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Proc. nº 91/97
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I
1. A., arguido em autos de processo penal, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa de despachos proferidos pelo Juiz de Instrução Criminal de Lisboa sobre requerimentos por si apresentados, sustentando que transitara em julgado um anterior despacho a ordenar a notificação dos vários assistentes para constituírem um só advogado e que o segundo despacho impugnado reduziria a letra morta o preceito do nº 1 do art. 70º do Código de Processo Penal, pois que a incompatibilidade de interesses a que alude o nº 2 do mesmo artigo poderia compreender razões de desconfiança em pessoa ou pessoas de advogados, desde que objectivas, verdadeiras e plausíveis, não bastando uma mera declaração dos assistentes no sentido de que confiavam apenas naqueles que haviam por eles sido escolhidos.
Por acórdão de 12 de Novembro de 1996, a Relação de Lisboa concedeu provimento ao recurso. Sobre a questão da inconstitucionalidade do art. 70º, nº
1, do Código de Processo Penal suscitada pela assistente A., aquela Relação, depois de transcrever os arts. 13º, nº 1, 20º, nº 2, e 37º da Constituição e os arts. 54º, nº 2, e 78º, alínea g), do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março, afirmou o seguinte:
' Quer da análise atomística dos preceitos acabados de transcrever, quer do cotejo entre eles, ressalta com clareza que a tese das assistentes é infundada e
inconsistente.
Para nós, esta inconsistência deve-se, essencialmente, a dois motivos.
Em primeiro lugar, ela é imputável a uma sobrevalorização da figura de assistente;
Em segundo lugar, ela é atribuível a uma reflexão, salvo o devido respeito superficial, dos preceitos tanto constitucionais como ordinários.
Com efeito, é preciso ter-se na devida conta que os assistentes são sujeitos processuais subordinados ao Ministério Público, têm uma posição de colaboradores, no dizer da própria lei.
De modo que os seus estatutos processuais não os coloca[m] num pedestal tão elevado quanto as ilustres respondentes parecem fazer crer.
Repare-se até que, muito provavelmente, terá sido esta posição, de mera colaboração, que terá levado o legislador a considerar a multiplicidade de assistentes indesejável e a preteri-la pela unicidade de representação. Na verdade, e em princípio, mais do que facilitar a missão do Ministério Público, a representação múltipla complica-a ou pode complicá-la.
Por outro lado, como se compreenderia que a lei adjectiva proibisse a representação una aos assistentes, meros colaboradores do Ministério Público, e já a permitisse aos arguidos como emerge do art. 65º pré-citado?
Estariamos caídos noutra inconstitu-cionalidade?
Mas a inconsistência da alegada inconstitucionalidade do art. 70º do C. P. Penal deve-se ainda, como se disse atrás, a uma análise pouco profunda dos preceitos legais que invocaram.
Senão vejamos:
É preciso ver que a lei impõe a representação unitária apenas em relação a cada uma das infracções [...].
Depois, a lei, em relação a cada um dos assistentes, não faz cessar o mandato judicial. Determina apenas que eles se concertem quanto à escolha de um só advogado que será intermediário, prima facie, entre aqueles e o Ministério Público e, só num segundo momento, entre eles e o Tribunal.
A situação de um único intermediário em nada afecta as estratégias e as tácticas dos assistentes, antes lhes confere maior versatilidade e eficácia, na medida em que a tarefa do Ministério Público, de quem é auxiliar, fica mais facilitada.
Mas se porventura afectasse, o assistente só tinha que a denunciar ao tribunal. E se o Juiz concluísse pela incompatibilidade de interesses, segundo o seu prudente arbítrio, logo faria cessar a unidade de representação [...].
Em face destes considerandos que acabam de ser expostos e nos quais, estamos certos, as assistentes também convirão, como é que se pode afirmar que o art.
70º consagra um verdadeiro atentado ao princípio da liberdade de escolha de mandatário judicial?' (a fls. 62 a 64)
Notificada desta decisão, veio a assistente A. interpor recurso da mesma para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, depois de não ter sido admitido recurso por ela interposto para o Supremo Tribunal de Justiça.
O recurso de constitucionalidade foi admitido por despacho de fls. 77.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Nas suas alegações, formulou a recorrente as seguintes conclusões:
' 1. O artigo 70º do Código de Processo Penal é ilegal porque viola, infundamentada e injustificadamente, formal e materialmente, os regimes previstos nos artigos 54º e 78º, alínea g), do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março;
2. O artigo 70º do Código de Processo Penal é inconstitucional, materialmente inconstitucional, porque, ao consagrar a regra da unicidade de representação por advogado e a imposição, por decisão judicial, da escolha deste
último:
a) afecta, restringe e coarcta princípios gerais constitucionais que, constituindo direitos fundamentais, integram o denominado sistema de protecção dos direitos, liberdades e garantias, nomeadamente o princípio do acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20º da Constituição da República, quer na sua forma lata de acesso ao direito e aos tribunais para defesa de direitos e interesses legítimos, quer na sua modalidade específica de direito ao patrocínio judiciário;
b) viola, especificamente, o direito fundamental de liberdade de expressão, consagrado no artigo 37º da Constituição da República Portuguesa, no seu afloramento específico de expressão, através de advogado, de um conjunto de ideias visando a defesa de interesses pessoais legalmente protegidos;
c) restringe direitos fundamentais constitucionalmente consagrados sem que, para tanto, esteja preenchido qualquer dos pressupostos estabelecidos no artigo 18º da Constituição;
3. O Acórdão recorrido aplicou uma nova inconstitucionalidade, tendo promovido para tanto uma errónea, injustificada e ilegal desvalorização jurídico-prática da especial força constitucional de tais direitos, tal como se encontra consagrada no mesmo artigo 18º da Lei Fundamental.' (a fls. 86-87 dos autos)
O Ministério Público, por seu turno, propugnou pela confirmação do acórdão recorrido, tendo, assim, concluído as suas contra-alegações:
'
1º
Não viola o direito de acesso aos tribunais, afirmado pelo artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, a limitação ao direito à livre escolha de mandatário judicial próprio, no caso de pluralidade de assistentes por uma mesma infracção penal, cujos interesses sejam compatíveis, em consequência de o artigo
70º do Código de Processo Penal estabelecer o princípio de unicidade do mandatário que a todos deva representar e cometer ao juiz o suprimento de falta de acordo dos interessados acerca da respectiva designação.
2º
Na verdade, tal limitação - que tem na sua raiz a tutela do interesse na celeridade e simplicidade da tramitação do processo penal, eventualmente entravada pela proliferação de representantes judiciários da acusação - revela-se como proporcional e adequada ao estatuto processual do assistente em processo penal, mero colaborador subordinado ao Ministério Público.' (a fls.
101-102)
3. Foram corridos os vistos legais.
Impõe-se, assim, conhecer do objecto do recurso, por não haver razões que a isso obstem.
II
4. A recorrente imputa os vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade à norma do nº 1 do art. 70º do Código de Processo Penal de
1987.
Dispõe este artigo, sob a epígrafe 'Representação judiciária dos assistentes':
'1. Os assistentes são sempre representados por advogado. Havendo vários assistentes, são todos representados por um só advogado. Se divergirem quanto à escolha, decide o juiz.
2. Ressalva-se do disposto na segunda parte do número anterior o caso de haver entre os vários assistentes interesses incompatíveis, bem como o de serem diferentes os crimes imputados ao arguido. Neste último caso, cada grupo de pessoas a quem a lei permitir a constituição como assistente por cada um dos crimes pode constituir um advogado, não sendo todavia lícito a cada pessoa ter mais de um representante.'
5. O art. 68º, nº 1, do Código de Processo Penal permite que se constituam assistentes, no processo penal, certas categorias de pessoas:
- os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;
- as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
- no caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens e os descendentes, ou, na falta deles, os ascendentes, os irmãos e seus descendentes, o adoptante, o adoptado e a pessoa que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, salvo se alguma dessas pessoas houver comparticipado no crime;
- no caso de o ofendido ser incapaz, o seu representante legal, o cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e os descendentes ou, na falta deles, os ascendentes, os irmãos e seus descendentes, o adoptante, o adoptado e a pessoa que com o ofendido viver em condições análogas às dos cônjuges, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;
- qualquer pessoa, nos crimes de corrupção e de peculato.
Segundo o art. 69º, nº 1, do mesmo Código, 'os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei'. Entre as atribuições dos assistentes contam-se as de 'intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias', as de
'deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente da acusação particular, ainda que aquele a não deduza' e, ainda, as de 'interpor recurso de decisão que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito. Estas faculdades conferidas pela lei ao assistente permitem que o mesmo seja definido como 'o sujeito processual que intervém no processo como colaborador do Ministério Público na promoção da aplicação da lei ao caso e legitimado em virtude da sua qualidade de ofendido ou de especiais relações com o ofendido pelo crime ou da natureza deste' (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., Lisboa, 1994, pág. 301).
6. No domínio do precedente Código de Processo Penal, de 1929, o art.
11º estatuía que podiam exercer a acção penal as pessoas particularmente ofendidas, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei penal especialmente quis proteger com a incriminação'. O art. 20º do mesmo diploma previa que a parte acusadora - que o Decreto-Lei nº 35007, de 13 de Outubro de
1945, passou a designar como assistente - se pudesse fazer representar por advogado. E o art. 21º regia sobre a representação judiciária de uma pluralidade de assistentes impondo a representação na audiência de julgamento a um único e mesmo advogado. De facto, previa esse art. 21º:
' Se mais de um indivíduo se tiver constituído parte acusadora, serão todos representados na audiência de julgamento por um advogado.
§ 1º Se forem também diferentes as infracções de que o réu é acusado, cada grupo de pessoas a quem a lei permite exercer a acção penal por cada uma dessas infracções pode constituir advogado, não sendo todavia lícito a cada pessoa ter mais de um representante.
§ 2º Na falta de acordo entre as pessoas que se tenham constituído parte acusadora na escolha do advogado que as deva representar, terá preferência aquela que mostre um interesse maior e mais sério na acusação. Se os interesses forem iguais, decidirá a sorte.
§ 3º O advogado nomeado nos termos do parágrafo anterior representá-las-á a todas.'
A opção do legislador de 1929 de conferir legitimidade para acusar aos ofendidos, permitindo-lhes que se constituíssem 'parte acusadora' 'até terminar o prazo para o Ministério Público deduzir a acusação' (corpo do art. 19º desse Código) baseava-se numa tradição nacional, sendo certo que durante a vigência das Ordenações Filipinas não havia 'dúplice acusação, pois a acusação era feita pela parte e só na falta dela pela justiça' (Luís Osório, Comentário ao Código de Processo Penal, 1º volume, Coimbra, 1932, pág. 249). Posteriormente, porém, permitiu-se que o ofendido querelasse, a par da acusação pública, situação que se manteve na legislação processual penal do século XIX e do início do século XX.
Esta orientação tradicional constrastava com a acolhida em diferentes Direitos europeus e sul-americanos, informando o mesmo comentador que 'as leis estrangeiras só excepcionalmente admitem a acusação particular ou pública conjuntamente com a acusação do MP [Ministério Público]' (ob cit, volume citado, pág. 251).
Foi uma conquista das reformas judiciárias oitocentistas a possibilidade de o assistente se fazer representar livremente por advogado, pois anteriormente tal representação carecia de autorização pelo Desembargo do Paço.
A solução consagrada no art. 21º do Código de Processo Penal de 1929, limitadora da intervenção dos representantes forenses das partes acusadoras, tinha a sua fonte na Novíssima Reforma Judiciária, diploma que limitava a um máximo de dois os advogados de todas as partes acusadoras. A preocupação do legislador era a de evitar a complexidade da instrução e do julgamento das causas, que seria inevitável se, além do agente do Ministério Público, pudessem intervir tantos advogados quantos os ofendidos pelo crime ou crimes objecto do processo.
7. A reforma do processo penal de 1945 alterou a designação da acusação
'particular', deixando de falar em 'parte acusadora'. Passou então a designar o acusador particular como assistente, querendo vincar que se tratava de uma parte acessória. Pode ler-se no preâmbulo do Decreto-Lei nº 35007 que 'o exercício da acção penal pertence ao Ministério Público como órgão do Estado. O direito de punir é um direito exclusivo do Estado e por isso os particulares podem, nos termos que a lei determina, colaborar no exercício da acção penal pelo Ministério Público, mas não exercê-la como direito próprio' (nº 3).
Depois de o art. 4º deste diploma indicar quem podia intervir como assistente em processo penal (visto que a acção penal era expressamente qualificada como 'pública' e competindo, por isso, o seu exercício ao Ministério Público - art. 1º), o art. 5º regulou a matéria da representação judiciária do assistente nos seguintes termos:
' Os assistentes deverão ser sempre representados por advogado. Havendo vários assistentes, serão todos representados por um só advogado e, se divergirem quanto à sua escolha, decidirá o juiz.'
Se bem se reparar, este preceito deixou de prever a situação da pluralidade de infracções (§ 1º do art. 21º do Código de 1929) e passou a confiar exclusivamente no prudente arbítrio do juiz para operar a escolha de mandatário, na falta de acordo entre os assistentes.
Para além da dificuldade da compatibilização das suas regulamentações, dependente da discussão sobre se o Decreto-Lei nº 35007 teria revogado o artigo
21º do Código de Processo Penal (prevalecia o entendimento de que apenas o § 1º do art. 21º se mantinha em vigor), a rigidez do referido art. 5º mereceu fortes críticas do organismo de representação profissional dos advogados. O I Congresso Nacional dos Advogados, realizado em 1972, preconizou a pura e simples abolição do princípio da unicidade da representação dos assistentes, consagrado na 2ª parte do art. 5º do Decreto-Lei nº 35007.
Debruçando-se sobre essa crítica, escreveu Figueiredo Dias:
' É claro, por um lado, que o princípio tem o seu bom fundamento: uma multiplicidade de representantes de assistentes cujos interesses sejam fundamentalmente idênticos, mais do que auxiliar pode complicar ou até entravar
(e, em qualquer caso, prejudicar) o exercício das funções do MP no processo penal. É certo, por outro lado, que o art. 5º citado só dispõe para o caso de unidade de infracção e não quis, por conseguinte, revogar o § 1º do art. 21º do CPP [...]. Uma coisa e outra, porém, não tiram ao princípio de obrigatoriedade o seu carácter de violência, quando não mesmo de puro absurdo, sempre que os vários assistentes pela mesma infracção tenham entre si interesses incompatíveis
- o que, pese embora ao âmbito restrito das pessoas admitidas a constituírem-se assistentes, bem pode suceder. É claro, pois, que nestas hipóteses o princípio da unidade deve pura e simplesmente cessar' (Direito Processual Penal, 1º volume, Coimbra, 1974, págs. 518-519).
8. A crítica transcrita veio a ser acolhida no Código de Processo Penal de 1987.
A Lei nº 43/86, de 26 de Setembro, autorizou o Governo a editar um novo Código de Processo Penal, indicando como sentido desta autorização, por um lado,
'a fixação da competência exclusiva do Ministério Público para promover o processo penal, ressalvado o regime dos crimes semipúblicos e particulares'
(art. 2º, nº 1, 7), e, por outro lado, a 'subordinação estrita da intervenção processual dos assistentes, salvo nos crimes particulares e semipúblicos, à actuação do Ministério Público, sem prejuízo do direito de recorrerem autonomamente das decisões que os afectem' (mesmo artigo e número, regra 11)).
No uso dessa autorização legislativa, o Governo manteve a regra do patrocínio obrigatório quanto aos assistentes e a regra da unicidade da representação, salvo nos casos de existência de interesses incompatíveis entre assistentes e no de pluralidade de infracções imputadas ao arguido (art. 70º do Código de Processo Penal de 1987).
Com José Damião Cunha pode afirmar-se não haver dúvida de que 'a figura do assistente corresponde a uma especificidade do processo penal português', visto não se encontrar 'uma figura análoga no direito comparado', podendo 'dizer-se ainda que significa uma peculiaridade face aos cânones tradicionais do processo penal, centrado na tríade «Tribunal - MP - arguido' (Algumas Reflexões sobre o Estatuto do Assistente e seu Representante no Direito Processual Penal Português, in Revista portuguesa de Ciências Criminais, ano 5º, 1995, nº 2, pág.
153, com supressão das notas).
9. Será sustentável afirmar que o nº 1 do art. 70º do Código de Processo Penal é ilegal e inconstitucional?
A recorrente sustenta que a norma em causa é ilegal por violar uma lei de valor reforçado, o Estatuto da Ordem dos Advogados (Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março, arts. 54º e 78º, alínea g)), sendo o Tribunal Constitucional competente para conhecer deste vício (art. 70º, nº 1, als. c) e f), da Lei do Tribunal Constitucional).
E inconstitucional por violar os arts. 18º, 20º e 37º da Constituição.
Começar-se-á por analisar o vício mais grave, o da inconstitucionalidade.
10. Importa, antes de tudo, acentuar que o nosso Código de Processo Penal distingue os estatutos jurídicos do assistente e da parte civil, sujeitos processuais que não têm necessariamente de coincidir.
De facto, uma coisa é a faculdade atribuída ao ofendido - ou a certas pessoas que com ele mantêm uma especial relação, nomeadamente de natureza familiar - de colaborar com o Ministério Público no exercício por este da acção penal (sendo certo que podem acusar autonomamente o arguido e até desacompanhados do Ministério Público, no caso de procedimento dependente de acusação particular), outra é a possibilidade de o lesado por um crime formular um pedido de indemnização de natureza cível no próprio processo penal, 'ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente' (art. 74º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Só quanto ao assistente se impõe a regra da representação por advogado e da tendencial unidade de representação, em caso de pluralidade de assistentes (art.
70º citado). No que toca às partes civis, não se impõe o patrocínio obrigatório por advogado (art. 76º, nº 2), mas sendo as partes civis plurais e representadas por advogados, não se impõe a unidade de representação (cfr. arts. 76º e 77º do Código de Processo Penal).
11. Em termos de Direito Comparado, os sistemas predominantemente acusatórios tendem a autonomizar a acção privada - que se não confunde com a acção penal pública - facto 'que dá à acção da vítima a natureza de uma acção penal privada (poursuite privée), e, de modo correlativo, a reparação do prejuízo causado à vítima releva tradicionalmente, e de modo ainda principal, do domínio civil, podendo, porém, ser determinada logo uma compensação pecuniária pelo juiz no final da instância penal, em que a vítima apenas figura enquanto simples testemunha, salvo se ela própria desencadear a acção penal' (Procédures Pénales d'Europe, ob. colectiva sob a direcção de Mireille Delmas-Marty, Paris,
1995, pág. 387). Em contrapartida, nos sistemas de inspiração originariamente inquisitória, o monopólio do exercício da acção penal adquirido pelo Ministério Público 'acarretou, por esse facto, a outorga do estatuto de parte no processo à vítima, que viu ser-lhe concedida a possibilidade, em alternativa à via civil, de fazer valer os seus interesses civis perante as jurisdições penais, através do meio de junção da acção privada à acção pública' (ibidem). Uma situação especial é constituída pelo Direito alemão, em que é reconhecida, de forma residual, a acção penal privada (Privatklage) à vítima, a qual é parificada ao Ministério Público, mas somente quanto a infracção de pouca importância e no caso de estas porem em causa interesses essencialmente privados (§ 374, I da Strafprozessordnung), sendo certo que o ofendido pode constituir-se, em alguns casos, parte acessória ou assistente (Nebenklage, § 395 do mesmo diploma).
Como atrás se referiu, salvo o caso alemão, o comum dos direitos europeus não aceita a ideia de existência do estatuto de assistente, que é, como se viu, uma originalidade do direito português, sendo certo que tal estatuto engloba dois aspectos relevantes: por um lado, o assistente é qualificado como sujeito processual, mesmo quando se trate de processos por crimes públicos; por outro lado, a lei processual penal confere-lhe poderes processuais alargados, nomeadamente o direito de recurso (sendo esses poderes diversos dos conferidos
às partes civis) relativamente a todos os tipos de crimes (cfr. José Damião da Cunha, estudo e revista citados, pág. 153, nota 1).
12. Tendo em mente a distinção entre assistentes e partes civis, cabe perguntar se a imposição da unidade de representação é constitucionalmente censurável.
Responde-se negativamente a essa questão.
Na verdade, a concepção legal de assistente acolhida pela lei traduz-se na qualificação dele como um sujeito processual que é um mero colaborador do Ministério Público, cuja actuação fica subordinada a este último. Como nota José Damião da Cunha, é na fase de inquérito e na fase eventual de instrução que mais se fará sentir, em regra, a intervenção processual do assistente na contribuição para a definição do objecto do processo. 'Da dedução da acusação em diante - e estando fixado definitivamente o objecto do processo - é que verdadeiramente a actuação do assistente é subordinada à do MP' (estatuto e revista citados, pág.
156). Tal colaboração não implica que não possam ocorrer conflitos entre o Ministério Público e o assistente (nomeadamente, quando este último requerer a abertura de instrução - arts. 277º e 287º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal), mas pressupõe uma convergência de interesses no exercício da acção penal, em que o assistente colabora com o acusador público e cujos interesses se subordinam aos deste último, em última análise. Mas ao assistente
é reconhecido um importante papel na promoção de uma aplicação correcta do direito, nomeadamente através do controlo de actuação do Ministério Público.
Ora, sendo o Ministério Público o único titular do direito de acção penal - nos crimes públicos - a posição processual do assistente tem natureza ancilar, não podendo ver-se nela uma posição de titularidade plena de um direito fundamental (afirmação diferente se terá de fazer quanto ao arguido e quanto às partes civis). E mesmo tratando-se de crimes dependentes de acusação particular, a natureza pública do processo não põe irremediavelmente em crise esta concepção da figura do assistente.
Não merece censura a afirmação feita no acórdão recorrido de que a imposição de unidade de representação dos assistentes por um mesmo advogado é um instrumento destinado a 'facilitar a missão do Ministério Público', devendo pôr-se em relevo que tal 'facilitação' corresponde ao reconhecimento da plenitude das garantias de defesa do arguido: as posições processuais deste e do próprio defensor tornar-se-iam muito mais difíceis se aquele tivesse de defender-se de ataques de um número indeterminado de sujeitos processuais (o Ministério Público e os vários assistentes, representados por diferentes advogados, os quais elaborariam, porventura, diferentes acusações).
De facto, a lei não proíbe - como se põe em relevo no acórdão recorrido - que cada assistente esteja representado por advogado distinto. A lei processual penal limita-se a impor que o conjunto dos assistentes, nos casos comuns, se concerte na escolha de um advogado que a todos represente em juízo, nomeadamente quando aqueles pretendam deduzir acusação independente do Ministério Público
(cfr. art. 69º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Penal) ou interpor recurso de decisões que os afectem (alínea c) do mesmo número e artigo). Mas prevendo a impossibilidade de concertação entre os assistentes na escolha de um patrono
único, a lei confere ao juiz o poder de resolução deste litígio através da escolha do patrono comum, sendo concebível que, em muitas situações de conflito entre assistentes quanto à escolha do patrono, se acabe por admitir uma insuperável incompatibilidade de interesses que abre a via à representação de cada um por patrono diferente (art. 70º, nº 2, do Código de Processo Penal). Por isso, José Damião da Cunha afirma que as excepções previstas no nº 2 deste artigo, 'sobretudo a que se refere à incompatibilidade de interesses, acaba por quase esvaziar a exigência de unidade de representação' (estudo e revista citados, pág. 170).
13. De tudo o que acaba de referir-se se pode concluir que não existe uma proibição de pluralidade de patronos (constituídos por cada um dos assistentes), mas apenas a imposição de uma só representação em processo, para evitar a anarquia processual, quer pela dificultação da missão do Ministério Público, quer pelo desproporcionado gravame que resultaria para o arguido o ter de defender-se contra uma multiplicidade de acusações ou de recursos, deduzidos ou interpostos por cada um dos assistentes. Não há, contrariamente ao alegado pela recorrente, restrição ao direito fundamental de acesso ao direito, mas a regulamentação ou conformação da representação judiciária em certo instituto do processo criminal, compatibilizando as posições dos diferentes sujeitos processuais, de modo a garantir a eficiência desse processo e as posições jurídicas do Ministério Público, do arguido e do seu defensor (nota nas suas alegações o Senhor Procurador-Geral Adjunto que o suprimento pelo juiz da falta de acordo dos assistentes na escolha do advogado que a todos represente é solução postulada pelo princípio geral de que o juiz deve ultrapassar a inércia dos sujeitos processuais, indicando soluções paralelas no domínio da arbitragem e da prova pericial - arts. 12º da Lei da Arbitragem Voluntária e 569º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Esta solução legal mostra-se razoável e proporcionada, não podendo ver-se na imposição da representação unitária - com a importante restrição da primeira parte do nº 1 do art. 70º do Código de Processo Penal - uma violação da liberdade de expressão dos assistentes. De facto, tal violação não pode ocorrer nunca, pois que os assistentes não são admitidos no processo para exporem opiniões ou divulgarem livremente o seu pensamento, mas antes para colaborarem com o Ministério Público na realização da justiça criminal, nomeadamente através de condenação dos arguidos que se venha a provar serem os autores dos crimes que lhes são imputados. A liberdade de expressão está assegurada quando haja um litígio acerca da escolha do representante único, superando o juiz a controvérsia através do exercício autoritário do poder de escolha. Não há, manifestamente, violação do art. 37º, nº 1, da Constituição, sendo certo que o representante escolhido, por acordo das partes ou pelo juiz, há-de exprimir, de forma processualmente adequada, as instrucções dos assistentes e assegurar a defesa dos seus interesses.
O acesso à justiça não é, assim, restringido, não se mostrando violado o art. 18º da Constituição. Ocorre antes uma regulamentação processualmente adequada da intervenção de uma pluralidade de assistentes através de um único representante.
Por último, a regulamentação em causa não viola a segunda parte do artigo
208º da Constituição, mostrando-se a regulação do patrocínio forense formulada em termos adequados, sem pôr em causa a relação entre cada assistente e o patrono que, eventualmente, tenha escolhido, visto que o princípio da unidade da representação cessa quando se verifique existir interesses incompatíveis entre os assistentes.
14. Tão-pouco se pode entender que o art. 70º, nº 1, do Código de Processo Penal é ilegal por violar lei de valor reforçado, a saber, os arts. 54º e 78º, alínea g), do Estatuto de Ordem dos Advogados.
Desde logo não se vê como o Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março, que aprovou o Estatuto da Ordem dos Advogados possa qualificar-se como lei de valor reforçado relativamente ao Código de Processo Penal.
Independentemente desta questão, a verdade é que o primeiro destes artigos, no seu nº 1, estabelece, com caracter geral, que o mandato judicial, a representação e a assistência por advogado são sempre admissíveis e não podem ser impedidos perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada, do mesmo passo que a alínea g) do art. 78º, em conjugação com o nº 2 do art. 54º, considera que constitui dever do advogado perante a comunidade a não aceitação de 'mandato ou prestação de serviços profissionais que, em qualquer circunstância, não resulte de escolha directa e livre pelo mandante ou interessado'.
Ora, como se sustenta na interpretação do nº 1 do art. 70º feita no acórdão recorrido, este preceito não impede que cada assistente seja patrocinado por um advogado, antes obriga a que a pluralidade de assistentes se concerte para que só um representante - necessariamente advogado - actue em juízo ou, em alternativa, não havendo acordo, se imponha ao juiz a escolha de um mandatário comum para intervir no processo penal, se os interesses entre os assistentes não forem incompatíveis.
Não há, assim, violação daqueles dispositivos do referido Estatuto - ainda que se aceitasse que o mesmo valesse como lei de valor reforçado, o que atrás se negou - como parece resultar de uma interpretação adequada de tais preceitos
(sobre essa interpretação, veja-se o que escreve Alfredo Gaspar, in Estatuto da Ordem dos Advogados, 1985, págs. 79 e seguintes; veja-se ainda o acórdão nº
870/96 do Tribunal Constitucional, in Diário da República, I Série-A, nº 204, de
3 de Setembro de 1996 e arestos nele citados).
15. Improcede, assim, o recurso interposto quanto a todos os fundamentos.
III
16. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso.
Lisboa, 5 de Março de 1998 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa