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Procº nº 70/96 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. M...,Sargento-Chefe de Infantaria da Guarda Nacional Republicana, interpôs, no Supremo Tribunal Administrativo, recurso de anulação do despacho de
10 de Outubro de 1991 do Ministro da Administração Interna, que indeferiu o recurso hierárquico interposto do despacho do General Comandante Geral da GNR que desatendera a reclamação que apresentara sobre o seu posicionamento no
índice 260, escalão 4, da escala de remunerações estabelecida pelo Decreto-Lei nº 59/90, de 14 de Fevereiro (que estabelece as regras sobre o estatuto remuneratório dos oficiais, sargentos e praças da Guarda Nacional Republicana e da Guarda Fiscal), após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 85/91, de 23 de Fevereiro (que
estabelece o regime a aplicar no desbloqueamento dos escalões do novo sistema retributivo do pessoal das Forças de Segurança - Guarda Nacional Republicana e Guarda Fiscal).
2. Nas alegações que apresentou naquele Tribunal, o recorrente concluíu da forma que a seguir se transcreve, para melhor esclarecimento do que estava em causa:
'I - O recorrente, que é Sargento-Chefe da GNR desde 30.5.79, foi integrado no escalão 3 (índice 250) de remunerações, da categoria de Sargentos, aquando da entrada em vigor do DL 59/90, de 14.2. II - A partir de Dezembro de 1990 passou a ser remunerado pelo índice 260, correspondente ao escalão 4, por lhe ter sido aplicado a progressão de um escalão, em relação ao seu escalão de integração com o fundamento de que o
índice 260 correspondia ao escalão 4, o último do posto de Sargento-Chefe. III - O Recorrente devia porém, progredir dois escalões, com efeitos desde 1 de Julho de 1990, data a partir da qual foram desbloqueados esses dois escalões (DL
59/90, 26/2, a), e DL 85/91, de 23.2, artº 2º/nºs 1 e 2, b)). IV - Conforme resulta do confronto do regime de retribuição do pessoal da GNR com o das Forças Armadas, a progressão daquele não tem como limite o último escalão do posto respectivo (DL 408/90, de 31.12, 4º/2, e também o DL 307/91, de
17.8, 3º/3). V - O que significa que essa progressão de dois escalões implica a transposição para o índice 270, que é o seguinte ao 260, no posto imediato.
VI - O enquadramento remuneratório em índice de posto mais elevado é admitido por lei, quer no que toca à integração na NER (DL 59/90, 22/1, a) e b), e 24), quer no que respeita à progressão, nomeadamente em função de tempo de serviço no posto (DL 299/91, de 16.8, 4º e 7º, e DL 85/91, 3º/1). VII - Ao recusar o enquadramento do Recorrente, no índice 270, a partir de
1.7.90, o acto recorrido violou, inter alia, as disposições legais referidas nestas conclusões, o que é causa da sua anulação'.
Por sua vez, a auditoria jurídica do Ministério da Administração Interna produziu alegações pela entidade recorrida, as quais foram rematadas do seguinte modo:
'1ª- O princípio da legalidade - princípio a que a Administração está vinculada, inclusive por preceito constitucional expresso (art. 266º, nº 2, da Lei Fundamental) - impõe que, no exercício das suas funções, os órgãos e agentes da Administração Pública apenas podem agir com fundamento na lei, e dentro dos limites por ela impostos (por todos, Prof. Freitas do Amaral, 'Direito Administrativo', vol. II, Lisboa, 1984, lições, pág. 194);
2ª - À data da prática do acto recorrido - 10 de Outubro de 1991 -, os sargentos-chefes, tanto da Guarda Nacional Republicana, quanto da Guarda Fiscal, apenas poderiam aceder, em termos de progressão no posto de que eram titulares, até ao escalão 4, a que correspondia o índice 260 (anexo ao Decreto-Lei nº
59/90, de 14 de Fevereiro);
3ª - Tendo o Recorrente - Sargento-Chefe de Infantaria da Guarda Nacional Republicana -, em virtude da aplicação das regras contidas, quer no Decreto-Lei nº 59/90, de 14 de Fevereiro, quer no
Decreto-Lei nº 85/91, de 23 de Fevereiro, atingido já, no momento em que foi emitido o acto recorrido
(10.10.91), o escalão 4 referente àquele posto - a que correspondia o índice 260
-, mais não lhe era lícito progredir, em termos de sistema remuneratório - e na ocasião considerada -, no referido posto de Sargento-Chefe;
4ª - Por força das conclusões que antecedem, não podia o recorrente, à data da prática do acto recorrido (10.10.91), ser posicionado no escalão 5 e índice 270 da escala de remunerações; escalão e índice, aqueles, referidos ao posto de Sargento-Chefe da Guarda Nacional Republicana, por tal hipótese não estar considerada por lei;
5ª - O acto recorrido é, pelas razões indicadas nas conclusões anteriores, um acto válido, porquanto adoptado no pleno respeito da legalidade vigente'.
3. Por Acórdão de 1 de Julho de 1993, a 1ª Subsecção da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, invocando, designadamente, 'o princípio da legalidade, explicitamente consagrado no nº 2 do artigo 266º da CRP, segundo o qual, os órgãos e os agentes da Administração Pública só podem agir no exercício das suas funções com fundamento na lei e dentro dos limites por ela impostos'.
Assim, e porque 'só é autorizado à Administração fazer aquilo que a lei permite [...], determinando o nº 1 do artigo 15º do citado Decreto-Lei nº
59/90 que o escalão máximo para a progressão no posto de Sargento-Chefe (que é o correspondente ao do recorrente) é o nº 4, para que este escalão pudesse ser ultrapassado pela Administração, sem ser violado o princípio da legalidade atrás referenciado, seria necessário que lei expressa autorizasse a ultrapassagem desse limite máximo [...]'.
4. Inconformado com a decisão, levou o recorrente recurso ao Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, referindo nas conclusões VII a XI das suas alegações o seguinte:
'VII - Por aplicação do princípio da equidade, definido como princípio geral no diploma matriz que fixou o novo regime da função pública, quanto a emprego e remuneração (DL 184/89, 14), as expectativas da evolução da carreira do funcionário não podem sofrer prejuízo derivado da implementação do novo sistema retributivo (id., 40/2). VIII - Do entendimento restritivo, e redutor, dado pelo acórdão recorrido ao princípio da legalidade, resultam ofendidos os direitos do Recorrente, derivados do seu tempo de serviço, uma vez que parte deste tempo não é compensada em termos de remuneração. IX - O princípio da legalidade significa a conformação da Administração à lei, uma vez que o sentido e o alcance da lei são fixados através dos princípios de interpretação previstos no artº 9º do Código Civil. X - No caso vertente, do indevido entendimento do princípio da legalidade, no tocante aos escalões do posto de Sargento-Chefe, e ao regime de integração e progressão nos mesmos, resulta a ofensa de princípios igualmente respeitáveis, como os da justiça, da imparcialidade e da igualdade (CRP 13/1, e 266). XI - Ao negar provimento ao recurso contencioso, recusando assim o enquadramento do Recorrente, no índice 270, a partir de 1.7.90, o acórdão recorrido violou inter alia, as disposições legais referidas nestas conclusões'.
5. Por Acórdão de 16 de Novembro de 1995, o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, considerando, designadamente, o seguinte:
'No caso em apreço nos autos, o recorrente no seu recurso para este Pleno da 1ª Secção, nas seis primeiras conclusões limitou-se a reproduzir, com pequenas e inconsequentes alterações de redacção, o que, nomeadamente no plano do direito, invocara na alegação do recurso contencioso do auto impugnado.
E nas conclusões VII a X o recorrente invoca - na perspectiva em que o fez - questões novas cujo conhecimento, nos termos sobreditos, está vedado e este Pleno da Secção.
Mas ainda que se pretendesse ver, num esforço de boa vontade, na conclusão X, a invocação de vícios de conhecimento oficioso, que seriam os decorrentes da violação dos princípios constitucionais da justiça, da imparcialidade e da igualdade consagrados nos artºs. 13º, 1 e 266º do CRP, então, ter-se-á que dizer que, sendo o acto recorrido, acto proferido no uso de poderes vinculados, aqueles vícios, porque apenas possíveis em actos proferidos no uso de poderes discricionários, não ocorrem in casu.
A conclusão XI é apenas uma conclusão de síntese que nenhuma relevância tem para a decisão do presente recurso.
Improcedem, pois, todas as conclusões da alegação do recorrente'.
6. Ainda inconformado, apresentou o recorrente requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
'M..., Recorrente no recurso referenciado, em que é Recorrido o Senhor Ministro da Administração Interna, não se conformando com o acórdão de fls., que negou provimento ao recurso jurisdicional, assim decidindo que não se verifica a violação dos princípios constitucionais da justiça, da imparcialidade e da igualdade (CRP, 13/1, e 266), vem recorrer de tal decisão para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos artºs. 280/1, b), da CRP, 69,70/1,b),
72, nº1, b), e nº 2, da Lei nº 28/82, de 15.12, e no artº 685/1 do CPC.
A questão da inconstitucionalidade, por violação dos princípios da justiça, da imparcialidade e da igualdade (CRP, 13/1 e 266) encontra-se suscitada nas alegações do recorrente, no recurso jurisdicional (cfr. conclusão X).
Assim, porque está em tempo e para tanto tem legitimidade, requer a V. Exª. que, admitido o recurso, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito suspensivo (Lei 28/82, 78/4), sejam os autos remetidos ao Tribunal Constitucional'.
Admitido o recurso para este Tribunal, foi o recorrente notificado, nos termos do nº 5 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº
28/82, de 15 de Setembro, na redacção da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro) para indicar a norma cuja inconstitucionalidade pretendia fosse apreciada pelo Tribunal, tendo em resposta indicado os artigos 4º e 7º do Decreto-Lei nº 299/91, de 16 de Agosto, e o artigo 3º do Decreto-Lei nº 85/91, de 23 de Fevereiro.
7. As alegações produzidas pelo recorrente neste Tribunal encerram assim:
'I - O regime geral remuneratório da função pública consta do DL 184/89, de
2.06. II - No Conselho de Ministros de 21.12.89 foram aprovados três diplomas, referenciados àquele DL 184/89, visando regular o regime remuneratório nas Forças Armadas, na PSP e na GNR/GF, todos publicados em 14.02.90, respectivamente os DL's 57/90, 58/90 e 59/90. III - Conforme resulta do confronto do regime de retribuição dos militares da GNR com os das Forças Armadas, a progressão daqueles não tem como limite o
último escalão do posto respectivo. IV - É o que se alcança dos regimes legais vigentes para as F.A. (DL 408/90, de
31.12, 4º/2, e DL 307/91, de 17.08, 3º/3) e para a GNR, quer no que respeita à integração no NER (DL 59/90, 22/1,a) e b), e 24) quer no caso que respeita à progressão (caso sub judice), nomeadamente em função de tempo de serviço no posto (DL 299/91, 4º e 7º e DL 85/91, 3º/1). V - Daí que o Recorrente, por força do disposto no artº 26/2, a), do DL 59/90, e no artº 2º, nº 1 e 2, b), do DL 85/91, devesse progredir dois escalões, desde
1.07.90, passando do índice 250, não ao 260 (o último do seu posto de Sargento-Chefe), mas ao 270, que é o seguinte ao 260, mas já no posto imediato.
VI - O entendimento dado pelo acórdão recorrido às referidas normas dos artºs 4º e 7º do DL 299/91 e do artº 3º/1 do DL 85/91 traduz-se na violação do princípio da legalidade, ao admitir-se como correcta a interpretação que Administração deu a tais preceitos, quando na verdade tal interpretação se mostra desconforme aos princípios de interpretação constantes do artº 9º do Código Civil. VII - Desse indevido entendimento do princípio da legalidade, no respeitante à progressão nos escalões remuneratórios do posto de Sargento-Chefe, resulta ofensa dos direitos do Recorrente, derivados do seu tempo de serviço, por via da ofensa, pelas normas citadas na conclusão anterior, dos princípios constitucionais da justiça, da imparcialidade e da igualdade (CRP, 13/1 e 266). VIII - Termos em que devem tais normas ser julgadas inconstitucionais, com as consequências legais'.
Por sua vez, a entidade recorrida suscitou nas suas alegações uma questão prévia conducente ao não conhecimento do recurso, concluindo da seguinte forma:
'1ª - Ao longo do processo - e, bem assim, no presente recurso -, o Recorrente nunca suscitou, directamente, a questão da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 4º e 7º do Decreto-Lei nº 299/91, de 16 de Agosto, e, de idêntico modo, da norma a que se refere o artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº
85/91, de 23 de Fevereiro;
2ª - Em resultado da conclusão que antecede, o presente recurso não está em condições de ser
admitido (artº 280º, nº 1, al. b), da Constituição da República, conjugado com o artº. 70º, nº 1, al. b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro);
3ª - O Douto Acórdão recorrido não fez qualquer indevida interpretação e inadequada aplicação da lei; e, assim, do mesmo não resulta a ofensa ou violação de princípios ou normas constitucionais - particularmente dos consignados nos artigos 13º, nº 1 e 266º, ambos da Lei Fundamental'.
8. Ouvido o recorrente sobre a questão prévia, respondeu nestes termos:
'A questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 4º e 7º do DL 299/91, de 16.8, e 3º/1 do DL 85/91, de 23.2, em função do entendimento que lhes deu o acórdão recorrido, foi suscitada durante o processo, nas alegações do Recorrente, no recurso jurisdicional (cfr. conclusão X)'.
9. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir, começando-se pela análise da questão prévia suscitada.
II - Fundamentos.
10. Tendo o recurso de constitucionalidade sido interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional são seus requisitos específicos a suscitação da inconstitucionalidade de uma norma jurídica durante o processo, a aplicação pela decisão recorrida da norma arguida de inconstitucional e o prévio esgotamento dos recursos ordinários. Dúvidas só se colocam sobre se o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade das normas que só veio a identificar em resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido pelo ora Relator: a entidade recorrida entendeu que não, enquanto o recorrente considerou tê-lo feito na conclusão X, acima transcrita, das suas alegações para o Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo.
Mas o que nessa conclusão se põe em causa, à face dos princípios constitucionais invocados, é um 'indevido entendimento do princípio da legalidade', que logo se vê não constitui invocação da inconstitucionaliade das normas que posteriormente foram identificadas para apreciação por este Tribunal.
A inconstitucionalidade, por violação dos princípios da justiça, da imparcialidade e da igualdade (artigos 13º, nº 1, e 266º, nº 2, da Constituição), resultante do 'indevido entendimento do princípio da legalidade',
é imputada, na referida conclusão X do recurso jurisdicional para o Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo ao acto admnistrativo recorrido e ao próprio Acórdão da 1ª Subsecção da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 1 de Julho de 1993.
Como é sabido, o Tribunal Constitucional só tem competência para apreciar a questão da constitucionalidade de normas jurídicas e não de actos administrativos (não incorporados em normas jurídicas) e de decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Ora, como ainda recentemente se recordou (cfr., por todos, o Acórdão nº 18/96, publicado no Diário da República, II série, de 15 de Maio de 1996, com indicação de outra jurisprudência), 'o sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade é, tal como vem sublinhando este Tribunal, um sistema de controlo normativo, uma vez que só podem ser objecto de recurso de constitucionalidade as normas jurídicas e não também as decisões judiciais, consideradas em si mesmas'.
Há, assim, que concluir pelo não conhecimento do presente recurso de constitucionalidade. de 1 de Julho de 1993
III - Decisão.
11. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do recurso e condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em oito Unidades de Conta.
Lisboa, o5 de Março de 1998 Fernando Alves Correia Messias Bento Bravo Serra José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida