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Proc. nº 704/93
1ª Secção Rel: Cons. Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, o Ministério Público propôs contra a Associação Cultural e Histórica do Chefe da Casa Real Portuguesa, S.A.R. Dom Rosário Poidimani Saxe Coburgo Gotha e Bragança - A.C.RE.P. acção declarativa de nulidade do acto de constituição e dos estatutos e subsquente extinção, em ordem aos artigos 4º, nº 2, 6º, nº 2, alínea d), e
13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 594/74, de 7 de Novembro, e ao artigo 158º-A do Código Civil.
Em sentença de 22 de Janeiro de 1991, a acção foi julgada procedente e declarada a extinção da A.C.RE.P.. Do que esta Associação interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando a questão de constitucionalidade da norma do artigo 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 594/74, de 7 de Novembro, que confrontou com o artigo 46º, nº 1, da Constituição da República.
A Relação de Lisboa, em acordão de 23 de Janeiro de 1992, negou provimento ao recurso, e desse acordão recorreu ainda a A.C.RE.P. para o Supremo Tribunal de Justiça, suscitando a mesma questão de constitucionalidade.
O Supremo Tribunal de Justiça, em acordão de 6 de Outubro de 1993, negou provimento ao recurso. Tratou ali, como duas questões distintas, a da constitucionalidade do artigo 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 594/74, de 7 de Novembro, e a questão da regularidade do objecto e fim da Associação, em ordem aos artigos 46º da Constituição e 158º-A e 280º do Código Civil. Como se demonstra nestes momentos essenciais do acordão:
'(...) O artigo 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 594/74, de 7 de Novembro, dispõe:
«A promoção e constituição de associações internacionais em Portugal depende de autorização do Governo».
O artigo 46º, nº 1, da Constituição dispõe:
«1. Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal».
Parece à 1ª vista que estes dois textos se contradizem, tanto mais que o artigo 15º, nº 1, da Constituição, consigna o princípio da equiparação dos estrangeiros aos nacionais.
Assim e nos termos do artigo 290º, nº 2, da Constituição deveria considerar-se revogado, por inconstitucionalidade superveniente, o respectivo artigo 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 594/74, de 7 de Novembro.
Porém, a contradição é meramente aparente.
Efectivamente, a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica - cfr. FERRARA 'Interpret. e Aplic. das Leis', 2ª edição, pág. 130.
O artigo 46º, nº 1, da Constituição limita-se a proclamar um princípio - o da liberdade de associação.
Não se estava propriamente a regular a aplicação desse princípio às associações internacionais.
Ora estas, pela sua própria natureza, - uma vez que a sua acção se não confina aos limites territoriais de um país, mas pode abranger vários, - reclamam uma disciplina própria.
Assim, muito embora o texto constitucional não distinga associações nacionais e internacionais, cabe ao interprete distinguir - cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO 'O Direito - Introd. e T. Geral', 2ª edição, pág. 379.
O próprio artigo 11º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que no seu artigo 11º, nº 1, consagra o princípio da liberdade de associação, ressalva no seu nº 2 restrições várias ao exercício desse direito, por razões de segurança nacional, segurança pública, defesa da ordem e prevenção do crime, protecção da saúde ou da moral, protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.
No nosso direito essa defesa está assegurada em geral, nos termos dos artigos 158º-A e 182º, nº 2, alínea d), do Código Civil - cfr. P. LIMA e A. VARELA, 'Código Civil Anotado', volume I, 2ª edição, pág. 151.
No caso das sociedades internacionais, tal defesa está assegurada pelo artigo 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 594/74, de 7 de Novembro, que não está em oposição com o artigo 46º, nº 1, da Constituição - cfr. P. LIMA e A. VARELA,
'Código Civil Anotado', volume I, 1ª edição, pág. 103.
O princípio da equiparação dos estrangeiros aos nacionais , consagrado no artigo 15º, nº 1, da Constituição, também não é absoluto e sofre várias restrições, como pode ver-se dos restantes números desse artigo.
Não se verifica portanto qualquer revogação, por inconstitucionalidade superveniente, do artigo 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº
594/74, de 7 de Novembro.
Assim, continua a ser necessário o reconhecimento governamental das associações internacionais' (...).
E prosseguia assim o acordão sobre a questão do fim e objecto da Associação:
'(...) O artigo 46º da Constituição consagra o princípio da liberdade de associação.
Admite porém, como não podia deixar de ser, a sua dissolução ou suspensão (das associações) nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial - nº 2.
O artigo 158º-A do Código Civil considera aplicável à constituição de pessoas colectivas o disposto no artigo 280º do mesmo Código, 'devendo o Ministério Público promover a declaração judicial de nulidade'.
Segundo o artigo 280º, nº 1, do Código Civil, é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
E o nº 2 acrescenta que é nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.
Verifica-se assim que, ao contrário do que alega a Recorrente, não só o fim, mas também o objecto, podem determinar a dissolução da associação
(...)'.
E depois de em várias considerações sublinhar que a linha monárquica da Associação implica que o seu objecto 'ofende claramente a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente os seus artigos 1º e 2º, 12º, nºs 1 e 2, e
18º, nº 1,' disse o Supremo Tribunal de Justiça:
'(...) Os poderes atribuídos ao Fundador, constantes nomeadamente dos artigos 15º, nºs 2 e 4, 18º, nº 3, 21º, nº 2 e 24º, nº 1, dos Estatutos, violam o disposto nos artigos 162º e 170º do Código Civil e o princípio da igualdade das associações.
Trata-se dos poderes praticamente ilimitados e subtraídos a qualquer fiscalização ou censura.
Não se torna necessário levar mais longe a análise dos Estatutos, pois está sobejamente demonstrada a inconstitucionalidade e ilegalidade, quer do fim, quer do objecto da A.C.RE.P..
O artigo 46º, nºs 1 e 4, da Constituição não pode de modo algum dar cobertura a esta associação, pelas razões atrás indicadas.
Os artigos 158º-A e 280º do Código Civil são aplicáveis ao caso, mas no sentido de que o acto constitutivo da A.C.RE.P. é nulo, por contrário à lei e
à ordem pública' (...).
Depois, o Supremo Tribunal de Justiça considerava que para o caso se convocava também o artigo 11º, nº 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o qual estava também a ser violado.
A A.C.RE.P. interpôs recurso deste acordão para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro. O objecto delimitou-o na norma do artigo 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 594/74, de 7 de Novembro, confrontada com os artigos 46º, nº 1, e
15º, nº 1, da Constituição.
2. O recurso foi admitido no Supremo Tribunal de Justiça, com efeito meramente devolutivo, nos termos do artigo 78º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional. O recorrente impugnou esse regime de subida, com a consideração de que o preceito se reporta tão só ao recurso de constitucionalidade que não admita outro 'por razões de valor ou alçada'. Mas não é assim: como refere o Sr. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional, da norma do artigo 78º, nº
1, não deve fazer-se uma interpretação meramente literal, mas teleológica: a norma pretende estender ao recurso de constitucionalidade o regime que teria o recurso ordinário intentado na ordem dos tribunais judiciais, se as leis de organização judiciária o permitissem.
O recorrente, em alegações no Tribunal Constitucional, concluiu assim:
'(...) O princípio da liberdade de associação inscrito no artigo 46º, nº 1 da CRP emerge do princípio da universalidade de direitos, nos limites inerentes à natureza das pessoas colectivas previsto no artº 12º, nº
2, da CRP;
Às pessoas colectivas estende-se, ainda interpretado em termos hábeis o artº 15º da CRP;
A liberdade de associação beneficia pois do regime de aplicabilidade directa do artº 18º, nº 1, da CRP;
As restrições à liberdade de associação são restrições de direito, logo reserva de lei nos termos constitucionalmente consagrados;
Com a entrada em vigor da Constituição de 1976 o direito ordinário anterior adquire nova validade, fundada na Constituição;
Verifica-se pois a chamada novação do direito ordinário anterior;
Um dos corolários dessa novação consiste na não subsistência das normas anteriores contrárias à Constituição;
Tais normas caducam por inconstitucionalidade superveniente;
A associação é o principal dos tipos constitucionalmente protegidos de organização colectiva dos cidadãos;
A liberdade de associação é a expressão mais qualificada da liberdade de organização colectiva privada;
O direito positivo de associação reconhecido no nº 1 do artº 46º não comporta imposições do Estado;
O direito de associação é pois um direito negativo, isto é, um direito de defesa perante o Estado, proibindo a intromissão deste nas associações;
A exigência de reconhecimento governamental inscrita no nº 2 do artº
13º do DL 594/74, de 7 de Novembro, infringe o artº 46º, nº 1 da CRP;
Essa norma de direito ordinário anterior à Constituição caducou por inconstitucionalidade superveniente;
Essa norma é ainda ilegal por infringir o artº 11º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
Termos em que deve ser declarada essa inconstitucionalidade e consequente caducidade com os legais efeitos' (...).
O Sr. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional suscitou, em contra-alegações, a questão prévia do não conhecimento do recurso. Concluiu assim:
'(...) 1º - O recurso de constitucionalidade tem carácter instrumental, não devendo conhecer-se do seu objecto quando a questão de constitucionalidade suscitada seja insusceptível de implicar qualquer repercussão na concreta resolução judicial do pleito.
2º - Decretada judicialmente a extinção de uma associação internacional com fundamento cumulativo na inexistência do reconhecimento governamental, exigido pelo nº 2 do artigo 13º do Decreto-Lei nº 594/74, de 7 de Novembro, e na ilicitude do seu fim e do seu objecto, nos termos dos artigos
158º, 158º-A, 177º e 280º do Código Civil, carece manifestamente de utilidade o recurso de constitucionalidade circunscrito à apreciação da inconstitucionalidade daquele preceito legal, na parte em que condiciona a promoção e constituição de associações internacionais a autorização governamental.
3º - Na verdade, tendo a acção procedido com base na verificação de causas de pedir concorrentes e de actuação simultânea, sendo qualquer delas susceptível de produzir o efeito extintivo pretendido pelo autor, é óbvio que a resolução da questão de constitucionalidade, objecto do presente recurso, nenhuma repercussão poderá ter na concreta solução do litígio.
4º - O artigo 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 594/74 não contende com a liberdade de associação, consagrada no artigo 46º, nº 1, da Constituição, desde que entendido como reportando-se à aquisição de personalidade jurídica, condicionando-a a um sistema de reconhecimento individual ou por concessão, no que às associações internacionais se refere (...)'.
À questão prévia do não conhecimento do recurso respondeu a Associação recorrente que a utilidade do mesmo se mantinha, porquanto, havendo o Supremo Tribunal de Justiça por violado o artigo 11º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, era sua intenção recorrer para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no prazo de seis meses, previsto naquela Convenção. Disse:
'(...) A A.C.RE.P. está a organizar essa queixa a apresentar na Comissão Europeia.
Se vier a obter no Tribunal Europeu uma decisão favorável a questão da constitucionalidade é uma questão decisiva para a licitude da constituição da Associação.
A invocada instrumentalidade da questão de constitucionalidade em razão dos fins (e objecto) só teria validade argumentativa se já tivesse decorrido o prazo de seis meses depois de proferido o acordão do STJ e a recorrente não tivesse exercido o direito de queixa na Comissão Europeia.
A recorrente A.C.RE.P. fará prova, nestes autos , antes do decurso daquele prazo de seis meses, da apresentação daquela queixa (...)'.
II - A questão prévia do não conhecimento do recurso
1. O Ministério Público suscita a questão prévia do não conhecimento do recurso. Afirma que o acordão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça decidiu no sentido da dissolução da A.C.RE.P., não apenas com o fundamento de improcedência da questão de constitucionalidade do artigo 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 594/74, de 7 de Novembro [autorização do Governo para a constituição de associações internacionais], mas também com o fundamento de violação dos artigos 158º, 158º-A, 177º e 280º do Código Civil [ilicitude do objecto e fim da Associação]. O recurso de constitucionalidade não seria útil, visto que, mesmo decidida a primeira questão em sentido favorável ao recorrente, sempre subsistiria o segundo fundamento, que escapa a essa questão, e o sentido da decisão do Supremo Tribunal de Justiça manter-se-ia.
2. A 'separação' das duas linhas de fundamentação do acordão do Supremo Tribunal de Justiça não é, porém, evidente. O acordão, ao considerar 'a ilicitude do objecto e fim' toma, em vários momentos, como parâmetro, o artigo
46º nºs 1 e 4 da Constituição (cf. fls. 221 e ainda fls. 219, em que se afirma que 'está sobejamente demonstrada a inconstitucionalidade e ilegalidade, quer do fim quer do objecto da A.C.RE.P.'). Ou seja, em certos momentos, para o Supremo Tribunal de Justiça, contrariedade à lei é também contrariedade à Constituição.
O julgamento da questão de constitucionalidade da norma do artigo
13º, nº 2, do Decreto-Lei nº594/74, de 7 de Novembro ['A promoção e constituição de associações internacionais em Portugal depende de autorização do Governo], à luz da liberdade fundamental de constituição de associações que a Constituição consagra no artigo 46º, poderia envolver uma argumentação que respondesse também
às questões equacionados pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre a
'constitucionalidade-legalidade' dos objectos e fim da A.C.RE.P..
Este efeito de 'consumpção' pela solução da questão de constitucionalidade - que se legitimaria, pois, no facto de o acordão recorrido chamar o mesmo lugar-parâmetro do artigo 46º da CRP para a segunda linha de fundamentação - só não existirá, se alguns argumentos sobre a 'ilicitude do objecto e fim' da Associação usados naquele acordão, se subtraírem à pretensão regulativa fundamental do artigo 46º da Constituição.
Ora, é isso que se passa com as normas invocadas dos artigos 162º
(Órgãos) e 170º (Titulares dos órgãos da associação e revogação dos seus poderes). Estas normas, que o Supremo Tribunal de Justiça invocou na decisão por efeito de matéria de facto (estatutária) ali relevada, não tem intersecção directa com o problema de constitucionalidade. Dir-se-ía que elas foram aplicadas 'nos limites do Código Civil' de tal modo que a solução da questão de constitucionalidade as não abrangeria .
O mesmo vale para o artigo 11º, nº 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que a recorrente diz que funda a subsistência da utilidade do recurso. Também com essa norma [O exercício deste direito de (associação) só pode ser objecto de restrições que, sendo previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional...] - aquelas não têm uma directa conexão.
Mas, assim, o que quer que o Tribunal Constitucional decidisse no recurso de constitucionalidade não alteraria nunca o sentido do acordão do Supremo Tribunal de Justiça, que é o sentido da dissolução da A.C.RE.P.. É que sempre as normas dos artigos 162º e 170º do Código Civil seriam suficientes para fundar essa mesma decisão. E, como o Tribunal Constitucional vem afirmando em jurisprudência reiterada e pacífica, o recurso de constitucionalidade é um recurso instrumental, só fazendo sentido dele conhecer quando a decisão que o resolve se pode projectar com utilidade sobre a causa. (cf., por todos o acordão nº 93/95, D.R., II Série, de 19-04-1995). Daí que, no caso, se não conheça do recurso.
III - Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em ucs.