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Processo nº 846/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. foi condenado no tribunal de 1ª instância (2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras), em cúmulo jurídico, na pena única de 6 anos de prisão, pela prática dos seguintes crimes:
- um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão;
- um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão;
- um crime de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1995, na pena de 18 meses de prisão.
Dessa decisão, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “exclusivamente para reexame da matéria de direito”.
O recurso não foi admitido por extemporaneidade, considerando-se que, sendo o “processo urgente face à natureza dos crimes”, o prazo de interposição do recurso corria em férias.
O arguido reclamou desta decisão, nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal (CPP), suscitando a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 28.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que estabelece que os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos.
A reclamação foi indeferida por despacho de 7 de novembro de 2011, do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
2. O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), identificando, no requerimento apresentado na sequência do convite que foi formulado ao abrigo do artigo 75.ºA da LTC, as normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 28.º, da Lei n.º 112/2009, como constituindo objeto de recurso.
Prosseguindo o recurso, o recorrente apresentou alegações em que concluiu nos seguintes termos:
«Artigo 28º, n.º 1 (Lei 112/2009, de 16 de Setembro)
1º
A Urgência processual, em Processo Penal, não é um conceito abstracto nem conexo com o tipo de crime imputado ao agente, antes constituindo um conceito concreto, conexo com medidas cautelares, preventivas e casuística que fundamentem a aplicação de medidas de coacção mais gravosas.
2º
A atribuição, em abstracto, de natureza urgente aos crimes de violência doméstica, face a outros crimes igualmente graves e que ofendem bens legalmente protegidos pelo ordenamento jurídico português, como se o crime de violência doméstica fosse mais grave do que, por exemplo, um crime de homicídio, desvirtua por completo, o que deve constituir matriz essencial do poder judicial, na sua essencial mediação concretizadora e de valoração casuística das situações do quotidiano passíveis de tutela jurisdicional.
3º
a aplicação de um regime processual de urgência ao crime de violência doméstica, ainda que não haja arguidos presos, (quando a lei Processual Penal prevê expressamente mecanismos concretos preventivos ao nível das medidas de coacção, em detrimento da simples celeridade processual, desejável e expectável relativamente a qualquer processo judicial, constitui uma restrição dos direitos, Liberdades e Garantias previstos da Constituição da República Portuguesa.
Do número 2 do artigo 28º
4º
A decisão recorrida, ao aplicar concretamente o nº 2 do artigo 28º da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, impossibilitou a análise do Recurso de medida da pena apresentado, em clara violação do princípio basilar de Direito que estabelece um duplo grau de jurisdição e o consagra expressamente como Direito Fundamental,
5º
A supra citada norma é Inconstitucional, por violadora do princípio da Igualdade, previsto no artigo 13º da Constituição, nos termos do qual «todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante e Lei»
6º
A citada norma (artigo 28º, nº 2), ao equiparar o regime processual da urgência aos arguidos presos, discrimina cidadãos condenados em função do tipo de crime que cometeram, limitando-lhes os prazos para a prática de actos processuais.
7º
Salvo o devido respeito pelas vítimas destes crimes, e não se entenda de outra forma que não puramente positivista e objectiva, não se vê porque é que um cidadão condenado em prisão efectiva por sequestro, roubo, homicídio, ofensas à integridade física, maus tratos, entre outros, possa beneficiar de um prazo de recurso mais longo, face a um condenado por violência doméstica, que não esteja preso
8º
O critério, salvo melhor opinião, não pode ser o tipo de crime, mas os pressupostos que, no caso concreto, determinem perigo para as pessoas ou para o bem jurídico que se pretenda proteger.
9º
A garantia do processo penal, maxime, a suspensão dos prazos processuais, deve aplicar-se a todos os arguidos que não estejam presos, e este é o fulcro da discussão.
10º
A norma em análise (artigo 28º nº 2) viola a Constituição da República Portuguesa (artigo 32°), concretamente o direito ao Recurso, que a qualquer condenado assiste, concretamente ao equiparar um condenado a prisão por violência doméstica a um arguido preso, diminuindo-lhe o prazo de recurso.
11º
A citada norma põe em plano desigual condenados por crimes, igualmente graves, que poderão aguardar o trânsito em julgado com benefício da suspensão, e com o prazo de recurso ampliado.
12º
A Lei 112/2009, de 16 de Setembro, sendo uma Lei essencialmente substantiva criou, em abstracto, no seu artigo 28º, n.ºs 1 e 2, uma regra de direito adjectivo aplicável apenas aos processos com réus presos, tendo igualmente criado uma indesejável dualidade de critérios relativamente a direitos fundamentais, prazos de defesa e tratamento urgente, criando um regime especial diminutivo dos prazos processuais e dos direitos, liberdades e garantias, em função do tipo de crime imputado ao agente e não de circunstâncias específicas, designadamente medidas cautelares e preventivas que, no prudente arbítrio do julgador, possam tornar o processo urgente.
13º
A aplicação do nº 2 do artigo 28º da Lei 112/2009, no caso vertente e que levou o Recorrente ao Digníssimo Tribunal Constitucional, afectou claramente as garantias de defesa do Arguido, concretamente o seu direito ao recurso (artigo 32°, nº 1), vedando o duplo grau de jurisdição de mérito, a um arguido que estava em liberdade, num processo em que era o único arguido, não havendo, portanto, mais réus presos, e cujo Acórdão foi lido em 12 de Julho, mesmo antes das férias judiciais.
14º
A protecção das vítimas deste crime, aliás, bastante reprovável mas não mais do que outros igualmente censuráveis, não se alcança pela urgência abstracta, mas por medidas preventivas concretas, passíveis de afastar o perigo, se o houver, numa perspectiva indiciária.
15º
A citada norma é Inconstitucional nas dimensões do Princípio da igualdade (artigo 13º), Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (artigo 1º CRP) e na dimensão do Direito ao Recurso e garantias de prazo compatível com as garantias de defesa.
16º
Em matéria criminal, todos os crimes são censuráveis e todos violam bens jurídicos especialmente protegidos...
Deverá a norma ser declarada Inconstitucional o (nº 2 do artigo 28º), quando interpretada no sentido de que não se suspende o prazo para Interposição de recurso se o arguido estiver em liberdade
18º
O poder punitivo do Estado não deverá, em caso algum, ultrapassar os ditames exarados no artigo 6° da Convenção Europeia para a protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, da qual Portugal é parte integrante..»
O Ministério Público contra-alegou tendo concluído:
“1.º - A progressiva consciencialização pública e política da gravidade, do designado fenómeno “violência doméstica” e a detecção de bens jurídicos específicos cuja protecção exigia tutela penal, levou o legislador, pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, a definir, como crime autónomo, o de “violência doméstica” (artigo 152.º, do Código Penal).
2.º A Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, estabeleceu o regime jurídico aplicável à prevenção de violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas.
3.º Aquela Lei estabeleceu um conjunto de medidas que têm por fim, entre outros, o de consagrar os direitos das vítimas e assegurar a sua protecção de forma célere e eficaz.
4.º Entre essas medidas está a prevista no artigo 28.º, n.ºs 1 e 2 que atribui natureza urgente aos processos por crime de violência doméstica, implicando tal atribuição, ao remeter para o artigo 103º, nº 2, do CPP, que o prazo de vinte dias (artigo 411.º, n.º 1, do CPP) para interpor recurso quanto à matéria de direito, não se suspende durante as férias judiciais.
5º. Assim, gozando o legislador ordinário de uma ampla liberdade de conformação na fixação do prazo do recurso e na sua forma de contagem e tendo a opção legislativa consagrada naquele artigo 28.º, n.ºs 1 e 2, fundamento, a norma não viola o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição).
6º. Por outro lado, a não suspensão durante as férias do prazo de vinte dias para interposição de recurso restrito à matéria de direito, mostra-se razoável e não violador das garantias de defesa, onde se inclui o direito ao recurso (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição).
7º. Termos em que, não se vislumbrando qualquer inconstitucionalidade, deve ser negado provimento ao recurso.”
II. Fundamentos
3. O artigo 28.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (regime jurídico aplicável à violência doméstica e à proteção das suas vítimas), tem a seguinte redação:
“Artigo 28.º
Celeridade processual
1 – Os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos.
2 – A natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal.”
O recorrente procede, nas alegações, a uma análise separada dos preceitos transcritos, fazendo incidir a censura de constitucionalidade, primeiramente, no n.º 1 do artigo 28.º da Lei n.º 112/2009, por atribuir natureza urgente a todos os processos por crime de violência doméstica e, seguidamente, no seu n.º 2, na medida em que faz decorrer dessa natureza a consequência de o processo correr em férias judiciais, não se suspendendo, nesse período, o prazo de interposição do recurso.
Trata-se de uma distinção que, no caso presente, é irrelevante, face à natureza instrumental do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade. Considerando aquilo que a decisão recorrida foi chamada a apreciar e decidiu – a tempestividade do recurso -, a questão da natureza urgente só releva na medida em que a lei dela faz decorrer que o prazo de interposição do recurso da decisão condenatória não se suspenda no período de férias judiciais.
Constitui, pois, objeto do presente recurso a apreciação da inconstitucionalidade das normas dos nºs 1 e 2 do artigo 28.º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, interpretadas no sentido de que os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, não se suspendendo no período de férias judiciais o prazo para interposição de recurso de decisões nele proferidas.
4. Como se põe em destaque na “exposição de motivos” de uma das iniciativas legislativas de que resultou a Lei n.º 112/2009 (cfr. Proposta de Lei n.º 248/X, Diário da Assembleia da República, II Série A, de 22 de janeiro de 2009), o fenómeno da violência doméstica tem vindo a inscrever-se nas preocupações centrais da sociedade portuguesa, com a consequente resposta no plano político-legislativo, procurando preveni-lo, reprimi-lo e proteger as vítimas, mediante medidas de natureza diversa, aliás em consonância com múltiplas iniciativas e compromissos a nível internacional de que nesse mesmo texto se dá conta. Na sequência da evolução operada nesta matéria, com a Lei n.º 112/2009, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas (artigo 1.º), o legislador procurou promover respostas integradas cujo âmbito de incidência se não resume ao campo penal ou processual penal, compreendendo o domínio laboral, de segurança social e de saúde, bem como o desenvolvimento de políticas de educação, informação e sensibilização social e medidas de proteção administrativa e policial. Entre as finalidades do diploma (artigo 3.º) destacam-se, com relevo para a questão a decidir, a de consagrar os direitos das vítimas assegurando a sua proteção célere e eficaz [alínea b)]; assegurar uma proteção policial e jurisdicional célere e eficaz às vítimas [alínea h)]; assegurar a aplicação de medidas de coação e reações penais adequadas aos autores do crime de violência doméstica [alínea i)].
No capítulo IV, Secção II, do diploma legal e sobre a epígrafe “Proteção policial e tutela judicial efetiva” surge o já transcrito artigo 28.º que atribui natureza urgente aos processos por crime de violência doméstica, mesmo que não haja arguidos presos. Dessa qualificação decorrem consequências quanto à oportunidade e aos prazos para a prática dos atos processuais, expressamente assumidas pelo legislador (n.º 2 do artigo 28.º). A tramitação dos processos referentes a este tipo de ilícito sempre segundo o regime dos processos urgentes integra-se nos objetivos visados pelo legislador, de clara inspiração vitimológica. A finalidade desta opção, desta busca de especial celeridade, não é a tutela do arguido, mas a proteção do ofendido. Neste domínio o ofendido identifica-se como um tipo de vítima especialmente fragilizada e que motiva a atribuição de um estatuto juridicamente regulado, com reconhecimento de específicos direitos e deveres (artigo 14.º a 52.º da Lei). O regime de tramitação urgente dos atos processuais, com as suas consequências em matéria de contagem dos prazos, integra formal e funcionalmente esse estatuto da vítima. O legislador tomou em conta que, de um modo geral, a vítima de violência doméstica, pelo contexto relacional, de proximidade espacial e ligação (se não dependência) económica com o agente em que se encontra e frequentemente se mantém no decurso do processo, fica especialmente exposta às consequências da sua duração, não sendo raras as situações de reiteração ou agravamento das condutas agressivas, exacerbadas pela própria pendência do litígio judicial.
Além disso, as necessidades de afirmação pública de efetividade do instrumento penal de proteção mediante a evidência da pronta reação contra violações do bem jurídico protegido por este tipo de crime são aqui particularmente intensas, pelo alarme social com que tais condutas vem sendo progressivamente encaradas. A relevância do problema da violência doméstica para a comunidade nacional é assumida pela Assembleia da República ao ponto de criar um estatuto particular de vítima e de estabelecer um “Plano Nacional Contra a Violência Doméstica” (artigo 4.º da Lei 112/2009).
5. Argumenta o recorrente que não compete ao legislador conferir natureza urgente aos processos, de modo abstrato, em função da categoria de crimes que deles são objeto. Entende que é aos tribunais que cabe, no desempenho da tarefa que lhes é cometida pelo n.º 2 do artigo 202.º da Constituição, a determinação concreta da natureza urgente de um processo em matéria criminal, em função da prova indiciária recolhida e da aplicação de uma medida de coação limitativa da liberdade do arguido. E que a atribuição abstrata de urgência aos processos respeitantes a uma categoria de crimes, em detrimento de outros que a tal urgência não obrigam, “conduz invariavelmente a uma violação das garantias do Processo Penal (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), como direito fundamental”.
Estas afirmações são manifestamente destituídas de fundamento, no plano da argumentação jurídico-constitucional, designadamente por referência aos parâmetros que o recorrente invoca.
Com efeito, a tarefa de estabelecer o regime jurídico do processo penal por via geral e abstrata é competência do legislador e só dele. Aos tribunais cabe a aplicação do direito aos casos que lhes são submetidos, designadamente, a aplicação dessas normas que estabeleçam a tramitação processual. A circunstância de deverem acatar a tramitação e a prioridade de processamento que a lei estabeleça não contende com a definição de função jurisdicional que se retira do n.º 2 do artigo 202.º da Constituição.
E, quanto à afirmação de que, pelo facto de ser o legislador a determinar o caráter urgente dos processos respeitantes a uma categoria de crimes em detrimento de outros, são violadas invariavelmente as garantias do processo penal, o Tribunal não vislumbra sequer o que, em substância, o recorrente possa querer dizer. No plano das “garantias do processo penal”, a fonte da atribuição de caráter urgente ao processo, que essa qualificação resulte ope legis de o processo versar sobre determinada matéria ou que surja ope judicis por virtude de reconhecimento particular de urgência, é indiferente. Neste plano, o que releva é que o regime a que o processo fica sujeito seja compatível com as garantias de defesa, não o modo da determinação desse regime.
6. Está subjacente à argumentação do recorrente a conceção de que o caráter urgente dos processos – com o consequente tratamento prioritário por parte das instâncias judiciárias, a prática dos atos processuais em férias judiciais e o estabelecimento de prazos mais curtos ou de regras especiais da sua contagem, de modo a tornar mais célere a marcha do processo –, é solução constitucionalmente reservada às situações em que os arguidos estejam sujeitos a medidas privativas da liberdade. Não sendo a urgência ditada pelo interesse do arguido, seria violado o princípio da igualdade.
Sem razão, como o Tribunal já reconheceu por diversas vezes.
Assim
– Nos Acórdãos n.º 186/92 e n.º 49/95, não foram julgados inconstitucionais preceitos que estabeleciam que os processos por crimes de abuso de liberdade de imprensa tinham natureza urgente, mesmo que não houvesse arguidos presos, implicando essa urgência a redução, para metade, de qualquer prazo previsto no CPP, o que levava a que, por exemplo, o prazo para interposição de recurso da decisão de 1.ª Instância para a Relação, fosse de cinco dias;
– No Acórdão n.º 384/93, não foi julgada inconstitucional a norma do artigo 104.º, n.º 2, do CPP, interpretada no sentido de que correm em férias os prazos relativos a processos em que haja arguidos detidos ou presos, mesmo quanto aos coarguidos que aí não se encontrem nessa situação.
– No Acórdão n.º 47/95, não se julgou inconstitucional a norma do artigo 103.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) do n.º 2 do artigo 104.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que correm em férias todos os prazos relativos a arguidos presos;
– No Acórdão n.º 409/10, não foi julgada inconstitucional a norma constante da alínea c) do n.º 2 do artigo 103.º conjugado com o artigo 411.º, n.º 1, do CPP, quando interpretado no sentido de que o prazo para a interposição de recurso em processo sumário não se suspende em férias judiciais, apesar de não existirem arguidos presos e não julgados logo após o flagrante delito.
Extrai-se desta jurisprudência o constante entendimento de que, não sendo constitucionalmente admissível a limitação absoluta ou excessiva do exercício do direito ao recurso em processo penal, o legislador ordinário goza de uma ampla liberdade de conformação no estabelecimento e no modo de contagem dos prazos de interposição do recurso, podendo adaptá-los face, não só à situação dos arguidos, mas também à natureza do processo ou dos crimes que dele são objeto.
7. Assim, o princípio da igualdade só poderia considerar-se violado se a opção por um regime “mais apertado” de prazos processuais se mostrasse arbitrária e desprovida de fundamento material bastante.
Com efeito, adaptando o que se disse no já referido acórdão n.º 409/10, a justificação para o curso do prazo para a interposição do recurso em férias judiciais – a necessidade de mais acentuada celeridade processual no âmbito de crimes de violência doméstica – consubstancia objetivamente fundamento material bastante para efeitos de uma diferenciação de regimes, não cabendo ao Tribunal substituir-se ao legislador na avaliação da razoabilidade dessa diferenciação sobre ela formulando um juízo positivo, como se estivesse no lugar deste e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução razoável, justa e oportuna (cf. Acórdão da Comissão Constitucional n.º 458, de 25 de novembro de 1982, in Apêndice ao Diário da República, de 23 de agosto de 1983). O controlo do Tribunal é antes de caráter negativo, cumprindo-lhe tão-somente verificar se a solução legislativa se apresenta em absoluto intolerável ou inadmissível, de uma perspetiva jurídico-constitucional, por para ela se não encontrar qualquer fundamento inteligível. Como foi salientado, entre muitos outros, nos Acórdãos n.ºs 186/90, 187/90 e 188/90 (qualquer deles disponível em www.tribunalconstitucional.pt),“o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adoção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objetiva e racional. Numa perspetiva sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot)”.
Ora, como resulta do que já anteriormente se disse, impor o regime de tramitação urgente aos processos por crime de violência doméstica, designadamente quanto aos prazos para interposição dos recursos ou à prática dos atos judiciais em férias, não se mostra solução arbitrária, antes se harmoniza com a finalidade de proteção da vítima deste tipo de ilícito, que é um objetivo constitucionalmente legítimo. Com efeito “sem pôr em causa o caráter eminentemente público e indisponível da pretensão jurídico-punitiva do Estado, a necessidade de proteção da vítima concreta e individualizada do crime é hoje por todos considerada uma dimensão irrenunciável de uma política criminal moderna e eficaz” (Cfr. Cláudia Cruz Santos, “A ‘Redescoberta’ da Vítima e o Direito Processual Penal Português” Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Volume III, pág. 1152-1153). Acresce que esse regime se aplica tanto aos arguidos como aos outros sujeitos processuais, ao Ministério Público e ao assistente, não subsistindo qualquer diferenciação intraprocessual.
Em conclusão, a diferenciação de regimes apontada à norma do artigo 28.º da Lei n.º 112/2009 não se baseia em motivos subjetivos ou arbitrários, nem é materialmente infundada. Ela não infringe, por isso, o princípio da igualdade, tal como configurado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição.
8. A invocada violação do princípio da dignidade humana (artigo 1.º da Constituição) também é manifestamente destituída de fundamento, uma vez que a especial celeridade do processo visa precisamente proteger de forma eficaz a dignidade da vítima, não se vendo em que medida pode esse princípio ser atingido pelo facto de o prazo de recurso não se suspender em férias.
9. Da perspetiva do arguido, o que poderia fazer algum sentido seria questionar se o “encurtamento” do prazo é de tal ordem que põe em risco as garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição). Mas também essa pergunta merece resposta negativa.
Note-se, em primeiro lugar, que o prazo não sofre diretamente um encurtamento relativamente ao prazo normal. Em tudo o que respeita à duração do prazo e no mais que regula o modo da sua determinação e os requisitos da interposição do recurso, mantém-se incólume o regime geral estabelecido pelo artigo 411.º do CPP, cuja adequação não vem discutida.
Tem de reconhecer-se, no entanto, que o facto de a contagem do prazo de recurso não se suspender no período de férias judiciais tem um efeito prático ou indireto de encurtamento do tempo disponível para o exercício do direito, no sentido de que o termo do prazo vem a ocorrer em momento anterior àquele em que se verificaria se a contagem beneficiasse da suspensão em férias judiciais. Porém, não pode considerar-se este efeito violador das garantias de defesa. O interessado continua a dispor do período de tempo em geral considerado adequado para optar esclarecidamente por acatar ou impugnar a sentença e interpor e motivar o respetivo recurso. Apenas é privado da possibilidade de não ter de praticar tais atos no período de férias judiciais, rectius, deixa de obter a neutralização do período de férias judiciais mediante a suspensão da contagem do prazo nesse período. Esse efeito – consequência geral inerente ao facto de o período de férias judiciais não significar a paralização total da atividade dos tribunais – poderá ter reflexos negativos na organização do trabalho do advogado ou defensor do arguido (do mesmo modo que o terá no dos demais sujeitos processuais), mas não atinge e muito menos restringe, o direito ao recurso, cujos pressupostos, âmbito, formalidades e prazo para o exercício dos poderes processuais competentes se mantém intocados.
10. Finalmente, é irrelevante o argumento de que, em caso de concurso, pode não estar em discussão a parte da decisão recorrida que respeita ao crime de violência doméstica. Não sendo isso que no caso se verifica – e, consequentemente, não integrando tal particularidade a específica dimensão normativa sujeita a fiscalização de constitucionalidade – qualquer discussão a esse propósito seria inútil.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas custas, com 25 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 28 de março de 2012.- Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.