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Processo n.º 830/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos em que é recorrente o Ministério Público e recorridos Município de Oeiras, A. e B., foi interposto recurso, para si obrigatório, nos termos do n.º 3 do artigo 280º da Constituição da República (CRP) e do n.º 3 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), de despacho liminar proferido pelo 1º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial de Oeiras, em 10 de Outubro de 2011 (fls. 19 e 20), que desaplicou a norma constante do artigo 95º, n.º 3, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (de ora em diante, RJUE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro), por inconstitucionalidade orgânica, mediante invocação de juízo de inconstitucionalidade proferido pelo Acórdão n.º 145/2009, do Tribunal Constitucional.
2. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu alegações, cujas conclusões ora se transcrevem:
“1º
A matéria da organização e competência dos tribunais situa-se no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia da República, pelo que só é possível dispor inovatoriamente sobre tal tema quando o Governo se haja munido da indispensável autorização legislativa, cujo sentido e extensão o habilitem a legislar específica e directamente sobre o tema da competência dos tribunais.
2º
A norma constante do artigo 95º, nº 3, do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, ao atribuir competência ao foro cível para a decisão jurisdicional que legitime os serviços inspectivos da autarquia a entrarem coercivamente nos edifícios ou fracções onde decorram obras presumivelmente ilegais, com vista à preparação do acto administrativo que, no exercício das funções autárquicas no âmbito do urbanismo, reponha a legalidade violada – não encontrando suporte bastante na respectiva autorização legislativa – padece de inconstitucionalidade orgânico-formal.
3º
Tal vício não pode considerar-se sanado ou precludido pela simples circunstância de um diploma legal – ulteriormente editado sobre a matéria do regime de urbanização e edificação, com a forma de lei – ter procedido à republicação do texto do Decreto-Lei nº 559/99, com as posteriores alterações, não tendo estas qualquer conexão com o problema de competência material solucionado pela norma desaplicada.
4º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida.” (fls. 45 e 46)
3. Devidamente notificados para o efeito, os recorridos deixaram esgotar o prazo sem que viessem aos autos oferecer quaisquer contra-alegações.
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Conforme salientado pela própria decisão recorrida, a questão relativa à inconstitucionalidade orgânica do artigo 95º, n.º 3, do RJUE, por resultar de ato legislativo do Governo que não beneficia da correspondente autorização parlamentar, em sentido substancial, já foi profundamente ponderada e decidida pelo Acórdão n.º 145/09, da 1ª Secção (ver http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Dessa feita, concluiu-se que aquela específica norma do decreto-lei não beneficiava da correspondente autorização parlamentar, pelo que redundou numa violação da reserva relativa de competência legislativa parlamentar, decorrente da alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da CRP. Por ser integralmente transponível para os presentes autos, reitera-se aquele entendimento.
Nos presentes autos, resta, porém, verificar se a circunstância de o RJUE ter sido republicado, por força do artigo 4º da Lei n.º 60/2007, de 04 de setembro, implica uma sanação do vício de inconstitucionalidade orgânica, por força da emissão de norma idêntica, desta feita de origem parlamentar. Na verdade, através do Acórdão n.º 485/10 – que viria, mais tarde, a ser corroborado pelo Acórdão n.º 397/11 (ambos disponíveis in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), esta Secção, já teve oportunidade de decidir, a propósito de norma relativa à realização coativa de exame ao sangue para deteção de álcool (artigo 153º, n.º 8, do Código da Estrada, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 44/2004, de 23 de fevereiro), que a assunção parlamentar de norma idêntica a norma constante de decreto-lei não autorizado equivale a uma novação da fonte normativa, que afasta a referida inconstitucionalidade orgânica originária.
Sucede, porém, que, nesse caso específico, a referida novação normativa ocorria por força de norma legal (o artigo 7º do Regulamento de Fiscalização da Condução sobre a Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de maio) que expressava uma vontade legislativa expressamente atribuível ao legislador parlamentar. Diferentemente, nos presentes autos, aprecia-se lei parlamentar que se limitou a introduzir várias alterações a decreto-lei, sem que tivesse expressamente alterado a norma ora sob análise, ou seja, o artigo 95º, n.º 3, do RJUE. Além disso, a mera republicação do Decreto-Lei n.º 555/99, determinada pelo artigo 4º da Lei n.º 60/2007, não pode ser interpretada como a expressão livre do legislador parlamentar em fazer sua a norma constante daquele preceito legal. Aliás, a própria letra do preceito que determina a republicação é esclarecedora, ao determinar que o anexo republicado faz parte do Decreto-Lei n.º 555/99, com a redação introduzida por aquela lei parlamentar.
Na verdade, a mera republicação de decreto-lei governamental, sem que seja acompanhada de alteração do(s) preceito(s) anteriormente ferido(s) de inconstitucionalidade orgânica, constitui um mero expediente de técnica legística, que visa facilitar a apreensão do conteúdo normativo dos atos legislativos, sem que signifique uma integral novação de toda e cada uma das normas constantes do diploma republicado. Diferente seria, caso a Lei n.º 60/2007 tivesse procedido a uma revogação global do decreto-lei em causa, mediante aprovação de um novo texto normativo, ainda que este recuperasse uma parcela significativa das normas anteriormente vigentes. Não foi isso, porém, o que sucedeu.
Deste modo, mantém-se o sentido já expresso pelo supra citado Acórdão n.º 145/09, segundo o qual:
“O artigo 95º, nº 3, do Decreto-Lei nº 555/99 não foi objecto de qualquer alteração ou reprodução por via de lei ou de decreto-lei autorizado, nem tão-pouco de qualquer proposta ou projecto de alteração que tivesse sido rejeitado em sede parlamentar (os trabalhos preparatórios daqueles diplomas estão disponíveis em www.parlamento.pt), pelo que a norma em apreciação não foi assumida pela Assembleia da República.
Por outro lado, a circunstância de o Decreto-Lei nº 555/99 ter sido republicado em anexo à Lei nº 60/2007 (cf. artigo 4º desta lei), não significa, diferentemente do sustentado pelo recorrente Município de Lisboa, que “o legislador parlamentar fez sua a norma posta em crise”. Neste sentido depõe a “natureza instrumental e não inovadora da republicação”, que apenas visa garantir, de forma fácil e segura, o conhecimento do direito em vigor (cf. David Duarte/Sousa Pinheiro/Lopes Romão/Tiago Duarte, Legística – Perspectivas sobre a concepção e redacção de actos normativos, Almedina, 2002, p. 196 e ss., e Blanco de Morais, Manual de Legística. Critérios Científicos e Técnicos para Legislar Melhor, Verbo, 2007, p. 557 e s.); bem como a própria Lei nº 74/98, de 11 de Novembro – Lei da publicação, identificação e formulário dos diplomas (republicada, em anexo, pela Lei nº 42/2007, de 24 de Agosto) –, quando, no artigo 6º, especifica os casos de republicação integral dos diplomas, em anexo.”
Em suma, a norma constante do artigo 95º, n.º 3, do RJUE é inconstitucional, por ter sido adotada por decreto-lei, sem que beneficiasse da correspondente autorização parlamentar, em violação da alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da CRP.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se não conceder provimento ao presente recurso.
Sem custas legais, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 28 de março de 2012.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.