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Proc.Nº 149/97 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1. - Nos autos de expropriação por utilidade pública em que é expropriante BRISA - AUTO-ESTRADAS DE PORTUGAL,SA e expropriados M... e mulher ML..., ambos recorreram para o Tribunal Judicial da Comarca de Cascais da decisão arbitral sobre o valor da indemnização fixada à parcela expropriada, no montante de Esc.s: 14.095.960$00.
Por decisão de 23 de Junho de 1995, foi julgado improcedente o recurso interposto pela Brisa e parcialmente procedente o recurso interposto pelos expropriados, tendo sido fixado à parcela expropriada o valor indemnizatório de Esc.s: 96.685.200$00, valor este actualizável desde Dezembro de 1991.
2. - Inconformados com esta sentença, a Brisa e os expropriados interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 26 de Março de 1996, decidiu negar provimento a ambos os recursos, confirmando a decisão recorrida.
Ainda inconformada com o acórdão proferido, a Brisa interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (adiante, STJ), tendo o relator, no exame preliminar a que se refere o artigo 701º do Código de Processo Civil (adiante, CPC), exarado parecer no sentido do não conhecimento do objecto de tal recurso, de acordo com a jurisprudência daquele Supremo Tribunal sobre a admissibilidade de tais recursos (Acórdão do STJ de 2-12-93, in Col. Jur. STJ,
1993, III,157 e Assento de 30-05-95, ainda não transitado). Ouvidas as partes, a expropriante e recorrente Brisa pronunciou-se pelo recebimento do recurso, tendo juntado com tal articulado de resposta três pareceres, enquanto que os expropriados se pronunciaram pelo não conhecimento do recurso, no seguimento da referida jurisprudência do STJ.
3. - Apresentada pela Brisa uma reclamação para a conferência quanto ao despacho do relator de 10 de Dezembro de 1996, o STJ, por acórdão de 4 de Fevereiro de 1997, decidiu com fundamento nos citados artºs 726º e 704º do CPC não tomar conhecimento do recurso, confirmando, assim, o parecer do relator. Para alcançar esta conclusão final, o acórdão estruturou-se no seguinte encadeamento argumentativo:
'O actual Dec.-Lei nº 483/91, de 9 de Novembro, omite a determinação expressa da inexistência de recurso para o S.T.J., referindo apenas que há recurso de harmonia com as regras das alçadas (artº37º). Como interpretar este silêncio? Não se ignora que muitas doutas opiniões sustentam que tal silêncio só pode significar a admissibilidade do recurso, para o que avultaria o argumento de que a arbitragem não é um verdadeiro grau de jurisdição. Mas não pode esquecer-se que a decisão dos árbitros é uma verdadeira decisão, equiparável a qualquer outra decisão judicial, designadamente no trânsito em julgado e na exequibilidade, pelo que mesmo que não se considere a arbitragem como um grau de jurisdição, não se pode deixar de contar com tal decisão para o efeito da justificação e da oportunidade da ocorrência dos recursos. E a verdade
é que o apelo à unidade do sistema jurídico inculca a normalidade de três decisões a proferir hierarquicamente. Nesta perspectiva, o encadeado de recursos até ao Supremo, exigiria que fosse expressamente admitido por lei, o que deixou de acontecer a partir da vigência do Dec.-Lei nº 483/91. Acresce que, o nº2 do artº 64º deste Dec.-Lei, que expressamente indica a possibilidade de recurso para a Relação com o efeito meramente devolutivo, só se compreende se a lei quis limitar o recurso até este Tribunal, visto que a norma seria descabida se fosse admissível recurso para o Supremo, porque isso já decorria do artº 37º, e seria desnecessária para o objectivo de definir o efeito do recurso - o devolutivo - pois isso já decorria da natureza essencial do processo de expropriação e do regime dos recursos aplicáveis. Note-se que o recurso para o Tribunal da Relação nas expropriações tem efeito meramente devolutivo (cit. Artº 64º, nº2), regra que é específica do recurso de revista à excepção dos processos sobre o estado das pessoas, enquanto que o recurso para aquele tribunal nas outras causas é predominantemente suspensivo. Por último, mas não menos importante, cumpre ainda dizer que já foi proferido Assento neste Tribunal em 30.05.1995 (processo nº 85860), no sentido da não admissão de tais recursos para o Supremo, embora ainda não transitado em julgado, decisão que não se vê motivo para alterar. Com tudo isto, não se ofendem o artº 20º da Constituição da República, que assegura a todos o acesso ao direito e aos tribunais, o artº 62º que impõe o respeito pelo direito à propriedade privada e a faculdade de expropriação mediante o pagamento de justa indemnização, o artº 205º, nº 4 que permite a institucionalização por lei de formas de composição não jurisdicional de conflitos, o artº 211º que define as categorias de tribunais, nem qualquer outro.'
Notificada deste acórdão, a Brisa veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional para apreciação da conformidade constitucional das normas dos artigos 37º,51º,nº1 e 64º, nº2, do Código das Expropriações - adiante, CE -(aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro), na interpretação que atribui natureza jurisdicional à fase da arbitragem que decorre perante a entidade expropriante, no processo de expropriação, por violação dos artigos 20º, 62º, 205º, nº4 e 211º da Constituição da República Portuguesa - CRP - (na redacção da Lei Constitucional nº 1/89).
Tendo apresentado logo as alegações, com estas, a recorrente Brisa juntou aos autos mais dois pareceres doutrinários.
Notificadas as partes para alegarem neste Tribunal, como determina o artigo 79º da Lei do Tribunal Constitucional, foram formuladas as seguintes conclusões pela recorrente:
'1 - De acordo com o parecer do Sr. Prof. Henrique Mesquita 'o actual Código das Expropriações (aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro) reproduziu a primeira parte deste preceito (no artº 37º), mas eliminou a segunda parte - o que não pode deixar de interpretar-se no sentido de que o legislador quis admitir de novo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, voltando à solução que vigorou entre 1953 (Lei nº 2063) e 1976 (Decreto-Lei nº 71/76).
2 - Do enquadramento do recurso do âmbito das garantias processuais das partes resulta que, numa situação de dúvida, deve dar-se preferência a admissibilidade do recurso, pelo que, mesmo que se suscitem dúvidas sobre a sua admissibilidade em qualquer preceito do Código das Expropriações, deve proferir-se uma interpretação favorável à aceitação dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça.
3 - O artº 37º do Código das Expropriações faz depender os recursos admissíveis na jurisdição comum apenas da regra das alçadas, isto é, não submete esses recursos a quaisquer outras restrições além daquela que resulta da relação da alçada do Tribunal recorrido com o valor da causa e da sucumbência, pelo que não se encontra nele qualquer apoio à tese que excluiu a admissibilidade no processo de expropriação litigiosa de recurso, até ao Supremo Tribunal de Justiça.
4 - O procedimento de arbitragem não é, nem pode constituir uma forma de Tribunal Arbitral no sentido do artº 211.2 da Constituição.
5 - Há, pois, que concluir pela inconstitucionalidade da interpretação das normas dos artigos 37º, 51 - 1º e 64 - 2º do Decreto-Lei nº 438/91, feita pela decisão recorrida.'
Os recorridos também alegaram, tendo concluído o seguinte:
'1ª. Nas alegações da ora recorrente e nos doutos pareceres juntos aos autos, não se suscita qualquer questão de inconstitucionalidade relevante, limitando-se a tecer algumas considerações sobre a questão da admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, face às normas do Código de Expropriações e do Código de Processo Civil consideradas aplicáveis, pelo que este Venerando Tribunal não deverá conhecer do objecto do presente recurso (v. art. 280º/1 da CRP; cfr. arts.37º, 51º/1 e 64º/2 do CE 91; arts.684º e 690º do CPC e arts.69º e 71º da Lei 28/82, de 15 de Novembro) - cfr. sumário a), a fls.
2 dos autos e, desenvolvidamente, texto nºs 1 e 2;
2ª. A apreciação da natureza da decisão arbitral no âmbito do processo expropriativo (v. art.211º da CRP) constitui mero obiter dictum do douto aresto recorrido, sendo a sua decisão absolutamente irrelevante para determinar qualquer alteração ao acórdão sub judice, que se fundamentou essencialmente na interpretação das normas do CE 91 e do CPC julgadas aplicáveis, pelo que, também por esta razão, este Venerando Tribunal não deverá conhecer do objecto do presente recurso (v. arts. 69º e 71º da Lei 28/82 e arts. 684º e 690º do CPC) - cfr. sumário b), a fls. 2 dos autos e, desenvolvidamente, texto nºs 3 e 4;
3ª. A nossa jurisprudência tem entendido pacificamente não ser admissível, no âmbito do processo expropriativo, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pois tal representaria a consagração injustificada de um quarto grau de jurisdição (v.art. 211º da CRP; cfr. Ac.STJ nº 10/97, DR, II Série, de 97.05.15; Ac.TC nº 535/92, de 92.12.14, BMJ 422/40) - cfr. sumário a), fls. 8 dos autos e, desenvolvidamente, texto nº 5;
4ª. O processo expropriativo regulado nos arts. 37º e segs. do CE 91 assegura a garantia do duplo grau de jurisdição (v. art. 20º da CRP), na medida em que permite a impugnação da decisão arbitral perante o Tribunal de Comarca
(v. arts. 37º e 51º/1 do CE 91), com recurso para o Tribunal da Relação competente (v. arts. 37º e 64º/2 do CE 91) - cfr. sumário b), a fls. 8 dos autos e, desenvolvidamente, texto nº 6;
5ª Os arts. 37º, 5º/1 e 64º/2 do CE 91 na interpretação do douto aresto recorrido, ao não permitirem o recurso para o Tribunal a quo, não violam assim qualquer norma ou princípio constitucional aplicável, conforme se decidiu, em situação absolutamente idêntica à presente, no douto Ac. TC nº 330/91 (v. BMJ
409/45) - cfr. sumário c), a fls. 8 dos autos e, desenvolvidamente, texto nºs 6 e 7.
II - FUNDAMENTOS:
4. - São as seguintes as normas cuja constitucionalidade vem questionada.
O artigo 37º do CE, sob a epígrafe Arbitragem abre a Secção I - Disposições Introdutórias - do Capítulo II - Expropriação litigiosa, tem a seguinte redacção:
'Na falta de acordo sobre o valor global da indemnização, será este fixado por arbitragem, com recurso para os tribunais, de harmonia com a regra geral das alçadas.'
O artigo 51º integra a Subsecção I - Arbitragem - da Secção II - Da tramitação do processo - do mesmo capítulo, e, sob a epígrafe Recurso, tem o seguinte teor:
'1. - Da decisão arbitral cabe recurso para o Tribunal de comarca da situação dos bens a expropriar ou da sua maior extensão, a interpor no prazo de
14 dias, nos termos dos artigos 56º e seguintes.'
Pelo seu lado, o artigo 64º integra a Subsecção IV - Recurso da arbitragem - da mesma secção e capítulo e o seu nº2 tem a seguinte redacção:
'2. A sentença será notificada às partes, podendo dela ser interposto recurso com efeito meramente devolutivo para o Tribunal da Relação.'
A recorrente, não identificando expressamente os normativos atrás referidos no seu requerimento de interposição de recurso, todavia identificou claramente a interpretação que considerava violadora da Constituição: a que consagrava a inadmissibilidade de recurso de revista das decisões das Relações em matéria de indemnização com fundamento em que se atribui à decisão arbitral natureza jurisdicional.
5. - Esta questão não é uma questão nova neste Tribunal. Com efeito, sobre tal matéria foram já tirados pelo tribunal dois Acórdãos, ambos no mesmo sentido, isto é, no sentido da não inconstitucionalidade da interpretação questionada pela recorrente das referidas normas. Trata-se dos Acórdãos nºs 259/97 e 465/97, respectivamente de 18 de Março de 1997 e de 1 de Julho de 1997, o primeiro já publicado em Diário da República, II Série, de 30 de Junho de 1997, e o segundo ainda inédito.
Porque o Tribunal entende que não foram trazidos aos autos elementos que levem à modificação do então decidido, passa-se a remeter para a argumentação então aduzida, reproduzindo os segmentos essenciais.
6. - O problema nuclear que vem posto identifica-se com clareza: reside ele na natureza da arbitragem que intervem na fixação do montante indemnizatório. E a este respeito a jurisprudência deste Tribunal não tem vacilado no sentido de lhe reconhecer o valor de decisão jurisdicional, e não o de um simples arbitramento, susceptível de recurso nessa qualidade. Vem sendo reconhecido que, embora não possam considerar-se órgãos de soberania, os tribunais arbitrais são verdadeiros tribunais (cfr. Acórdão nº 757/95, in DR, IIS, de 27 de Março de 1996, e já, anteriormente, os Acórdãos nºs 230/86 e
33/88, publicados in DR, IIS, respectivamente de 12 de Setembro de 1986 e 22 de Fevereiro de 1988). E conforme se concluíu no Acórdão nº 757/95, cit., a actividade de arbitragem insere-se no âmbito da função jurisdicional, sendo que
é exercida rodeada das garantias de independência e imparcialidade de quem desempenha tal função. Por outro lado, não se mostra arredado no desenvolvimento do respectivo processo o princípio básico do contraditório.
Alega-se que, estando em jogo o direito fundamental de propriedade, a intervenção do Tribunal da Relação como último grau de jurisdição não se coadunaria com o artigo 62º, nº 1 da Constituição. Independentemente de outra ordem de considerações, é certo que a Constituição não impede a previsão de um quarto grau de jurisdição para a determinação da indemnização devida por expropriação (v. Acórdãos nºs 187/93 e 370/93, in, respectivamente, DR, IIS, de
17 de Maio de 1994 e de 2 de Outubro de 1993) mas a verdade é que também não estabelece um limite mínimo dos graus de jurisdição. A protecção do direito ao recurso passa pela sua não afectação substancial 'enquanto via de defesa contra actos jurisdicionais e de controlo da objectividade da realização do direito', conforme se pode ler no Acórdão nº 715/96, publicado no DR, IIS, de 18 de Março de 1997. No caso vertente, o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça valeria por um quarto grau de jurisdição, em contraste com processos de diferente natureza e porventura de maior complexidade, gerando uma situação de falta de unidade sistemática que só com fortes fundamentos que, no caso, acabam por não se vislumbrar, seria justificável (cfr. os Acórdãos nºs 330/91 e 377/97, in DR, IIS, de 15 de Novembro de 1991 e de 12 de Julho de 1996, respectivamente).
Tendo em conta o que antecede, pode concluir-se que não procedem na presente situação as razões invocadas pela recorrente para que este Tribunal julgue a norma em apreciação como inconstitucional, pelo que o presente recurso tem de improceder. III - DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 1998.02.10 Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa