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Proc. nº 840/96
1ª Secção Rel.: Consª Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I. O Tribunal Tributário de 1ª Instância de Braga julgou procedente a oposição deduzida por J..., Lda. à execução fiscal que lhe foi movida para cobrança de taxas devidas ao Iroma. Recusou, então, a aplicação da norma do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica.
O Ministério Público interpôs recurso de constitucionali-dade dessa decisão, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Em alegações no Tribunal Constitucional, concluiu assim:
'1º - Não constitui matéria própria do sistema fiscal, nos termos do nº 2 do artigo 106º da Constituição da República Portuguesa, o estabelecimento de um regime de cobrança das 'taxas de comercialização e outras imposições parafiscais', a favor do IROMA, através do processo de execução fiscal, tramitado pelos serviços de justiça fiscal.
2º - Situa-se no âmbito da reserva de competência
legislativa da Assembleia da República o estabelecimento de um regime que contenda, em termos inovatórios, com a delimitação das competências materiais reservadas às diversas ordens jurisdicionais, no caso aos tribunais judiciais e aos tribunais administrativos e fiscais.
3º - Não implica verdadeira inovação, directamente estabelecida em sede de normas atinentes à 'competência dos tribunais', o simples preenchimento e concretização das cláusulas abertas e conceitos indeterminados, usados pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e pelo Código de Processo Tributário (em estrita consonância com o que estava já prescrito no Código de Processo das Contribuições e Impostos) na determinação da competência executiva dos tribunais tributários de 1ª instância, em termos, para efeitos de cobrança coerciva equiparar às dívidas fiscais do Estado os créditos fiscais de que é titular um instituto público, segundo critério materialmente adequado à natureza da dívida e coincidente com o âmbito da reserva material de competência dos tribunais fiscais, tal como veio a ser definido pelo nº 3 do artigo 214º da Constituição da República Portuguesa (na versão emergente da revisão constitucional de 1989).'
II. A norma do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, determina:
'A cobrança coerciva das dívidas ao Iroma provenientes da falta de pagamento de taxas e multas decorrentes da sua actividade, quando não pagas dentro do prazo fixado, far-se-á pelo processo de execução fiscal, através dos serviços de justiça fiscal.'
O Tribunal Constitucional, em vários processos, controlou já a norma transcrita que aqui constitui o objecto do recurso. No acórdão nº 501/97 (D.R., II Série, de 13.01.97), entre outros, decidiu que essa norma não é contrária à Constituição da República [redacção da Lei de Revisão Constitucional de 1989]. Primeiro, retomou a argumentação do acórdão nº 268/97, ao considerar a norma-parâmetro do artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição:
'Este Tribunal já disse, porém, que o sistema fiscal é um sistema de impostos, não incluindo as taxas ou quaisquer outros tributos[...].
A doutrina também identifica geralmente o sistema fiscal com o sistema de impostos, dele excluindo, por conseguinte, as taxas[...].
Por isso, se, ao menos para o efeito do artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição (reserva de competência legislativa da Assembleia da República, delegável no Governo, no tocante «à criação de impostos e sistema fiscal»), os tributos que estão em causa nos autos e a que se aplica a norma sub iudicio (ou seja: a taxa da peste suína africana e a taxa de comercialização), revestirem a natureza de taxas, e não a de impostos - questão que aqui não terá de decidir-se, atentas as razões que adiante se alinharão - aquele preceito constitucional não é violado.
É que, não só as taxas se não incluem no sistema fiscal, como, para elas, não vale, a qualquer outro título, a reserva de lei[...].
Mas a norma sub iudicio continua a não violar a reserva parlamentar atinente à «criação de impostos e regime fiscal», constante da mencionada alínea i) do nº 1 do artigo 168º, mesmo que tais tributos revistam a natureza de imposto - [scilicet, de «uma prestação pecuniária, coactiva e unilateral, sem o carácter de sanção, exigida pelo Estado (ou por outros entes públicos) com vista
à realização de fins públicos»] -, e não de taxa[...].
É certo que a mencionada reserva da lei, quando tenha por objecto a criação de impostos, abarca «a criação e a definição dos elementos essenciais daquelas receitas, unilateralmente impostas, que hão-de custear o financiamento em geral das despesas públicas (dir-se-á: das 'despesas gerais'), e hão-de ser repartidas pela 'generalidade' dos contribuintes de harmonia com os critérios genericamente apontados nos artigos 106º e 107º da Constituição da República Portuguesa» (cf. os citados acórdãos nºs 205/87, 461/87 e 497/89). E, por isso, apenas uma lei parlamentar (ou um decreto-lei parlamentarmente autorizado) pode
«criar impostos», determinar-lhes a incidência e a taxa, e estabelecer os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes[...]. Essa lei (formal) já não tem, porém, que versar sobre o lançamento, a liquidação e a cobrança dos impostos: tais matérias podem, com efeito, ser reguladas por decreto-lei
(reserva de lei material): [cf., entre outros, os citados acórdãos nºs 205/87 e
461/87].
Simplesmente, a norma que aqui está em apreciação não versa nenhuma das matérias compreendidas naquela reserva de lei - maxime (contrariamente ao que decidiu o juiz recorrido), não dispõe sobre as garantias dos contribuintes.'
(nº 5.2) (...)
'A consequência de tal disciplina legal, no que concerne ao tribunal competente e às garantias processuais, é ficarem os devedores do IROMA colocados na mesmíssima situação de qualquer devedor de impostos.
Por isso, se o processo de execução fiscal, que é um processo mais expedito do que o processo executivo comum, oferecer menores garantias do que este último - questão que aqui não é necessário dilucidar -, da norma em causa, resulta apenas (como sublinha o Ministério Público) uma diminuição das
«garantias do executado, tal como decorrem do direito privado e da execução em processo civil».
Isso, porém, nada tem a ver com a reserva de lei relativa às
«garantias do contribuinte». E essa é a única a que se refere a alínea i) do nº
1 do artigo 168º da Constituição.'
Depois, ao considerar a norma parâmetro do artigo 168º, nº 1, alínea d), da Constituição, disse:
'(...) deve entender-se que a norma desaplicada não viola o disposto na alínea q) do nº 1 do art. 168º da Constituição, discordando-se, assim, da solução sufragada pelo referido acórdão nº 268/97.
8. Esta conclusão será, desde logo, perfilhada por quem - na linha da solução adoptada pelo Parecer nº 6/77 da Comissão Constitucional (publicado in Pareceres da Comissão Constitucional, 1º volume, págs. 101 e seguintes) e da tese propugnada pelo Exmº. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações - entenda que não constitui verdadeira inovação legislativa 'o simples preenchimento e concretização das cláusulas abertas e conceitos indeterminados usados pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e pelo Código de Processo Tributário (em estrita consonância com o que estava já presente no Código de Processo das Contribuições e Impostos) na determinação da competência executiva dos tribunais tributários de 1ª instância' (conclusão 3ª das alegações da entidade recorrente), sendo perfeitamente lícito ao legislador governamental determinar que a cobrança coerciva de créditos de que seja titular um instituto público se integre na competência dos tribunais fiscais, equiparando tal tipo de créditos aos créditos do Estado (cfr. art. 62º, nº 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril; cfr. ainda arts. 1º, 9º e 233º, nº 2, alínea b) e c), do Código de Processo Tributário).
9. Mas idêntica conclusão será ainda partilhada por quem adopte uma interpretação mais exigente do disposto na alínea q) do nº 1 do art. 168º da Constituição, à semelhança do que se fez no citado acórdão nº 268/97.
De facto, neste aresto partiu-se do entendimento de que a medida legislativa constante da norma desaplicada '- para além de mandar observar o processo de execução fiscal para a cobrança coerciva da taxa da peste suína africana e da taxa de comercialização, devidas ao IROMA - havia transferido para os tribunais fiscais uma competência que, então, era dos tribunais judiciais':
'O Governo tem, assim, que estar munido de autorização legislativa para editar normas que alterem a distribuição de competências entre tribunais pertencentes a ordens judiciais diferentes, uma vez que só desse modo ele pode legislar sobre matérias da competência legislativa parlamentar delegável.
É que, seja qual for o alcance a atribuir à reserva legislativa, no ponto em que ela tem por objecto a definição da «competência dos tribunais», há-de incluir-se aí, sem dúvida, a definição de quais as matérias que são da competência dos tribunais judiciais e quais as que o são da dos tribunais fiscais [cf. sobre esta questão, entre outros, os acórdãos nºs 36/87, 356/89,
72/90 e 271/92 (...)].'
Simplesmente este entendimento não teve em conta a existência de legislação pré-constitucional que já havia integrado na competência dos tribunais tributários a cobrança coerciva de receitas dos antigos organismos de coordenação económica. Ora, o Decreto-Lei nº 48704, de 25 de Novembro de 1968, - depois de referir no seu preâmbulo que se mostrava 'conveniente uniformizar a forma de cobrança das dívidas aos organismos de coordenação económica e considerando que a natureza e funções destes organismos justificam que se adopte o regime estabelecido para a cobrança coerciva das dívidas ao Estado' - estabeleceu no seu artigo único:
'A cobrança coerciva das dívidas aos organismos de coordenação económica provenientes da falta de pagamento de taxas, multas e outros rendimentos legalmente autorizados, é da competência dos tribunais das contribuições e impostos, através do processo de execução fiscal, servindo de título executivo a certidão passada pelo respectivo organismo.'
Ora, a extinção dos vários organismos de coordenação económica através do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro (entre quais se encontrava a Junta Nacional dos Produtos Pecuários) não implicou a cessação da cobrança das receitas de direito público devidas a esses organismos, já que veio a ser criado um instituto público que recebeu várias das atribuições e competências desses organismos (trata-se do Instituto Regulador e Orientador dos Mercados Agrículas, IROMA, instituto que veio a ser extinto em 1994, através do Decreto-Lei nº 197/94, de 21 de Julho; vejam-se, em especial, os arts. 11º, nº 1, alíneas i) e j), 12º, nº 2, e 13º, daquele Decreto-Lei nº 15/87).
Havia, assim, lei pré-constitucional a atribuir competência à Justiça Fiscal para a cobrança coerciva das taxas de peste suína e de comercialização, circunstância que elimina o carácter inovador à norma do art.
1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, o qual manteve o regime de cobrança anteriormente utilizado para os créditos da Junta Nacional de Produtos Pecuários. Não houve, assim, alteração da distribuição de competências pré-estabelecida.'
É esta jurisprudência que aqui se reitera.
III. Nestes termos, decide-se não julgar inconstitucional a norma do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho. Assim, concede-se provimento ao recurso e determina-se a reforma da decisão recorrida em harmonia com o presente julgamento de constitucionalidade.
Lisboa, 4 de Março de 1998 Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa