a forma de impugnar os lapsos manifestos suscitados pelo ora Requerente no pedido de reforma não seria “pelo mecanismo do art. 380.º do C.P.P, mas sim pelo recurso, acaso a lei o permita”, insinuando, assim, que o ora Requerente não teria suscitado estas questões nas suas alegações de recurso.
Sucede que, na verdade, e ao contrário do que insinua o Ministério Público, o ora Requerente suscitou os supra referidos lapsos manifestos em sede de alegações de recurso (cfr. conclusões das alegações de recurso n.ºs B 16 e B21).
Contudo, e surpreendentemente, o Tribunal a quo manteve estes lapsos manifestos cometidos pelo Tribunal de 1.ª Instância, pelo que não restou alternativa ao ora Requerente senão a de apresentar o já aludido pedido de reforma da Decisão ora recorrida.
Assim sendo, é manifesto que o Acórdão de 20.12.2011, que indeferiu o pedido de reforma apresentado pelo ora Requerente, deve evidentemente considerar-se complemento e parte integrante da Decisão ora recorrida (Acórdão de 9.12.2010), nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 670.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal.
Em face do supra exposto, é evidente que o recurso da Decisão ora recorrida (Acórdão de 9.12.2010) para o Tribunal Constitucional abrange naturalmente o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo em 20.12.2011.
II. Do objeto do presente recurso
A Decisão ora recorrida incorre, salvo o devido respeito, em três interpretações normativas manifestamente inconstitucionais, a saber:
Em primeiro lugar, a Decisão ora recorrida interpreta – através do Acórdão de 20.12.2011 - o disposto no artigo 380.º do Código de Processo Penal no sentido de que não seria admissível corrigir erros manifestos de julgamento relativamente a decisões penais insuscetíveis de se interpor recurso ordinário, o que se revela manifestamente inconstitucional por violação do princípio do acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da Constituição da República.
Na verdade, o Tribunal a quo alicerçou, como se viu supra, o indeferimento do pedido de reforma apresentado pelo ora Requerente no facto de a correção dos lapsos manifestos da Decisão ora recorrida importarem modificação essencial desta última.
Ou seja, escudando-se numa interpretação arreigadamente formalista do artigo 380.º do Código de Processo Penal, o Tribunal a quo denegou justiça ao ora Requerente, mantendo uma decisão que priva este último da liberdade, condenando um agente primário a vinte meses de prisão efetiva pela prática de um crime estradal de homicídio negligente.
Assim sendo, deve a interpretação normativa do artigo 380.º do Código de Processo Penal, sufragada pelo Tribunal a quo, ser sindicada pelo Tribunal Constitucional por violação do princípio do acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da Constituição da República.
De resto, existe um manifesto interesse processual na declaração de inconstitucionalidade da aludida interpretação normativa do artigo 380.º do Código de Processo Penal, uma vez que o provimento desta mesma inconstitucionalidade acarreta, por si só, a baixa dos autos ao Tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo 80.º da Lei do Tribunal Constitucional, o que poderá conduzir a uma reforma da Decisão recorrida.
Em segundo lugar, a Decisão recorrida interpreta os artigos 137.º e 291.º do Código Penal no sentido de que o crime de condução perigosa se encontra, em relação à mesma conduta e ao mesmo resultado, em concurso efetivo com o crime de homicídio por negligência, o que se revela manifestamente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 18.º, 27.º e 29.º da Constituição da República.
Com efeito, a interpretação dos artigos 137.0 e 291.0 do Código Penal, sufragada pelo Tribunal a quo, implica que um agente possa, em relação à mesma conduta e resultado, ser condenado pela prática de dois crimes, quando, na verdade, apenas existe um único crime, isto é, um homicídio negligente.
Ou seja, a interpretação dos artigos 137.º e 291.º do Código Penal, sufragada pelo Tribunal a quo, implica que um agente seja duplamente punido pela prática do mesmo crime, o que significa uma clara e flagrante violação do disposto no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, e como explicam Jorge Miranda e Rui Medeiros, “o n.º 5 deste artigo 29.º estabelece o princípio chamado ne bis in idem. Esta proibição de «duplo julgamento» pela prática do mesmo crime constituiu e continua a constituir uma garantia do cidadão frente a possíveis arbitrariedades do «jus puniendi» estadual. Assim, a ratio e o alcance deste princípio é o da proibição de um novo julgamento de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido e o da proibição de dupla punição pela prática do mesmo crime” (Jorge Miranda e Rui Medeiros in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2. Edição, Coimbra Editora, 2010, página 676).
Em terceiro lugar, a Decisão recorrida interpreta também o disposto no n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal no sentido de que um agente primário, socialmente inserido, pode ser condenado, pela prática de um crime negligente, numa pena de prisão efetiva, o que se revela manifestamente atentatório do princípio constitucional da preferência pelas sanções penais não detentivas, princípio este que decorre da necessidade e subsidiariedade (“ultima ratio”) da intervenção penal, razão pela qual tal interpretação normativa também infringe as disposições previstas nos artigos 18.º, n.º 2, 27.º, 29.º e 30.º, todos da Constituição da República.
Mais se informa, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 75.º-A da referida Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, que as interpretações normativas inconstitucionais supra aludidas foram suscitadas no pedido de reforma apresentado no Tribunal a quo pelo ora Requerente.
Nestes termos, deve o presente recurso para o Tribunal Constitucional interposto do Acórdão de 9.12.2010 ser admitido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional.
O recurso foi admitido no tribunal recorrido, mas no Tribunal Constitucional foi proferida a Decisão Sumária n.º 102/2012 na qual se decidiu, com fundamento no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, não conhecer, com os seguintes fundamentos, do objeto do recurso:
Constitui requisito do recurso previsto na citada alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a prévia suscitação da questão da inconstitucionalidade 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer' – n.º 2 do artigo 72º da LTC.
O modo processualmente adequado de suscitar as questões que o recorrente pretende ver tratadas neste recurso teria sido incluí-las na alegação que apresentou à Relação de Coimbra quando motivou o recurso que interpôs da sentença proferida em 12 de maio de 2010 no Tribunal Judicial da Lousã, o que não fez.
Ora, só depois de proferido o acórdão de 9 de dezembro de 2010, é que o recorrente, a pretexto de uma reclamação formulada mediante a invocação do artigo 380º do Código de Processo Penal ou dos 669º e 670º do Código de Processo Civil, suscitou verdadeiramente essas questões, pretendendo, desta forma, renovar a instância de recurso, o que, aliás, lhe não foi permitido no tribunal recorrido uma vez que, por acórdão de 20 de dezembro de 2011, a reclamação foi totalmente indeferida.
Cumpre, por isso, concluir que o recorrente não deu cumprimento ao aludido requisito do recurso interposto, razão pela qual o Tribunal não poderá conhecer do seu objeto.
2. Inconformado, o recorrente reclama para a conferência, alegando como segue:
I. Introducão
1. Os Tribunais administram a justiça em nome do povo, estando incumbidos de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (cfr. artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa), devendo, consequentemente, privilegiar a prolação de decisões de mérito em detrimento de meras decisões de forma.
2. No caso em apreço, encontra-se em causa o direito fundamental à liberdade do ora Reclamante previsto no artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa.
3. Na verdade, o Acórdão de 9.12.2010, proferido pelo Tribunal a quo, condenou o ora Reclamante, que é primário, em (i) 20 (vinte) meses de prisão efetiva pela prática dos crimes de homicídio por negligência e de condução perigosa de veículo rodoviário, previstos e punidos nos artigos 137.º e 291.º do Código Penal; e (ii) na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 24 (vinte e quatro) meses.
4. Ou seja, o ora Reclamante, cujo registo criminal é, pura e simplesmente, imaculado, arrisca-se a cumprir 20 (!) meses de pena de prisão efetiva por um crime negligente – acidente de viação ocorrido em 2008 –, do qual, trágica e infelizmente, resultou uma vítima mortal.
5. Esta é uma decisão perigosa, surpreendente e assente em interpretações normativas manifestamente inconstitucionais que o ora Reclamante pretende ver sindicadas através do recurso de inconstitucionalidade que interpôs.
6. No entanto, o relator proferiu a decisão sumária em crise, através da qual considerou que o Tribunal Constitucional não poderia conhecer do objeto do recurso interposto pelo Reclamante, na medida em que as questões de inconstitucionalidade não teriam sido suscitadas de modo processualmente adequado nas alegações de recurso que apresentou para o Tribunal a quo, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 72.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.
7. Sucede, porém, que o entendimento sufragado pelo relator não tem, salvo melhor opinião, fundamento. Se não, veja-se.
II. Da interpretação normativa inconstitucional do artigo 380.º do Código de Processo Penal
8. No pedido de reforma do Acórdão de 9.12.2010, proferido pelo Tribunal a quo, o ora Reclamante suscitou a seguinte questão de inconstitucionalidade:
“Aliás, uma eventual interpretação normativa no sentido de que não é legalmente admissível corrigir erros de julgamento – designadamente nos termos do disposto nos artigos 669.º e 670.º do Código de Processo Civil – relativamente a decisões penais insuscetíveis de se interpor recurso ordinário, é violadora do princípio do acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da Constituição da República”.
9. Quer isto dizer que o ora Reclamante antecipou, em sede de reforma, uma questão de inconstitucionalidade relacionada com uma eventual interpretação normativa das normas que regulam os incidentes pós-decisórios em processo penal, no sentido de que não seria admissível corrigir lapsos manifestos em sede de reforma.
10. Porém, o Tribunal a quo indeferiu o pedido de reforma apresentado pelo ora Reclamante precisamente com fundamento na putativa argumentação de que seria inadmissível corrigir os lapsos manifestos do Acórdão de 9.12.2010, uma vez que tal importaria modificação essencial deste último, o que estaria interdito pelo disposto no artigo 380.º do Código de Processo Penal.
11. Ou seja, escudando-se numa interpretação arreigadamente inconstitucional e formalista do artigo 380.º do Código de Processo Penal, o Tribunal a quo denegou justiça ao ora Reclamante, mantendo uma decisão que priva este último da liberdade, condenando um agente primário a vinte meses de prisão efetiva pela prática de um crime estradal de homicídio negligente.
12. Ora, afigura-se evidente que, ao contrário do que sustenta a decisão sumária em crise, o ora Reclamante suscitou, de forma diligente, adequada e prudente, a questão da inconstitucionalidade relacionada com a interpretação normativa do artigo 380.º do Código de Processo Penal no seu pedido de reforma.
13. Na verdade, e como explica Lopes do Rego, “é Legítimo, no requerimento em que se peticiona a reforma da decisão com base em pretenso «lapso manifesto» do julgador, questionar a constitucionalidade da norma que restringe tal tipo de reforma «substancial» a certos processos, de determinada natureza ou iniciados a partir de certa data” (Lopes do Rego in Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, página 79, sublinhado do Reclamante).
14. Foi justamente isto que o Reclamante efetuou. Isto é, pediu a reforma do Acórdão de 9.12.2010 com fundamento na existência de lapsos manifestos, questionando a constitucionalidade da norma do artigo 380.º do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de que não é admissível corrigir lapsos manifestos que importem modificação essencial de uma decisão final.
15. Aliás, seria um ónus processual absurdo e desproporcional exigir que o ora Reclamante tivesse antecipado uma questão de inconstitucionalidade das normas que regulam os incidentes pós-decisórios em processo penal nas suas alegações de recurso.
16. Com efeito, não era exigível que o ora Reclamante antecipasse nas suas alegações de recurso uma questão de inconstitucionalidade relacionada com um incidente pós-decisório, a qual não possuía, logicamente, qualquer utilidade ou pertinência antes do Tribunal a quo proferir uma decisão final.
17. Nas palavras de Lopes do Rego, “na verdade – e como é manifesto – não está naturalmente esgotado com a prolação da sentença o poder jurisdicional do tribunal «a quo» quanto a tais matérias, que se conexionam diretamente com o objeto e os pressupostos de admissibilidade do incidente pós-decisório suscitado pelo recorrente – e sendo, aliás, absurda a exigência que se traduzisse em obrigar o interessado a antecipar a suscitação de questões de caráter puramente hipotético e eventual, que somente perante a decisão final ou atos ou fases do processo a ela ulteriores ganham sentido e atualidade” (Lopes do Rego in Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, páginas 79 e 80, sublinhado nosso).
18. De outro modo, se as questões de inconstitucionalidade relacionadas com a interpretação de normas que regulam os incidentes pós-decisórios tivessem de ser suscitadas logo nas alegações de recurso, chegar-se-ia ao ridículo de impor ao recorrente o ónus de invocar matérias de inconstitucionalidade que não teriam qualquer utilidade, nem interesse, em ser discutidas antes da prolação da decisão final.
19. De resto, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que a reforma é o meio idóneo para suscitar questões de inconstitucionalidade relativamente a matérias em que o poder jurisdicional do Tribunal a quo não se tenha esgotado com a “decisão final”.
20. Com efeito, o Acórdão n.º 159/2002 do Tribunal Constitucional sufragou que é possível suscitar questões de inconstitucionalidade num incidente pós-decisório [tal como o pedido de reforma] “quando se trate de matérias relativamente às quais o poder jurisdicional do tribunal se não tenha esgotado com a “decisão final”, de modo a ser-lhe ainda possível pronunciar-se, na decisão da reclamação por nulidade, sobre a questão de constitucionalidade que lhe foi colocada. É o que acontece no caso dos autos. No acórdão que decidiu a reclamação por nulidade o Tribunal a quo poderia ainda, como fez pronunciar-se sobre a constitucionalidade dos preceitos do nº 3 do art. 412.º do art. 428º e do art. 431.º do Código de Processo Penal, na medida em que tais preceitos, enquanto contribuem para a definição do objeto do recurso (e, portanto, da matéria sobre a qual o Tribunal ad quem tem o dever de se pronunciar), são relevantes para que aquele Tribunal possa decidir se se verifica ou não a invocada nulidade por omissão de pronúncia prevista no artigo 379.º nº 1. al. c) do Código de Processo Penal” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 159/2002, disponível em ... ).
21. Ora, no caso concreto, é evidente que o poder jurisdicional do Tribunal a quo não se tinha esgotado relativamente à apreciação dos lapsos manifestos suscitados pelo ora Reclamante no seu pedido de reforma.
22. Por conseguinte, é manifesto que o Tribunal a quo tinha o dever de se pronunciar sobre a já referida interpretação normativa inconstitucional do artigo 380.º do Código de Processo Penal invocada pelo ora Reclamante no pedido de reforma do Acórdão de 9.12.2010.
23. Em face do supra exposto, é forçoso concluir que o ora Reclamante suscitou a questão da inconstitucionalidade da supra mencionada interpretação normativa do artigo 380.º do Código de Processo Penal de forma processualmente adequada, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 72.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, razão pela qual a mesma deverá ser conhecida pelo Tribunal Constitucional.
III. Das interpretações normativas inconstitucionais dos artigos 137.º, 291.º e 50.º do Código Penal
24. Para além da interpretação normativa inconstitucional supra aludida, o ora Reclamante suscitou ainda outras duas questões de inconstitucionalidade no pedido de reforma do Acórdão de 9.12.2010, a saber:
(i) “Noutro prisma, saliente-se, em qualquer caso, que a interpretação normativa dos artigos 137.º e 291.º do Código Penal no sentido de que o crime de condução perigosa se encontra, em relação à mesma conduta e ao mesmo resultado, em concurso efetivo com o crime de homicídio por negligência, viola o disposto nos artigos 18.º 27.º e 29.º da Constituição da República”; e
(ii) “Em todo o caso, saliente-se ainda que a interpretação normativa do n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal no sentido de que um agente primário, socialmente inserido, pode ser condenado, pela prática de um crime negligente, numa pena curta de prisão efetiva é violadora do princípio constitucional da preferência pelas reações não detentivas, princípio este que decorre da necessidade e subsidiariedade (“ultima ratio”) da intervenção penal razão pela qual tal interpretação do infringe as disposições previstas nos artigos 18.º, n.º 2, 27.º, 29.º e 30.º, todos da Constituição da República”.
25. As aludidas questões de inconstitucionalidade foram deduzidas a título complementar.
26. Na verdade, o ora Reclamante invocou, em primeira linha, dois lapsos manifestos na qualificação jurídica dos factos em que incorreu o Acórdão de 9.12.2010.
27. Sendo que as questões de inconstitucionalidade foram invocadas, por mera cautela de patrocínio, com o intuito de reforçar a existência dos lapsos manifestos em que o Tribunal a quo incorreu.
28. Assim sendo, é evidente que o poder jurisdicional do Tribunal a quo ainda não se tinha esgotado relativamente aos lapsos manifestos suscitados pelo ora Reclamante no pedido de reforma.
29. Concomitantemente, é igualmente forçoso concluir que o poder jurisdicional do Tribunal a quo também não se tinha esgotado em relação às aludidas questões de inconstitucionalidade, pela simples mas contundente razão de que as mesmas se relacionavam com as interpretações normativas que, antes mesmo de serem inconstitucionais, constituíam – e constituem –, a montante, lapsos manifestos que devem ser retificados pelo Tribunal a que através de um incidente pós-decisório.
30. Por conseguinte, as questões de inconstitucionalidade relacionadas com os lapsos manifestos em que incorreu o Acórdão recorrido foram suscitadas de modo processualmente adequado “durante o processo” pelo ora Reclamante no seu pedido de reforma, uma vez que o poder jurisdicional do Tribunal a quo ainda não se tinha esgotado (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 159/2002, disponível em ...)
31. Como explica o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 479/89: “é pressuposto da admissibilidade do recurso aí previsto que a inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo e, por outro lado, é principio firmado em jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal o de que tal requisito só pode ter-se por verificado se a inconstitucionalidade houver sido invocada pelo recorrente antes de se esgotar o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a questão para cuja resolução é relevante a norma arguida” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 479/89, disponível em ...)
32. Acresce, em qualquer caso, que a interpretação e a aplicação que o Tribunal a quo fez dos artigos 137.º, 291.0 e 50.º do Código Penal são inovatórias e surpreendentes.
33. Na verdade, a jurisprudência é unânime em não aplicar pena de prisão efetiva a agentes primários pela prática de crimes estradais negligentes.
34. Por conseguinte, não era exigível que o cm Reclamante tivesse suscitado as interpretações normativas inconstitucionais dos mencionados artigos do Código Penal nas suas alegações de recurso.
35. Em face do supra exposto, é forçoso concluir que o ora Reclamante suscitou as questões de inconstitucionalidade relacionadas com as interpretações normativas dos artigos 137.º, 291.º e 50.º do Código Penal de forma processualmente adequada, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 72.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, razão pela qual as mesmas deverão ser conhecidas pelo Tribunal Constitucional.
IV. Da condenação do ora reclamante no pagamento de custas
36. A decisão de condenação do ora Reclamante no pagamento de custas deve, em qualquer caso, ser revogada.
37. Na verdade, o ora Reclamante usufrui de apoio judiciário sob a modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do Regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais, aprovado pela Lei 34/2004, de 29 de julho.
38. Ora, dispõe o artigo 85.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional que: “nos recursos para o Tribunal Constitucional podem as partes litigar com beneficio de apoio judiciário, nos termos da lei”.
39. Deste modo, é manifesto que o ora Reclamante está dispensado do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
40. Em face do supra exposto, requer, em qualquer caso, a revogação da decisão que condenou o Reclamante no pagamento de custas, designadamente na taxa de justiça no valor de 7 unidades de conta.
41. De resto, o ora Reclamante deverá também ser dispensado do pagamento de custas, taxa de justiça ou qualquer outro encargo, com a apresentação da presente reclamação.
Nestes termos, com o douto suprimento de direito de V. Ex.as, deve:
(i) a presente reclamação ser julgada procedente e, em consequência, ser admitido o recurso interposto do Acórdão de 9.12.2010 (cfr. capítulos 1, II e III supra);
(ii) (em qualquer caso) a decisão de condenação do Reclamante no pagamento de taxa de justiça, no montante de 7 unidades de conta, ser integralmente revogada (cfr. capítulo IV supra);
(iii) (em qualquer caso) o ora Reclamante ser dispensado do pagamento de quaisquer custas, taxa de justiça, ou demais encargos com a presente reclamação (cfr. capítulo IV supra).
O representante do Ministério Público neste Tribunal, notificado da reclamação deduzida, pronuncia-se no sentido do seu total improvimento.
Sem vistos prévios, o processo vem à Conferência para decisão.
3. Fundamentou-se a decisão sumária de não conhecimento do recurso na circunstância de se não verificar, no caso em presença, um requisito essencial à sua interposição, por não terem sido oportunamente suscitadas perante o tribunal recorrido as questões de inconstitucionalidade, de modo processualmente adequado e em termos de o tribunal estar obrigado a delas conhecer, conforme impõe o n.º 2 do artigo 72º da LTC.
É contra este julgamento que reage o recorrente na sua reclamação, na qual trata separadamente a questão relacionada com a norma do artigo 380º do Código de Processo Penal, face à questão relacionada com as restantes normas, retiradas dos artigos 50º, 137º e 291º, todos do Código Penal.
Efetivamente, alcança-se melhor o sentido da pretensão do recorrente se se observar, à vez, tal matéria.
Assim: sustenta o reclamante que suscitou a questão relacionada com a inconstitucionalidade do artigo 380º do Código de Processo Penal no momento processual em que lhe foi possível levantar o problema, o que só ocorreu depois da prolação do 1º acórdão, proferido em 9 de dezembro de 2012. Na realidade, a aplicação da norma foi pela 1ª vez invocada pelo recorrente ao apresentar a reclamação contra o aludido acórdão.
Acontece, porém, que, nessa fase, o recorrente não imputou à referida norma qualquer desconformidade constitucional; o que o reclamante fez foi invocar a aplicação do artigo 380º do Código de Processo Penal para poder apontar ao tribunal erros de julgamento cometidos no anterior aresto. Mas que, se o tribunal entendesse que tal preceito não admitia a correção desses erros, então eles deveriam ser atendidos 'ao abrigo do disposto nos artigos 669º e 670º do Código de Processo Civil', por se estar perante um caso omisso no âmbito do Código de Processo Penal, 'a resolver por aplicação subsidiária das regras dos artigos 669º e 670º do Código de Processo Civil'. É no contexto desta argumentação que o recorrente, ora reclamante, ainda invocou: “Aliás, uma eventual interpretação normativa no sentido de que não é legalmente admissível corrigir erros de julgamento – designadamente nos termos do disposto nos artigos 669º e 670º do Código de Processo Civil – relativamente a decisões penais insuscetíveis de se interpor recurso ordinário, é violadora do princípio do acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20º da Constituição da República”.
Daqui se conclui, sem esforço, que o vício de inconstitucionalidade foi apontado à norma dos artigos 669º e 670º do Código de Processo Civil, mas não ao referido artigo 380º do Código de Processo Penal que o reclamante admitiu ter um conteúdo precetivo diverso, e ser inaplicável ao caso.
Aliás, certo é ainda que o acórdão de 10 de janeiro de 2011 não aplicou o referido artigo 380º do Código de Processo Penal no pretendido sentido 'de que não seria admissível corrigir erros manifestos de julgamento relativamente a decisões penais insuscetíveis de se interpor recurso ordinário'. Com efeito, é evidente que o tribunal nunca deu como certo que ocorreriam erros manifestos de julgamento no anterior aresto, circunstância que, só por si, impediria o Tribunal de conhecer do recurso com um tal objeto.
Decide-se, por isso, manter a decisão reclamada, e o seu fundamento, quanto a esta norma.
4. Pretende ainda o reclamante ver conhecido o recurso na parte em que invoca a inconstitucionalidade dos artigos 137º, 291º e 50º do Código Penal, e, por via disso, ver tratada a questão de saber se 'o crime de condução perigosa se encontra, em relação à mesma conduta e ao mesmo resultado, em concurso efetivo com o crime de homicídio por negligência'; e, ainda, a questão de saber se 'um agente primário, socialmente inserido, pode ser condenado, pela prática de um crime negligente, numa pena curta de prisão efetiva'.
Mas também quanto a esta matéria não pode subsistir a mínima dúvida de que as questões não foram invocadas perante a Relação, por forma a que o tribunal as conhecesse no seu acórdão de 9 de dezembro de 2010. E podiam ter sido colocadas nessa fase, face ao conteúdo condenatório do aresto da 1ª instância.
Acresce, ainda, que saber se 'um agente primário, socialmente inserido, pode ser condenado, pela prática de um crime negligente, numa pena curta de prisão efetiva' não é uma questão de natureza normativa que possa ser sujeita à fiscalização concreta de constitucionalidade.
Decide-se, por isso, manter, também nesta parte, a decisão reclamada.
5. Finalmente, invoca o reclamante que goza de apoio judiciário na modalidade de dispensa da pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do Regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais, aprovado pela Lei 34/2004, de 29 de julho, pelo que requer 'a revogação da decisão que condenou o reclamante no pagamento de custas, designadamente na taxa de justiça no valor de 7 unidades de conta'.
Está equivocado o reclamante quanto ao alcance do benefício; a sua concessão não o isenta da condenação nas custas devidas, mas apenas (e mesmo assim de forma não absoluta), do seu pagamento.
O pedido não tem fundamento legal e vai, por isso, indeferido.
6. Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir integralmente a reclamação, mantendo a decisão sumária que não conheceu do objeto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de abril de 2012.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão.