Imprimir acórdão
Proc.Nº 163/96 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - O Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feira deduziu acusação, em processo de querela, contra A., B. e contra a sociedade C. por terem praticado um crime de fraude na obtenção de crédito, previsto e punido no artigo 38º, nº 1, alíneas a) e h) e nº
2, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro e apenas contra os dois arguidos singulares, a prática de um crime de burla agravada, previsto e punido nos artigos 313º e 314º, alíneas a) e c) do Código Penal.
Realizado o julgamento, o Colectivo declarou os arguidos B. e A. autores de um crime de fraude na obtenção de crédito, cujo procedimento criminal foi julgado extinto, por prescrição, condenou os mesmos arguidos como autores de um crime de burla agravada, fixando para o B. uma pena de 28 meses de prisão e para o A. uma pena de 20 meses de prisão, condenou ainda a arguida C. pela prática de um crime de fraude na obtenção de crédito, na multa global de
750.000$00. Mais foram condenados os três arguidos, solidariamente, a entregar ao Estado 12.307.762$00, respeitando 3.615.077$00 a bonificações de juros concedidos pela Direcção-Geral do Tesouro e o restante às contribuições industriais de 1986 e 1987 e juros compensatórios.
A decisão suspendeu a pena do arguido B., com a condição de, em 90 dias, demonstrar nos autos que ele ou a 3ª arguida pagaram ao Estado a quantia atrás referida, declarando perdoada ao A. a pena de prisão e ao arguido dois anos da pena aplicada, por força das leis de amnistia entretanto publicadas. Relativamente à arguida C., a decisão declarou perdoada metade da pena de multa, ao abrigo da Lei nº 23/91.
2. - Desta decisão, todos os arguidos interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, mas os recursos do arguido B. e da firma C. foram julgados desertos, mantendo-se apenas o recurso de A.
A Relação, por acórdão de 28 de Setembro de 1994, decidiu negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
Quer o Ministério Público quer o arguido A., inconformados, interpuseram recursos para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
Neste Tribunal, por acórdão de 27 de Abril de 1995, veio a conceder-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, o STJ anulou a decisão da Relação, com fundamento em omissão de pronúncia uma vez que o acórdão recorrido não se pronunciou não só sobre a questão das implicações no caso sub judicio da declaração de inconstitucionalidade do §1º, nº2, do artigo 667º do Código de Processo Penal de
1929, quando aplicado por força do preceituado no artigo 7º, nº1, do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, a processos pendentes à data da entrada em vigor do novo Código de Processo Penal, como também se não pronunciou sobre a eventual suspensão da pena aplicada ao A., nem sobre o afastamento do perdão da Lei nº
16/86 e sobre a eventual aplicação da Lei nº 15/94, de 11 de Maio.
Remetidos os autos à Relação, veio a ser proferido um novo acórdão, em 6 de Dezembro de 1995, pelo qual a Relação apreciou as questões suscitadas pelo Ministério Público, posição que veio a acolher, pelo que se decidiu agravar substancialmente a pena do arguido. Porém, veio a recusar a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, quer da norma do nº1 quer do nº 2, do §1º do artigo 667º do CPP de 1929 - que permitiam tal agravação - e que seriam aplicáveis ao caso por força do preceituado no artigo 7º, nº1 do Decreto-Lei nº 78/87, pelo que se decidiu no sentido de confirmar o acórdão do Colectivo devido à proibição da «reformatio in peius».
3. - É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade pelo Ministério Público, que este Magistrado considera ter por objecto a questão da inconstitucionalidade da norma do nº1 do
§1º do artigo 667º do CPP de 1929, quando aplicável por força do nº1 do artigo
7º do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro. Não pode, todavia, deixar de se referir que toda a questão foi suscitada pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, no momento do visto inicial do recurso, e, por isso, em aplicação directa do nº2 do §1º do artigo 667º do CPP de 1929.
O Ministério Público, porém, no requerimento de interposição do recurso e nas alegações que apresentou neste Tribunal, refere-se apenas ao nº 1 do §1º pelo que só este preceito tem de ser considerado. Nestas alegações, formularam-se as seguintes conclusões:
'1º
A norma do §1º, nº1, do artigo 667º do Código de Processo Penal de 1929
(não verificação de proibição de «reformatio in pejus») quando aplicada, por força do disposto no nº1 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, a processos pendentes à data da entrada em vigor do actual Código de Processo Penal, é inconstitucional por violação da parte final do nº 4 do artigo
29º da Constituição.
2º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
O recorrido não apresentou contra-alegações.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
4. - O objecto do presente recurso é a questão da conformidade à Lei Fundamental da norma do artigo 667º, §1º, nº1, do Código de Processo Penal de 1929, quando aplicada por força do preceituado no artigo 7º do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro.
É certo que, como se referiu atrás, a questão conducente
à decisão agora em recurso foi suscitada pelo Ministério Público junto do Tribunal da Relação no parecer que elaborou no momento do primeiro recurso para esta instância, cuja decisão veio depois a ser anulada pelo STJ. De facto, neste parecer, levantou-se a questão de não se encontrar extinto por prescrição o procedimento criminal pelo crime de fraude na obtenção de crédito, ao contrário do que se decidira no acórdão do colectivo e, por outro lado, defendeu-se que o arguido não podia beneficiar do perdão concedido pela Lei nº 16/86, elementos que a serem atendidos, levariam a uma agravação das penas permitida pelo artigo
667º, $1º, nº2, do CPP de 1929; porém, tendo esta norma sido julgada inconstitucional (Acórdão nº 250/92), as penas aplicadas não podiam ser agravadas, o que não obstaria à correcção dos pontos referidos.
O acórdão da Relação, tendo embora sufragado o entendimento do Ministério Público quanto aos 'reparos' feitos, todavia, negou provimento ao recurso. Como se relatou, este acórdão veio a ser anulado pelo STJ com fundamento em omissão de pronúncia, designadamente, quanto à questão de constitucionalidade.
No acórdão ora recorrido, depois de se referirem as
'incorrecções' do anterior acórdão procedeu-se à sua correcção, chamando-se então à colação o Acórdão nº 451/93 deste Tribunal, em que se julgou inconstitucional a norma do nº2 do §1º do artigo 667º do CPP de 1929, quando aplicada por força do artigo 7º do Decreto-Lei nº 78/87, por violação do nº4 do artigo 29º da Constituição (princípio da aplicação retroactiva das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido).
Relativamente ao nº 1 do §1º do artigo 667º escreveu-se no acórdão:
'E o nº1 do §1º do artº 667º, pelas mesmas razões, também se tem como inconstitucional porque, permitindo ao arguido um tratamento mais desfavorável do que teria lugar se a lei nova fosse aplicada retroactivamente, viola igualmente a parte final do nº4 do artº 29º da Constituição Portuguesa.
Da inconstitucionalidade do nº1 do §1º do artº 667º do Código de Processo Penal de 1929 decorre inequivocamente, que a proibição da «reformatio in peius» impede esta Relação de agravar o acórdão recorrido e, consequentemente, as correcções efectuadas não produzem qualquer efeito.'
Conclui-se, assim, que a norma efectivamente desaplicada pela decisão recorrida foi a norma do corpo e do nº1 do §1º do artigo 667º do Código de Processo Penal de 1929 (adiante, CPP), quando aplicada por força do artigo 7º, do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro.
O texto desta norma é o seguinte:
'Artigo 667º
(Proibição da reformatio in pejus)
Interposto recurso ordinário de uma sentença ou acórdão somente pelo réu, pelo Ministério Público no exclusivo interesse da defesa, ou pelo réu e pelo Ministério Público nesse exclusivo interesse, o tribunal superior não pode, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrente:
1º - Aplicar pena que, pela espécie ou pela medida, deva considerar-se mais grave do que a constante da decisão recorrida;
2º - Revogar o benefício da suspensão da execução da pena ou o da sua substituição por pena menos grave;
3º - Aplicar qualquer pena acessória, não contida na decisão recorrida, fora dos casos em que a lei impõe essa aplicação;
4º - Modificar, de qualquer modo, a pena aplicada pela decisão recorrida.
§1º - A proibição estabelecida neste artigo não se verifica:
1º - Quando o tribunal superior qualificar diversamente os factos, nos termos dos artigos 447º e 448º, quer a qualificação respeite à incriminação, quer a circunstâncias modificativas da pena;
2º - Quando o representante do Ministério Público junto do tribunal superior se pronunciar, no visto, inicial do processo, pela agravação da pena, aduzindo logo os fundamentos do seu parecer, caso em que serão notificados os réus, a quem será entregue cópia do parecer, para resposta no prazo de oito dias.
(...)'
Na decisão recorrida afirma-se que 'é, ainda, aplicável aos autos, instaurados antes de 1988, o regime do Código de Processo Penal de
1929 - artº 7º, nº1, do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro e único da Lei nº 17/87, de 1 de Junho'.
O artigo 7º, nº1 estabelece que, 'o Código de Processo Penal aprovado pelo presente diploma e as disposições antecedentes começarão a vigorar no dia 1 de Junho de 1987 [data alterada para 1 de Janeiro de 1988, pela Lei nº 17/87, de 1 de Junho], mas só se aplicam aos processos instaurados a partir desta data, independentemente do momento em que a infracção tiver sido cometida, continuando os processos pendentes àquela data a reger-se até ao trânsito em julgado da decisão que lhes ponha termo pela legislação ora revogada'.
O Tribunal da Relação, ao apreciar o recurso do arguido, A., entendeu que, sendo aplicável o CPP de 1929, se estava perante uma situação em que não se verificava a proibição da «reformatio in pejus», pelo que podia alterar e agravar a condenação da primeira instância.
Mas, porque considerava inconstitucional, por violação do nº4 do artigo 29º da Constituição, a aplicação do nº1 do §1º do artigo 667º do CPP, quando imposta por força do artigo 7º do Decreto-Lei nº 78/87, recusou a sua aplicação, aplicando retroactivamente a lei nova - Código de Processo Penal de 1987, artigo 409º, nº1 - por ser este o regime que mais favorecia o arguido, enquanto proibia a agravação da condenação se o recurso da decisão final fosse apenas interposto pelo arguido, pelo que se confirmou o acórdão recorrido.
Vejamos, pois, se a norma complexa constituída pelo nº1 do §1º do artigo 667º do CPP de 1929 e pelo preceito do artigo 7º, nº1, do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, viola ou não a Constituição.
5. - Tal como o Ministério Público refere nas suas alegações 'a questão fundamental que se põe neste processo é a de saber se o princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido (artigo 29º, nº4) vigora quando estão em causa normas processuais, como seria o caso do artigo 667º, §1º, nº1'.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre questão idêntica a esta, relativamente ao nº 2 do mesmo §1º, do artigo 667º do CCP/1929, em dois acórdãos que vêm também mencionados pelo Ministério Público nas suas alegações - o Acórdão nº 250/92 (in 'Diário da República', IIª Série, de 27 de Outubro de 1992) e o Acórdão nº 451/93 (in 'Diário da República', IIª Série, de
27 de Abril de 1994) - nos quais se julgou inconstitucional a norma em causa que admitia a «reformatio in pejus» no caso de o Ministério Público junto do tribunal superior se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, desde que os fundamentos logo aduzidos fossem notificados ao réu que poderia responder em oito dias. O fundamento da inconstitucionalidade foi a violação do princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável (artigo 29º, nº 4, da Constituição).
No caso em apreço, a «reformatio in pejus» deriva da possibilidade de o tribunal superior qualificar os factos de modo diverso, nos termos dos artigos 447º e 448º, quer a qualificação respeite à incriminação quer a circunstâncias modificativas da pena, questão esta introduzida pelo representante do Ministério Público no seu visto, no tribunal de recurso, em sede de recurso interposto apenas pelo réu e sem que a este fosse dada possibilidade de responder a tal parecer exarado no visto.
Ora, as razões que, nos acórdãos referidos, foram invocadas para fundamentar a inconstitucionalidade, valem de forma idêntica para o caso dos autos, podendo tal fundamentação ser transposta para este caso.
Assim, sendo embora certo que o Tribunal Constitucional tem expressado o entendimento de que o nº 4 do artigo 29º da Constituição, na parte em que se reporta à aplicação retroactiva das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido, visa apenas a aplicação da lei penal de carácter substantivo, não se aplicando aos preceitos processuais (cfr., Acórdãos nºs
155/88 e 70/90 (publicados, nos 'Diários da República', IIª Série, de, respectivamente, 17 de Setembro de 1988 e 17 de Julho de 1990), este entendimento foi apreciado criticamente pela doutrina (cfr. Gomes Canotilho,
'Revista de Legislação e Jurisprudência', nº 3792,pág. 84 e ss.). E, no Acórdão acima mencionado, nº 250/92, veio a decidir-se estar em causa «a questão da constitucionalidade de normas que têm a ver directamente com a pena aplicável», tendo-se ali concluído que, «apesar de o nº 2 do §1º do artigo 667º assegurar neste caso a defesa dos arguidos, tem-se como certo que a norma em questão, ao permitir a agravação da pena em recurso interposto apenas pelo arguido, ofende o princípio consignado na parte final do nº 4 do artigo 29º da Constituição, ou seja, o princípio da aplicação retroactiva das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido».
O Acórdão nº 451/93 veio a sufragar este entendimento, afirmando que o 'princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei mais favorável ao arguido constante do nº 4 do artigo 29º da nossa lei fundamental, princípio esse que, como se viu, não se restringirá apenas ao domínio de aplicação da lei penal substantiva [mas] poderá, pois, ser alargado até ao ponto de sob a sua protecção deverem ser tidas certas situações, como a dos autos, em que está em causa uma norma processual penal de natureza substantiva ou pelo menos quase-substantiva cuja protecção no processo não pode deixar de ter-se por intimamente conexionada com o próprio princípio da legalidade e consequentemente com a garantia por ele conferida'.
É certo, como se referiu, que estes arestos se reportam directamente ao nº2 do §1º do artigo 667º do CPP de 1929, mas a questão de constitucionalidade que vem suscitada, como refere o Procurador-Geral adjunto na suas alegações, não pode deixar de se enquadrar e de ser analisada à luz do mesmo parâmetro constitucional: o da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido.
Com efeito, enquanto a norma questionada permite que se faça, no âmbito de um recurso interposto unicamente pelo réu, uma diversa qualificação dos factos quer esta respeite à incriminação quer a circunstâncias modificativas, de acordo com o preceituado nos artigos 447º e 448º do CPP de
1929, a norma do artigo 409º do Código de Processo Penal em vigor na data do acórdão recorrido, não permitia, em tal tipo de recurso, que o tribunal superior modificasse, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.
Não pode, pois, deixar de se reconhecer que a norma cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida, na medida em que consente a alteração da qualificação dos factos quer no seu efeito incriminatório quer no que releva quanto a circunstâncias modificativas da pena em recurso interposto apenas pelo arguido, se encontra afectada de inconstitucionalidade material por violação do princípio da aplicação retroactiva das leis penais de conteúdo mais favorável, constante da parte final do nº4 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, pelo que não pode censurar-se a decisão de que ora se recorre.
De todo o exposto se conclui que a norma do nº1 do §1º do artigo 667º, do Código de Processo Penal de 1929, quando aplicada por força do disposto no nº1 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, a processos pendentes à data da entrada em vigor do Código de Processo Penal de
1987 e na medida em que permite ao tribunal superior fazer uma diversa qualificação dos factos (em sede de incriminação ou de circunstâncias modificativas) em recurso interposto apenas pelo réu é materialmente inconstitucional, sendo correcta a recusa da sua aplicação.
III - DECISÃO:
Nestes termos, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 1997.04.23 Vítor Nunes de Almeida Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa