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Proc. nº 403/91
2ª Secção Relator: Cons.Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional :
I RELATóRIO
1. F..., foi - em processo tranmitado ao abrigo do Código de Processo Penal de 1929 (CPP 1929) - pronunciado, no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio voluntário, na forma tentada, previsto e punido nos termos da aplicação conjugada dos artigos 131º, 22º e 23º do Código Penal (adiante CP, referindo-se
à versão deste anterior ao DL nº 48/95, de 15 de Março), e um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 260º CP, conjugado com o artigo
3º nº 1 alínea f) do DL nº 207-A/75, de 17 de Abril.
No julgamento, realizado em processo de querela pelo Colectivo Tribunal da mesma cidade, foi o arguido absolvido relativamente ao crime de detenção de arma proibida, consignando-se quanto ao mais na parte decisória do Acórdão (de fls. 132/134) julgar-se :
' (...) parcialmente procedente e provada a acusação e, consequentemente, como autor material de um crime previsto e punido no artigo 144º nº 2 do Código de Processo Penal de 1929) condena-se o réu (...) na pena de 10 (dez) meses de prisão (...)'
Este trecho decisório do Acórdão é fundado na seguinte passagem da mesma peça processual :
'Os factos provados não integram (...) o crime de homicídio tentado, imputado ao réu, porque se não demonstrou a intenção de matar. Integram, antes, um crime de ofensas corporais com dolo de perigo previsto e punido no artigo 144º nº 2 e 1 do Código Penal, pois o réu, voluntária e corporalmente, ofendeu o Miguel Fernandes, causando-lhe ferimentos que lhe determinaram dez dias de doença com impossibilidade para o trabalho, usando, para o efeito, a carrinha que conduzia, que, para o efeito, é considerada meio particularmente perigoso, sobretudo quando em movimento, não só pelas suas dimensões como pelo perigo que representa em movimento pelas regras próprias da dinâmica.'
Este enquadramento legal correspondeu, na matéria de facto, à resposta de «não provado» aos seguintes quesitos, decorrentes da querela provisória, posteriormente convertida em definitiva e transpostos para a pronúncia :
'-------------------------------------------
11º - Querendo matar o ofendido, só não o conseguindo por circunstâncias alheias
à sua vontade ?
12º - Representando, antes, a morte do ofendido como consequência necessária da sua conduta ?
13º - Ou, pelo menos, como consequência possível da mesma, conformando-se com tal resultado ?
--------------------------------------------'
Adicionalmente à factualidade emergente da pronúncia formulou o Tribunal os seguintes dois quesitos, a que respondeu «provado» :
'-------------------------------------------
14º O réu quis apenas agredir voluntária e corporalmente o Miguel Fernandes ?
15º Sabendo que o veículo usado na agressão é um instrumento muito perigoso para o efeito, sobretudo quando em movimento ?
2. Deste Acórdão interpôs a arguido recurso para o Tribunal da Relação do Porto, formulando, com interesse para o presente recurso, as seguintes conclusões :
'I - O tribunal deu como provada, no quesito 15º, matéria que não constava da acusação nem da defesa e cuja introdução tardia no thema decidendum lhe alterou radicalmente os contornos transferindo o núcleo da factualidade atendível para um domínio tipológico substancialmente diferente do constante da pronúncia.
II - Tal não é compatível com o princípio da vinculação temática que ilumina o processo penal, nem cabe na previsão da parte final do artigo 448º do Código de Processo Penal de 1929. Ainda que assim não fosse :
III - a convolação, na sua vertente não meramente qualificativa, não é compatível com o princípio acusatório, nem com os direitos de defesa e de contraditório consagrados na Constituição da República Portuguesa.
IV - A parte final daquele artigo 448º enferma de inconstitucionalidade material, por violação dos nºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que permite que o Tribunal, por sua iniciativa e à revelia da vontade dos titulares da acção penal e da defesa, carreie para o processo factos novos não vertidos na acusação nem na pronúncia, nem aduzidos pela defesa, e ainda na medida em que permite que o Arguido seja surpreendido a final por factos essenciais que nada garante que tenha considerado na sua defesa ou que estivesse preparado para deles se defender com eficácia.
V - O Tribunal a quo fez, assim, errada aplicação do disposto no artigo 448º do Código de Processo Penal de 1929 que, em todo o caso sempre seria inaplicável, por estar ferido de inconstitucionalidade material.
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Através do Acórdão de fls. 188/197, a Relação do Porto negou provimento ao recurso confirmando, no que aqui interessa, a decisão aí recorrida. Desta decisão transcreve-se a seguinte passagem :
'Na verdade, considerando-se que a parte final daquele artigo 448º não pode abranger factos novos que se traduzam numa interpretação completamente distinta da que constaria da acusação e sem qualquer relação com esta, mas tão-só os que têm por efeito modificar a acusação formulada e em favor do acusado (conforme ensinava o Prof.Beleza dos Santos, in Revista de Legislação e Jurisprudência ano
64º, pp 17 e ss.), não se vê motivo para detectar na referida norma qualquer inconstitucionalidade material, nomeadamente por suposta violação dos nºs 1º e
5º do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa;
não há ofensa das garantias de defesa nem do princípio da estrutura acusatória do processo, pois que os novos factos não alteram a essência da acusação - que era mais grave e conhecida do acusado - e deles deriva pena inferior à que lhe corresponderia pelo inicial crime.
É esta, justamente, a hipótese dos autos, em que o R. era acusado de tentar matar o Miguel Fernandes, abalroando-o voluntariamente e por duas vezes com o referido veículo automóvel que conduzia, sendo que da discussão da causa não resultou provada a intenção de matar mas apenas de ofender corporalmente e sabendo que a viatura usada na agressão era instrumento muito perigoso para o efeito;
no que concerne à provada 'intenção de ofender corporalmente', o próprio R. reconhece que ela se contém e pressupõe na
'intenção de matar', que constava da acusação, limitando-se a restringir esta; e assim é, efectivamente, não deixando de ser um facto novo a acolher pelo tribunal tendo em vista a adequada convolação com base no citado artigo 448º, pois que, sem dúvida, representava uma alteração da acusação a determinar pena inferior à prevista para a tentativa de homicídio;
pelo que se refere ao apurado 'conhecimento pelo R. da perigosidade do veículo que utilizou para agredir' (referenciado quesito 15º), não podemos
aceitar o que alega o recorrente, no sentido de que essa matéria se apresenta com uma 'natureza verdadeiramente inovadora ... por tal forma e com extensão tal que a sua introdução tardia no thema decidendum lhe alterou radicalmente os contornos'; na verdade e em rigor, o quesito em apreço nem teria que ser formulado, uma vez que a perigosidade do veículo, como instrumento de agressão,
é notoriamente conhecida por todas as pessoas e não podia deixar de sê-lo pelo próprio R., quando abalroou o Miguel duas vezes e nas descritas circunstâncias; de toda a maneira, constando da acusação que o R. pretendera matar o ofendido através de dois mencionados abalroamentos com a carrinha, e apenas provado que, com essa conduta, ele só quis ofender corporalmente, nada obstava a que se quesitasse a suposta perigosidade do meio que utilizou para agredir, tanto mais que, sendo facto notório, não fora invocado na acusação de tentativa de homicídio, por desnecessário, ou melhor, por implicitamente se reconduzir à própria intenção de matar dada a sua adequação para tal fim.
Temos, pois, que era dispensável quesitar a matéria vertida sob o nº 15º do questionário de fls. 128 e seguintes (cfr. artigo 514º, nº 1 do Código de Processo Civil), em nada saindo prejudicada a posição processual do R. com o ter-se formulado o mesmo quesito (ao que escalareceu o Mmo.Juiz Presidente do Colectivo, em fls. 176, apenas para explicitar a intenção de agredir); de resto, a questionada perigosidade do veículo como instrumento para agredir, sempre representará um menos relativamente à Badequação dele - perigosa e que teria de ser averiguada (!) - como meio para matar e de que o R. era acusado.'
3. Reagiu o arguido recorrendo, desta feita, para o Supremo Tribunal de Justiça, junto do qual formulou as seguintes conclusões :
'I. O douto acórdão impugnado ratificou a resposta dada pela primeira instância ao quesito 15º, absorvendo matéria que não constava da acusação nem da defesa e cuja introdução tardia no thema decidendum lhe alterou radicalmente os contornos transferindo o núcleo da factualidade atendível para um domínio tipológico substancialmente diferente do constante da acusação e pronúncia.
II. Tal não é compatível com o princípio da vinculação temática (ou da acusação) que ilumina o processo penal, nem cabe na previsão da parte final do artigo 488º do Código de Processo Penal de 1929, que desse modo, foi violado.
III. sendo essa violação matéria de direito sindicável pelo Supremo Tribunal.
IV. Em todo o caso e ainda que assim não fosse, a convolação, na sua vertente não meramente qualificativa, não é compatível com o princípio acusatório, nem com os direito de defesa e de contraditória consagrados na Constituição da República Portuguesa.
V. A parte final daquele artigo 448º enferma de inconstitucionalidade material, por violação dos nºs 1º e 5º do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que permite que o Tribunal, por sua iniciativa e à revelia da vontade dos titulares da acção penal e da defesa, carreie para o processo factos novos não vertidos na acusação nem na pronúncia, nem aduzidos pela defesa, e ainda na medida em que permite que o Arguido seja surpreendido a final por factos essenciais que nada garante que tenha considerado na sua defesa ou que estivesse preparado para deles se defender com eficácia.
VI. Por outro lado, ao sancionar o entendimento de que a perigosidade de um determinado meio concretamente utilizado para cometer uma ofensa corporal é um facto notório, portanto, dispensado de alegação e prova, prescindiu da avaliação concreta da perigosidade desse meio, adoptando uma interpretação segundo a qual o artigo 144º, nº 2, do Código Penal presume, juris et de jure, não só o perigo de violação do bem jurídico tutelado senão ainda a perigosidade do próprio meio utilizado.
VII. interpretação essa que ofende o princípio da culpa e está ferida de inconstitucionalidade material, nomeadamente por violação do nº 2 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.'
Contra-alegou o Ministério Público na Relação do Porto, rebatendo a argumentação do recorrente, propugnando pela confirmação do aresto recorrido.
Já no Supremo Tribunal de Justiça, o representante do Ministério Público, na vista inicial do processo, escreveu o seguinte :
'Visto. Acompanham-se as doutas contra-alegações de fls. 2140 e seguintes, no sentido de ser negado provimento ao recurso.'
Alcançou-se, assim, a primeira decisão aqui recorrida
(constante de fls.223/234), na qual, com os fundamentos a seguir transcritos, se negou provimento ao recurso :
'(...) o recorrente discorda de o acórdão recorrido ter dado como ratificada a resposta dada ao quesito 15º, absorvendo, assim, matéria que não constava da acusação nem da defesa, razão porque não poderia ter
sido levada no questionário.
Não lhe assiste, porém, qualquer razão, pela seguinte ordem de considerações :
Em primeiro lugar, pelas razões imediatamente atrás assinaladas quanto à insindicabilidade do contexto fáctico assente, já que este Alto Tribunal não pode imiscuir-se na prova produzida e reconhecida pelas Instâncias cabendo-lhe tão só a tarefa de lhe aplicar o regime jurídico adequado.
Em segundo lugar, porque a matéria factual levada ao quesito 15º - mau grado não haver sido invocada pela acusação e pelo despacho de pronúncia - pode ter sido resultante da discussão da causa, circunstância que o artigo 448º reconhece como lícita, quando refere textualmente '... ou dos que resultem da discussão da causa ...', o que afasta qualquer inconstituciona-lidade.
Em terceiro lugar, porque a matéria em causa nem necessária seria, porquanto trata-se de um facto notório, pois é do conhecimento geral que dirigir um veículo na direcção voluntária contra um ciclo-motorista, positivamente que se trata de uma conduta perigosa para a vida ou integridade física deste último.
Em quarto lugar, mesmo que assim não fosse entendido, sempre seria certo que tal actuação do Tribunal não o faria incorrer em nulidade
- visto não ser possível o seu enquadramento no artigo 98º do Código de Processo Penal ou em qualquer outra disposição - mas tão simplesmente numa irregularidade.
Ora, o recorrente, após a leitura dos quesitos, deles não apresentou qualquer reclamação nem tão pouco invocou a irregularidade em apreço.
Improcede, assim, o primeiro pilar em que se alicerçou o agravante.'
Abordando de seguida a questão do não preenchimento do tipo de crime de homicídio e integração da conduta apurada na disposição do artigo 144º nº 2 do CP, referiu o Supremo Tribunal:
' O exame do preceito penal em foco (refere-se a esse artigo 144º nº 2) leva-nos
à conclusão de que o legislador penal quis distinguir entre ofensas corporais simples - consignadas no artigo 142º, nº 1 - e ofensas corporais graves e, consequentemente, estabelecer para esta última situação uma censura criminal mais agravada, como é lógico.
Por outro lado, a sua exegese impõe que, para a sua observação, se verifiquem os seguintes elementos típicos, na parte que ora nos interessa :
1º Que o agente cometa uma ofensa contra o corpo ou contra a saúde de outrem;
2º Que o agente, no decurso dessa ofensa :
- utilize meios particularmente perigosos ou insidiosos; e
3º Elemento subjectivo: concretizado no facto de o agente querer causar uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem e que saiba que o instrumento utilizado constitui um meio particularmente perigoso ou insidioso.'
Argumentando desenvolvidamente, considerou o Supremo Tribunal como verificados todos os elementos do referido tipo, concluindo ser correcta a subsunção operada nas antecedentes decisões em função do disposto no artigo 448º do Código de Processo Penal, relativamente ao qual escreveu :
'(...) disposição que não é inconstitucional - tese, aliás (..) que nunca vimos contrariada nesse aspecto, até porque teve por efeito diminuir a pena que ao arguido estava talhada pelo despacho de pronúncia.'
4. Notificado deste Acórdão, veio o aqui recorrente arguir a respectiva nulidade decorrente, no seu ponto de vista, da circunstância de não lhe ter sido notificado o parecer do Ministério Público já transcrito neste relatório, suscitando a inconstitucionalidade material da norma - o artigo
664º do Código de Processo Penal de 1929 - ao abrigo da qual esse parecer foi lançado nos autos.
Através do Acórdão de fls. 245/249, indeferiu o Supremo Tribunal de Justiça tal arguição.
Inconformado interpôs, então, o arguido F... recurso para este Tribunal, reportado aos dois Acórdãos do Supremo Tribunal fundando-o na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 25 de Novembro (LTC), culminando as suas alegações com as seguintes conclusões :
'1. A parte final do artigo 448º do Código de Processo Penal de 1929 está ferida de inconstitucionalidade material, por violação dos nºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição , na medida em que permite que o Tribunal, por sua iniciativa e à revelia da vontade dos titulares da acção penal e da defesa, carreie para o processo factos novos não verificados na acusação nem na pronúncia, nem aduzidos pela defesa, e ainda na medida em que permite que o Arguido seja surpreendido a final por factos essenciais que nada garante que tenha considerado na sua defesa ou que estivesse preparado para deles se defender com eficácia.
2. O artigo 144º,nº 2, do Código Penal, por seu turno, na interpretação (acolhida no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça) segundo a qual o artigo 144º, nº 2, do Código Penal presume, juris et de jure, não só o perigo de violação do bem jurídico tutelado senão ainda a perigosidade do próprio meio utilizado, ofende o princípio da culpa e está ferido de inconstitucionalidade material, nomeadamente por violação do nº 2 do artigo 32º da Constituição.
3º Por último, o artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, está, ele também, ferido de inconstitucionalidade material por ofensa do princípio da igualdade de armas consagrado, nomeadamente, no artigo 32º, nº
5, da Constituição e independentemente de ofender ou não o princípio do contraditório, isto é, independentemente de o interessado se poder ou não pronunciar sobre o conteúdo do parecer emitido ao abrigo daquele preceito.'
Contra-argumentando no sentido de ser negado provimento ao recurso, condensou o Ministério Público a sua posição nas seguintes conclusões :
'1º- A norma do artigo 448º do Código de Processo Penal de 1929, tal como foi aplicada no presente caso, não viola qualquer garantia constitucional do processo criminal;
2º- A decisão recorrida não fez do artigo 144º, nº 2, do Código Penal de
1982 a interpretação que o recorrente reputa de inconstitucional;
3º- A norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929 não viola nem o princípio do contraditório nem o princípio da igualdade.'
Corridos os pertinentes vistos da Secção, cumpre, enfim, decidir. II FUNDAMENTAÇÃO
5. Do antecedente relatório resulta com clareza quais as questões de inconstitucionalidade suscitadas pelo recorrente, sob as quais este Tribunal terá de se debruçar.
Estão em causa, seguindo a ordem de suscitação e a lógica processual, os artigos 448º do CPP/1929, 144º nº 2 do Código Penal e 664º também do CPP/1929. O primeiro mostra-se operante no processo na medida em que só recorrendo a ele foi possível, indemonstrada a 'intenção de matar', convolar a imputação de homicídio para condenação por ofensas corporais com dolo de perigo. O segundo, logicamente, por que foi o tipo de crime pelo qual o recorrente foi condenado. Finalmente, no que concerne ao artigo 664º do CPP de 1929, a sua relevância assenta no processamento em função do qual o Ministério Público no tribunal ad quem teve vista dos autos, situação que suscitou a reclamação do recorrente e a prolação do segundo Acórdão do Supremo Tribunal.
Importa, pois, aferir a legitimidade constitucional destas três normas.
O artigo 448º do CPP/1929
6. É este o texto da disposição questionada:
Artigo 448º
(Convolação para infracções diversas, com base em factos não acusados)
O tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, com fundamento nos factos alegados pela defesa ou dos que resultem da discussão da causa, se, neste último caso, tiver por efeito diminuir a pena.
A norma foi aplicada num sentido claramente emergente do seu texto: considerou-se 'menos grave', comparativamente à constante da pronúncia (homicídio tentado), a infracção apurada em julgamento e utilizou-se, para a condenação por esta última, a possibilidade conferida pelo dispositivo em questão. Foi este o entendimento que sucessivamente o Tribunal da Relação e o Supremo Tribunal sufragaram.
Considera o recorrente que a plenitude de garantias de defesa própria do processo criminal e em concreto a estrutura acusatória e sujeição ao princípio do contraditório deste (v. artigo 32º nºs. 1 e 5 da Constituição) são postos em causa, pela possibilidade de introduzir no processo
'factos novos não vertidos na acusação nem na pronúncia' (cit. de fls. 263 v.), mesmo que estes apresentem a virtualidade - aqui evidente através da simples comparação das molduras abstractas em causa - de diminuir a pena.
Sem transformar o julgamento da questão de constitucionalidade - obviamente uma questão de direito - numa reapreciação de problemas claramente respeitantes à matéria de facto, não se poderá esquecer a realidade em que toda a construção do recorrente assenta. Quanto a esta, para que se tenha a exacta medida do significado dos tais 'factos novos' neste processo, sublinhar-se-á que à acusação de que se tentou matar a vítima, abalroando-a sucessivas vezes com um veículo automóvel enquanto ela se deslocava numa motorizada, atingindo-a e provocando-lhe ferimentos, sucedeu o entendimento de que se procurou, assim, não a morte desta mas, tão só, ofender a sua integridade física, através desse meio consabidamente perigoso que constitui um automóvel em movimento projectado contra alguém.
Pode-se, comparando as duas situações na sua vertente subsuntiva, afirmar que a defesa face à imputação inicial tem em vista necessariamente aquilo que está em causa na segunda situação. Não é, com efeito, descabido mesmo falar de uma relação em que, por mediação destes factos concretos (projectar voluntariamente um veículo automóvel sobre alguém, tal qual se descreve na pronúncia e na condenação), o resultado subsuntivo a que se chega já estava implicitamente contido no modelo subsuntivo da pronúncia, configurando-se entre os dois modelos uma relação de tipo consuntivo, em que o resultado jurídico-criminal alcançado (o resultado é aqui o crime pelo qual se condenou) já estava contido na descrição daquilo por que se acusou (numa leitura lógica daquilo por que se acusou).
7. Todavia, sem esquecer a importância deste tipo de considerações que, de algum modo, ao seu verdadeiro sentido) da linha argumentativa do recorrente, a indagação de constitucionalidade que o presente recurso nos impõe, torna necessário situar a discussão num plano diverso, a saber: o do funcionamento, do mecanismo previsto no artigo 448º do CPP/1929, face à garantia constitucional (decorrente do artigo 32º) de que o procedimento criminal se caracterize como um domínio particularmente qualificado de protecção dos direitos fundamentais mediante a configuração dos procedimentos.
É, aliás, neste plano que a discussão dos poderes de convolação do tribunal de julgamento se tem colocado na jurisprudência deste Tribunal, designadamente no Acórdão nº 279/95 (Diário da República, II Série de
28/7/95) ao sindicar a interpretação de diversos dispositivos do Código de Processo Penal vigente pelo chamado «Assento nº 2/93» do Supremo Tribunal de Justiça, onde se refere:
'é da essência das garantias de defesa que a operação de subsunção que conduz o juiz à determinação do tipo penal correspondente a determinados factos seja previamente conhecida e, como tal, controlável pelo arguido. Através da narração dos factos e da indicação das disposições legais aplicáveis, na acusação ou na pronúncia (...), é fornecido ao arguido um modelo determinado de subsunção constituído por aqueles factos entendidos como correspondendo a um específico crime. Tal modelo serve de referência à fase do julgamento - destinando-se esta, aliás, à sua comprovação - e é em função dele que o arguido organiza a respectiva defesa. Importa aqui sublinhar que o conhecimento pelo arguido desse modelo, tornando previsível a medida em que os seus direitos podem ser atingidos naquele processo, constitui (...) um imprescindível ponto de referência na estratégia de defesa, funcionando, assim, como importante garantia de exercício desta.'
Porém, no entendimento deste Tribunal, essa plenitude das garantias de defesa não afasta pura e simplesmente o valor da 'liberdade de qualificação' do juiz de julgamento, sendo possível uma solução de 'compatibilização' que o Acórdão citado expõe nos seguintes termos:
'Sendo mais gravosa para o arguido esta nova incriminação, não pode deixar de se lhe facultar, com a comunicação da eventualidade da sua ocorrência, uma sequência processual, situada na fase de julgamento, em que, sendo previsível essa nova incriminação, o arguido possa discuti-la e adaptar a sua defesa a essa alteração. A solução está, assim, na compatibilização da liberdade de qualificação com um mecanismo processual que torne efectivo esse direito a ser ouvido, face a uma convolação que, mantendo os factos naturalisticamente considerados, importe condenação em pena mais grave. O arguido deve ser prevenido da possibilidade da nova qualificação quando esta importar pena mais grave, facultando-se-lhe quanto a ela oportunidade de defesa.'
(sublinhados acrescentados)
Este elemento, consistente na possibilidade de uma condenação mais gravosa, tem sido invariavelmente levado por este Tribunal à formulação (e, consequentemente, ao alcance) das decisões que a propósito tem proferido. Diz-se, com efeito no Acórdão nº 279/95, ser materialmente inconstitucional a interpretação, referida a determinadas normas, segundo a qual não constitui
'alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação) mas tão só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal, dos factos
à condenação do arguido em pena mais grave não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa' [v., exactamente no mesmo sentido, o Acórdão nº 445/97 que, em fiscalização abstracta sucessiva, deu a cobertura da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, precisamente a esta interpretação (Diário da República, I série - A de 5/8/97)].
Pode-se, de alguma forma, considerar como decisão matriz deste entendimento do Tribunal Constitucional, o Acórdão nº 173/92 (Diário da República, II Série de 18/9/92) respeitante ao artigo 418º nº 2 do Código de Justiça Militar. Sublinhe-se, ainda, que, também desenvolvendo esta linha jurisprudencial, desta feita a propósito do artigo 447º do CPP/1929 (que prevê a condenação por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente) formulou o Tribunal no Acórdão nº 179/97 (Diário da República, II Série de 19/4/97) uma decisão em que a dimensão interpretativa da norma tida por não conforme à Constituição é identicamente caracterizada pela possibilidade da diversa qualificação conduzir a uma condenação 'em pena mais grave'.
Finalmente, com algum paralelismo com a situação dos autos, pode-se citar o recente Acórdão nº 330/97 (Diário da República, II Série de 3/7/97) onde
à acusação pela autoria de um crime previsto e punido pelo artigo 281º nº 1 do Código Penal (versão de 1982) sucedeu a condenação (sem prévia advertência) por dois crimes previstos e punidos pelo artigo 144º nº 2 aqui em causa, na forma tentada. O Tribunal, ponderando a diversidade das medidas abstractas pertinentes
(2 a 8 anos de prisão, no primeiro caso, e 6 meses a 3 anos no segundo) e tendo em conta os elementos típicos de ambas as incriminações, referiu:
'se a alteração não implicar modificação do critério essencial do interesse protegido, não se vê como pode ficar afectado o direito de defesa do arguido. É que, nestes casos, e seguindo aqui Germano Marques da Silva, não estamos perante uma diversidade essencial de qualificação quando da diversidade do tipo incriminador não resulta uma alteração essencial do sentido da ilicitude do comportamento do agente, como geralmente sucede sempre que as normas estão entre si numa relação de especialidade (cfr. Curso de Processo Penal, vol III, Lisboa
1994, p.272). Lógica semelhante parece ter sido seguida pelo Supremo no Acórdão de 3/4/91
(publicado na Colectânea de jurisprudência, ano XVI, t.II, 1991, pp. 15 e ss.) quando decidiu (na orientação maioritária naquele Tribunal) não haver que falar em alteração substancial ou não, dos factos, porque o arguido teve ocasião para se defender de todos eles, «uma vez que o crime verificado estava consumido pelo da acusação.'
E acrescenta, mais adiante, este Tribunal :
' se a matéria de facto, naturalisticamente considerada, for a mesma (...) ou se a violação jurídica considerada a final estiver numa relação de hierarquia
(especialidade, consumpção pura, consumpção impura) com a que for objecto da pronúncia (...) não há que proceder a essa advertência ao arguido (o limite aqui seria dado pela existência de factos novos e desde que esses factos novos não importem uma agravação dos limites máximos da pena ou a imputação de um crime substancialmente diverso (...). A mera redução da matéria de facto da acusação, por supressão de algum elemento dos aí constantes, situa-se exactamente nesta área, pelo que a alteração da incriminação daí resultante não requer, da parte do Tribunal, qualquer advertência ao arguido. O favor defensionis está satisfeito.'
Já atrás se aludiu ao estreito relacionamento, in casu,entre a imputação de homicídio tentado e o artigo 144º nº 2 do CP. Descrita que se mostrava, exaustivamente e desde a procnúncia, o meio particularmente perigoso empregue na agressão e transitando tal decisão para o texto condenatório, do que se tratou, foi tão-somente de reduzir um elemento da imputação inicial (a intenção de matar) deixando permanecer algo que, sendo valorativamente diverso (a intenção de ofender correspondente), aquele mesmo elemento inicial não deixava de abranger. Isto num quadro típico em que a pena é substancialmente diminuída pela nova incriminação.
Ora, não conduzindo a nova qualificação a uma condenação em pena mais grave e já estando implícitos na acusação os respectivos elementos integradores do tipo, a norma em causa - o artigo 448º CPP/1929 - não se apresenta como constitucionalmente ilegítima.
O artigo 144º nº 2 do CP (versão de 1982)
8. Condenado pelo crime previsto e punido pelo artigo
144º nº 2 do CP, reage o recorrente atribuindo-lhe a inconstitucionalidade consistente na violação do princípio da culpa, decorrente - e reproduz-se a argumentação vertida nas alegações - de uma interpretação 'por forma a considerar que esse preceito presume juris et de jure não só o perigo de violação do bem jurídico tutelado senão ainda a perigosidade do próprio meio utilizado'.
Sem entrar numa reapreciação da matéria de facto, mas sem perder de vista o que realmente aqui está em causa, repetir-se-á - até para que a alegada 'presunção' da perigosidade do meio utilizado, decorrente da decisão recorrida, possa ser entendida no seu exacto significado - repetir-se-á, dizíamos, que o recorrente empregou como instrumento de agressão um veículo automóvel, projectando-o em movimento contra alguém que se deslocava numa motorizada.
Posiciona-se a descrição típica constante, à data dos factos, do artigo 144º nº 2 do CP como crime de perigo abstracto.
Foi isto, tão-só o que a decisão impugnada fez. Partindo de uma norma que manda punir a ofensa contra o corpo e contra a saúde de outrem através de meios particularmente perigosos, limitou-se a valorar, na base de critérios lógicos e de experiência facilmente perceptíveis ao comum das pessoas, a genérica aptidão agressiva (i.é a perigosidade) do meio empregue.
Trata-se esta de uma visão que faz apelo à essencia dos chamados crimes de perigo abstracto e que a questão do uso de um 'meio particularmente perigoso' (uma das facetas do crime aqui em causa) não deixa de colocar.
A previsão de crimes deste tipo, como refere Jakobs, traduz decorrência da necessidade, imposta pela natureza complexa de certos domínios sociais, de promoção, através da tutela penal, do que se qualifica como um certo grau de 'normalização de condutas' ou 'estandartização de comportamentos' (Günter Jakobs, Strafrecht Allgemeiner Teil. Die Grundlagen und die Zurechnungslehre, 2ª ed., Berlin 1991, cap.6 § 86 a). A legitimidade - e em concreto a legitimidade constitucional - da construção destes tipos penais é reportável, entre outros elementos à existência de determinados domínios organizacionais sociais que, ultrapassando 'âmbitos privados (internos)', fazem ressaltar a danosidade potencial de certas condutas (ibidem).
Ora, tendo em conta que a particular perigosidade do meio se refere aqui a uma utilização desviada (porque com intuitos de agressão física) de um meio de circulação rodoviária, podemos ver nesta ( no domínio social atinente à circulação rodoviária) um desses domínios organizacionais onde
é legítima uma antecipação da tutela, através da construção de um tipo de perigo.
Não se pretende, com esta desmontagem interpretativa do caso concreto, negar a diversidade de possibilidades de construção de hipóteses de meios particularmente perigosos. Trata-se, apenas, de aferir da legitimidade, na concreta situação que se nos apresenta (e porque estamos em sede de fiscalização concreta), da construção de um tipo penal com estas características.
Este, aliás, o sentido da decisão deste Tribunal expressa no Acórdão nº 426/91 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º Vol.,
1991, pp.423; Sub Judice, nº 3, 1992, Maio/Agosto, p.155), onde, relativamente à construção de tipos penais de perigo abstracto em sede de tráfico de estupefacientes, se afirma a respectiva compatibilidade face aos princípios constitucionais da necessidade das penas, da culpa e da presunção de inocência.
Carece, assim, de fundamento a invocação de inconstitucionalidade do artigo 144º nº 2 do CP, na versão de 1982.
O artigo 664º do CPP/1929
9. Finalmente, temos a disposição da lei adjectiva aplicável que determina que os recursos, no momento da subida, 'antes de irem aos juizes que têm de os julgar, irão com vista ao Ministério Público, se a não tiver tido antes'.
De novo, para não perder de vista o caso concreto, colocando a discussão num plano meramente académico, repetir-se-á que o parecer aqui em causa se limita a afirmar:
'Visto. Acompanham-se as doutas contra-alegações de fls.214 e ss., no sentido de ser negado provimento ao recurso.'
Ter-se-á violado - posto que o parecer não foi notificado ao recorrente - o princípio da igualdade de armas ?
Trata-se de uma discussão que a jurisprudência deste tribunal, após tomadas de posição divergentes, resolveu através do Acórdão nº
150/93 (Diário da República, II Série de 29/3/93), pronunciando-se, na sequência de recurso interposto nos termos do artigo 79º-D da LTC, consagrando o entendimento de que o artigo 664º do CPP não enferma de inconstitucionalidade quando a norma for interpretada 'no sentido de que, se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar em termos de poder agravar a posição dos réus, deve ser dada a estes a possibilidade de responderem'.
Ora, na situação que nos ocupa, estamos perante um parecer quase tabeliónico que nada acrescenta às contra-alegações produzidas no tribunal a quo. Assim, em aplicação da doutrina fixada pelo aludido Acórdão nº
150/93, resta consignar a legitimidade constitucional da norma questionada, tal qual a decisão recorrida a aplicou.
III DECISÃO
10. Nestes termos, pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso, confirmando as decisões recorridas, no que às questões de inconstitucionalidade respeita. Lisboa, 12 de Janeiro de 1999 José de Sousa e Brito Messias Bento Bravo Serra Maria dos Prazeres Beleza (com dispensa de visto) Luis Nunes de Almeida