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Processo n.º 82/10
Plenário
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional,
I. Relatório
1. Requerente e pedido
Um Grupo de Deputados à Assembleia da República veio requerer a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 7.º, 11.º a 24.º, 30.º a 40.º, 45.º a 49.º, 51.º, 76.º, 94.º, 103.º e 123.º, n.º 2, do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pela Lei Orgânica n.º 2/2009.
As normas cuja constitucionalidade é questionada dispõem da seguinte forma:
Artigo 7.º
Infração disciplinar
Constitui infração disciplinar o facto, comissivo ou omissivo, ainda que negligente, praticado em violação de qualquer dos deveres militares.
Artigo 11.º
Deveres gerais e especiais
1 — O militar deve, em todas as circunstâncias, pautar o seu procedimento pelos princípios da ética e da honra, conformando os seus atos pela obrigação de guardar e fazer guardar a Constituição e a lei, pela sujeição à condição militar e pela obrigação de assegurar a dignidade e o prestígio das Forças Armadas, aceitando, se necessário com sacrifício da própria vida, os riscos decorrentes das suas missões de serviço.
2 — São deveres especiais do militar:
a) O dever de obediência;
b) O dever de autoridade;
c) O dever de disponibilidade;
d) O dever de tutela;
e) O dever de lealdade;
f) O dever de zelo;
g) O dever de camaradagem;
h) O dever de responsabilidade;
i) O dever de isenção política;
j) O dever de sigilo;
l) O dever de honestidade;
m) O dever de correção;
n) O dever de aprumo.
Artigo 12.º
Dever de obediência
1 — O dever de obediência consiste em cumprir, completa e prontamente, as ordens e instruções dimanadas de superior hierárquico, dadas em matéria de serviço, desde que o seu cumprimento não implique a prática de um crime.
2 — Em cumprimento do dever de obediência incumbe ao militar, designadamente:
a) Cumprir completa e prontamente as ordens e instruções dos seus superiores hierárquicos em matéria de serviço;
b) Entregar as armas quando o superior lhe dê ordem de prisão;
c) Cumprir, como lhe for determinada, a punição imposta por superior;
d) Cumprir as ordens que pelas vigias, sentinelas, rondas, guardas e outros postos de serviço militar lhe forem transmitidas em virtude de instruções recebidas;
e) Não fazer uso de qualquer arma sem ordem ou sem a isso ser obrigado pela necessidade imperiosa de repelir uma agressão ou fora do disposto nas regras de empenhamento;
f) Declarar com verdade o seu nome, posto, número, subunidade, unidade, estabelecimento ou navio em que servir, quando tais declarações lhe sejam exigidas por superior ou solicitadas por autoridade competente;
g) Aceitar alojamento, alimentação, equipamento ou armamento que lhe tenha sido distribuído nos termos regulamentares, bem como vencimentos, suplementos, subsídios ou abonos que lhe sejam atribuídos;
h) Não aceitar quaisquer homenagens a que não tenha direito ou que não sejam autorizadas superiormente.
Artigo 13.º
Dever de autoridade
1 — O dever de autoridade consiste em promover a disciplina, a coesão, a segurança, o valor e a eficácia das Forças Armadas, mantendo uma conduta esclarecida e respeitadora da dignidade humana e das regras de direito.
2 — Em cumprimento do dever de autoridade incumbe ao militar, designadamente:
a) Ser prudente e justo mas firme, na exigência do cumprimento das ordens, regulamentos e outras determinações, ainda que para tanto haja que empregar quaisquer meios extraordinários indispensáveis para compelir os inferiores hierárquicos à obediência devida, mas, neste último caso, participando imediatamente o facto ao superior de quem dependa;
b) Ser sensato e enérgico na atuação contra qualquer desobediência, falta de respeito ou outras faltas de execução usando para esses fins todos os meios que as normas de direito lhe facultem;
c) Recompensar os seus subordinados, quando o merecerem, por atos praticados ou propor a recompensa adequada se a julgar superior à sua competência;
d) Punir os seus subordinados pelas infrações que cometerem, ou deles participar superiormente, de acordo com as regras de competências;
e) Não abusar da autoridade inerente à sua graduação, posto ou função;
f) Presenciando crime punível com pena de prisão, procurar deter o seu autor, quando não estiver presente qualquer autoridade judiciária ou entidade policial, nem puderem estas ser chamadas em tempo útil.
Artigo 14.º
Dever de disponibilidade
1 — O dever de disponibilidade consiste na permanente prontidão para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais.
2 — Em cumprimento do dever de disponibilidade incumbe ao militar, designadamente:
a) Apresentar-se com pontualidade no lugar a que for chamado ou onde deva comparecer em virtude das obrigações de serviço;
b) Não se ausentar, sem autorização, do lugar onde deve permanecer por motivo de serviço ou por determinação superior;
c) Comunicar a sua residência habitual ou ocasional;
d) Comunicar superiormente o local onde possa ser encontrado ou contactado no caso de ausência por licença ou doença;
e) Conservar-se pronto e apto, física e intelectualmente, para o serviço, nomeadamente abstendo-se do consumo excessivo de álcool, bem como do consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, salvo por prescrição médica;
f) Comunicar com os seus superiores quando detido por qualquer autoridade, devendo esta facultar-lhe os meios necessários para o efeito.
Artigo 15.º
Dever de tutela
O dever de tutela consiste em zelar pelos interesses dos subordinados e dar conhecimento, através da via hierárquica, dos problemas de que o militar tenha conhecimento e àqueles digam respeito.
Artigo 16.º
Dever de lealdade
1 — O dever de lealdade consiste em guardar e fazer guardar a Constituição e demais leis e no desempenho de funções em subordinação aos objetivos de serviço na perspetiva da prossecução das missões das Forças Armadas.
2 — Em cumprimento do dever de lealdade incumbe ao militar, designadamente:
a) Não manifestar de viva voz, por escrito ou por qualquer outro meio, ideias contrárias à Constituição ou ofensivas dos órgãos de soberania e respetivos titulares, das instituições militares e dos militares em geral ou, por qualquer modo, prejudiciais à boa execução do serviço ou à disciplina das Forças Armadas;
b) Respeitar e agir com franqueza e sinceridade para com os militares de posto superior, subordinados ou de hierarquia igual ou inferior, tanto no serviço como fora dele;
c) Informar com verdade o superior hierárquico acerca de qualquer assunto de serviço;
d) Não tomar parte em manifestações coletivas atentatórias da disciplina, entendendo-se como tais as que ponham em risco a coesão e disciplina das Forças Armadas, nem promover ou autorizar iguais manifestações;
e) Não se servir, sem para isso estar autorizado, dos meios de comunicação social ou de outros meios de difusão para tratar assunto de serviço ou para responder a apreciações feitas a serviço de que esteja incumbido, caso em que deve participar o sucedido às autoridades competentes;
f) Informar previamente o superior hierárquico quando apresente queixa contra este.
Artigo 17.º
Dever de zelo
1 — O dever de zelo consiste na dedicação integral e permanente ao serviço, no conhecimento das leis, regulamentos e instruções aplicáveis e no aperfeiçoamento dos conhecimentos, através de um processo de formação contínua, por forma a melhorar o desempenho das Forças Armadas no cumprimento das missões que lhes forem cometidas.
2 — Em cumprimento do dever de zelo incumbe ao militar, designadamente:
a) Não consentir que alguém se apodere ilegitimamente das armas ou munições que lhe estejam distribuídas ou à sua responsabilidade;
b) Não utilizar nem permitir que se utilizem instalações, armamento, viaturas e demais material para fins estranhos ao serviço, desde que para tal não exista a necessária autorização, nem por qualquer outra forma inutilizar ou subtrair ao seu destino os bens patrimoniais a seu cargo;
c) Comunicar imediatamente com os seus superiores quando detido por qualquer autoridade, devendo esta facultar-lhe os meios necessários para o efeito;
d) Observar, no cumprimento das suas funções, as regras financeiras e orçamentais instituídas;
e) Contribuir para que os subordinados adquiram os conhecimentos úteis ao serviço;
f) Velar pela conservação dos bens patrimoniais que lhe estejam confiados;
g) Participar, sem delongas, à autoridade competente a existência de algum crime ou infração disciplinar que descubra ou de que tenha conhecimento.
Artigo 18.º
Dever de camaradagem
1 — O dever de camaradagem consiste na adoção de um comportamento que privilegie a coesão, a solidariedade e a coordenação de esforços individuais, de modo a consolidar o espírito de corpo e a valorizar a eficiência das Forças Armadas.
2 — Em cumprimento do dever de camaradagem incumbe ao militar, designadamente, manter toda a correção e boa convivência nas relações com os camaradas, evitando rixas, contendas ou discussões prejudiciais à harmonia que deve existir nas Forças Armadas.
Artigo 19.º
Dever de responsabilidade
1 — O dever de responsabilidade consiste em assumir uma conduta e uma postura éticas que respeitem integralmente o conteúdo dos deveres militares, com aceitação da autoria, da responsabilidade dos atos e dos riscos físicos e morais decorrentes das missões de serviço.
2 — Em cumprimento do dever de responsabilidade incumbe ao militar, designadamente:
a) Assumir a responsabilidade dos atos que praticar por sua iniciativa e dos praticados em conformidade com as suas ordens;
b) Não interferir no serviço de qualquer autoridade.
Artigo 20.º
Dever de isenção política
O dever de isenção dos militares consiste no seu rigoroso apartidarismo, não podendo usar a sua arma, o seu posto ou a sua função para qualquer intervenção política, partidária ou sindical.
Artigo 21.º
Dever de sigilo
O dever de sigilo consiste em guardar segredo relativamente a factos e matérias de que o militar tenha ou tenha tido conhecimento, em virtude do exercício das suas funções, e que não devam ser revelados, nomeadamente os referentes ao dispositivo, à capacidade militar, ao equipamento e à atividade operacional das Forças Armadas, bem como, os elementos constantes de centros de dados e demais registos sobre o pessoal que não devam ser do conhecimento público.
Artigo 22.º
Dever de honestidade
1 — O dever de honestidade consiste em atuar com independência em relação aos interesses em presença e em não retirar vantagens, diretas ou indiretas, das funções exercidas.
2 — Em cumprimento do dever de honestidade incumbe ao militar, designadamente:
a) Respeitar integralmente as incompatibilidades legais a que esteja sujeito;
b) Não se apoderar de bens que não lhe pertençam, nem utilizar bens do Estado em seu proveito;
c) Não se valer da sua autoridade, posto ou função, nem invocar o nome de superior para obter qualquer lucro ou vantagem.
Artigo 23.º
Dever de correção
1 — O dever de correção consiste no tratamento respeitoso entre militares, bem como entre estes e as pessoas em geral.
2 — Em cumprimento do dever de correção incumbe ao militar, designadamente:
a) Não praticar, no serviço ou fora dele, ações contrárias à moral pública, ao brio, ao decoro militar e às práticas sociais;
b) Ser moderado na linguagem, respeitar por todas as formas as ordens de serviço e não se referir a outros militares por qualquer forma que denote falta de respeito;
c) Tratar com particular urbanidade as pessoas em casa de quem estiver aboletado, não lhes fazendo exigências contrárias às normas de direito, ao decoro militar e às práticas sociais;
d) Fora da unidade, mesmo em gozo de licença no País ou no estrangeiro, não perturbar a ordem nem transgredir qualquer norma de direito em vigor no lugar em que se encontrar, não ofendendo os habitantes nem os seus legítimos direitos, crenças, costumes e interesses;
e) Não infringir os regulamentos e ordens das autoridades policiais e da Administração Pública;
f) Respeitar as autoridades civis, tratando por modo conveniente os respetivos agentes;
g) Não advertir qualquer militar na presença de militar de graduação inferior;
h) Qualquer que seja a sua graduação, não elogiar ou advertir os seus subordinados ou inferiores hierárquicos na presença de superior, sem previamente pedir a este autorização.
Artigo 24.º
Dever de aprumo
1 — O dever de aprumo consiste na correta apresentação pessoal, em serviço ou fora dele, nomeadamente quando se faça uso de uniforme.
2 — Em cumprimento do dever de aprumo incumbe ao militar, designadamente:
a) Apresentar-se devidamente uniformizado, quando faça uso do uniforme;
b) Cuidar da limpeza e conservação dos artigos de fardamento, armamento, viaturas, equipamento e quaisquer outros que lhe forem distribuídos ou estejam a seu cargo, bem como cuidar com zelo de qualquer animal que lhe tenha sido entregue para serviço ou tratamento.
Artigo 30.º
Penas aplicáveis
1 — As penas aplicáveis pela prática de infração disciplinar são, por ordem crescente de gravidade, as seguintes:
a) Repreensão;
b) Repreensão agravada;
c) Proibição de saída;
d) Suspensão de serviço;
e) Prisão disciplinar.
2 — Aos militares dos quadros permanentes nas situações do ativo ou de reserva, além das penas previstas no número anterior, poderão ser aplicadas as seguintes:
a) Reforma compulsiva;
b) Separação de serviço.
3 — Aos militares em regime de voluntariado ou de contrato, além das penas previstas no n.º 1, poderá ainda ser aplicada a de cessação compulsiva desses regimes
4 — Aos militares na situação de reforma só é aplicável a pena de repreensão.
5 — Aos alunos a que se refere o n.º 2 do artigo 6.º que à data do seu ingresso nos estabelecimentos de ensino não sejam militares são aplicáveis, por violação dos deveres militares, as penas de repreensão, repreensão agravada ou proibição de saída.
Artigo 31.º
Repreensão
A pena de repreensão consiste na declaração feita ao infrator, em particular, de que sofre reparo por ter praticado uma infração disciplinar.
Artigo 32.º
Repreensão agravada
A pena de repreensão agravada consiste na declaração feita ao infrator de que sofre reparo por ter praticado uma infração disciplinar, sendo efetuada nos seguintes termos:
a) A repreensão agravada a oficiais e sargentos é dada na presença de outros oficiais ou sargentos, respetivamente de posto superior ou igual, mas, neste caso, mais antigos, da unidade, estabelecimento ou órgão a que o infrator pertencer ou em que estiver apresentado;
b) A repreensão agravada a cabos é dada na presença de praças do mesmo posto, de antiguidade superior à sua, e às outras praças é dada em formatura da companhia, ou equivalente da unidade, estabelecimento ou órgão a que pertencerem ou em que estiverem apresentadas.
Artigo 33.º
Proibição de saída
1 — A pena de proibição de saída consiste na permanência continuada do militar punido no aquartelamento ou navio a que pertencer durante o seu cumprimento, com duração não superior a 20 dias, sem dispensa das formaturas e do serviço que, por escala, lhe competir.
2 — No caso de o militar punido desempenhar funções em órgão ou serviço inadequado à sua permanência continuada durante o tempo de cumprimento da pena, é-lhe fixado o local de execução desta.
3 — Em marcha, a pena é cumprida permanecendo o militar no estabelecimento em que a força se demorar.
4 — Na Marinha, o cumprimento desta pena é interrompido durante o tempo de navegação.
Artigo 34.º
Suspensão de serviço
A pena de suspensão de serviço traduz-se no afastamento completo do serviço pelo período que for fixado, entre cinco e 90 dias.
Artigo 35.º
Prisão disciplinar
A pena de prisão disciplinar consiste na retenção do infrator por um período de um a 30 dias, em instalação militar, designadamente no quartel ou a bordo do navio.
Artigo 36.º
Reforma compulsiva
1 — A pena de reforma compulsiva consiste na passagem à situação de reforma, por motivo disciplinar.
2 — A pena de reforma compulsiva é aplicável ao militar nas situações do ativo ou da reserva cujo comportamento, pela sua gravidade, se revele incompatível com a permanência naquelas situações.
3 — Quando o infrator não reúna o condicionalismo estatutário para a reforma é abatido aos quadros das Forças Armadas, contando-se-lhe para efeito de reforma, nos termos gerais, todo o tempo de serviço prestado.
Artigo 37.º
Separação de serviço
1 — A separação de serviço consiste no afastamento definitivo das Forças Armadas, com perda da condição de militar, abate aos quadros permanentes e privação do uso de uniforme, distintivos, insígnias e medalhas militares, sem prejuízo do direito à pensão de reforma.
2 — A pena de separação de serviço é aplicável ao militar cujo comportamento, pela sua excecional gravidade, se revele incompatível com a permanência nos quadros das Forças Armadas.
Artigo 38.º
Cessação compulsiva dos regimes de voluntariado ou de contrato
1 — A pena de cessação compulsiva do regime de voluntariado ou de contrato consiste no termo do vínculo funcional que liga o militar que preste serviço num desses regimes.
2 — A pena referida no número anterior é aplicável por violação grave de deveres militares que revele incompatibilidade com a sua permanência nas Forças Armadas.
Artigo 39.º
Escolha e medida das penas
Na escolha da pena a aplicar e na medida desta atender-se-á, segundo juízos de proporcionalidade:
a) Ao grau da ilicitude do facto;
b) Ao grau de culpa do infrator;
c) À responsabilidade decorrente da categoria e posto, e à antiguidade neste, do infrator;
d) À personalidade do infrator;
e) À relevância disciplinar da conduta anterior e posterior do infrator;
f) À natureza do serviço desempenhado pelo infrator;
g) Aos resultados perturbadores na disciplina;
h) Às demais circunstâncias em que a infração tiver sido cometida, que militem contra ou a favor do infrator.
Artigo 40.º
Circunstâncias agravantes
1 — São circunstâncias agravantes da responsabilidade disciplinar:
a) A prática da infração em tempo de guerra, em estado de sítio ou de emergência, em operações militares ou em situação de crise;
b) A prática da infração em território estrangeiro;
c) A lesão do prestígio das Forças Armadas;
d) A prática da infração em ato de serviço, em razão de serviço ou na presença de outros militares, especialmente quando estes forem inferiores hierárquicos do infrator;
e) O concurso com outros indivíduos para a prática da infração;
f) A prática da infração durante o cumprimento de pena disciplinar;
g) O maior posto ou antiguidade do infrator;
h) A reincidência;
i) A acumulação de infrações;
j) A premeditação.
2 — A reincidência verifica-se quando a infração é cometida antes de decorridos seis meses sobre o dia em que tiver findado o cumprimento da pena imposta por infração anterior.
3 — A acumulação de infrações verifica-se quando duas ou mais infrações são cometidas na mesma ocasião ou quando uma é cometida antes de ter sido punida a anterior.
4 — A premeditação consiste no desígnio formado vinte e quatro horas antes, pelo menos, da prática da infração.
Artigo 45.º
Produção dos efeitos das penas
1 — As penas disciplinares produzem unicamente os efeitos declarados no presente Regulamento, sem prejuízo das consequências no âmbito da avaliação de mérito, nos termos da lei.
2 — Quando não haja possibilidade de fazer cumprir efetivamente as penas disciplinares, todos os seus efeitos se produzem, como se tivessem sido cumpridas.
Artigo 46.º
Efeitos da pena de proibição de saída
A pena de proibição de saída pode implicar, quando imposta a oficial ou sargento, a transferência da unidade, estabelecimento ou órgão a que pertencer, após o cumprimento da pena, a pedido do punido ou sob proposta do comandante, diretor ou chefe, quando, face à natureza ou gravidade da falta, a sua presença no meio em que cometeu a infração for considerada incompatível com o decoro, a disciplina, a boa ordem do serviço ou o prestígio das Forças Armadas.
Artigo 47.º
Efeitos da pena de suspensão de serviço
A pena de suspensão de serviço implica para todos os militares:
a) A possibilidade de transferência, nos termos do artigo anterior;
b) A perda de igual tempo de serviço efetivo;
c) A perda, durante o período da sua execução, de suplementos, subsídios e de dois terços do vencimento auferido à data da mesma;
d) A impossibilidade de ser promovido durante o período de execução da pena.
Artigo 48.º
Efeitos da pena de prisão disciplinar
A pena de prisão disciplinar implica, para todos os militares:
a) A possibilidade de transferência da força, unidade, estabelecimento, órgão ou serviço a que o militar pertencer, nos termos do disposto no artigo 46.º;
b) A perda de igual tempo de serviço efetivo;
c) A perda, durante o período da sua execução, de suplementos e subsídios e de dois terços do vencimento auferido à data da mesma;
d) A impossibilidade de ser promovido durante o período de execução da pena.
Artigo 49.º
Efeitos da pena de cessação compulsiva dos regimes de voluntariado ou de contrato
Sem prejuízo do disposto em legislação especial, a pena de cessação compulsiva dos regimes de voluntariado ou de contrato implica a impossibilidade do infrator ser opositor a concursos para ingresso nos quadros permanentes das Forças Armadas.
Artigo 51.º
Momento do cumprimento da pena
1 — Sem prejuízo do disposto no número seguinte, as penas disciplinares militares são cumpridas logo que expirado o prazo para a interposição do recurso hierárquico sem que este tenha sido apresentado ou, tendo-o sido, logo que lhe seja negado provimento.
2 — As penas de repreensão e de repreensão agravada são cumpridas imediatamente a seguir à decisão que as aplicou.
Artigo 76.º
Natureza secreta do processo
1 — O processo disciplinar é de natureza secreta até à notificação da acusação.
2 — Após a acusação, é facultada ao arguido e seu defensor a consulta do processo ou a passagem de certidões, mediante requerimento escrito, dirigido ao instrutor, ficando aqueles vinculados ao dever de segredo.
3 — A passagem de certidões de peças de processo disciplinar só é permitida quando destinada à defesa de interesses legítimos, devendo o requerimento especificar o fim a que se destina e podendo ser proibida a sua divulgação.
4 — O indeferimento do requerimento referido no número anterior deve ser fundamentado e comunicado ao interessado no prazo de sete dias.
Artigo 94.º
Diligências
1 — O instrutor autua a participação, queixa, denúncia, auto ou ofício que contenha o despacho liminar de instauração e procederá às diligências convenientes para a instrução, designadamente ouvindo o participante, o queixoso, o denunciante e as testemunhas conhecidas, procedendo a exames e mais diligências que possam esclarecer a verdade e fazendo juntar aos autos o certificado do registo disciplinar do arguido.
2 — O instrutor deve ouvir o arguido, a requerimento deste ou sempre que o entender conveniente, até se ultimar a instrução, podendo acareá-lo com testemunhas.
3 — O arguido não é obrigado a responder sobre os factos que lhe são imputados.
4 — Durante a fase de instrução pode o arguido requerer ao instrutor a realização de diligência probatórias para que este tenha competência e que forem consideradas por aquele como essenciais ao apuramento da verdade, podendo ainda oferecer prova ao processo.
5 — O instrutor deve indeferir em despacho fundamentado a realização das diligências referidas no número anterior quando as julgue desnecessárias, inúteis, impertinentes ou dilatórias.
6 — O instrutor pode solicitar a realização de diligências de prova a outros serviços e organismos da administração central, regional ou local, quando o julgue conveniente, designadamente por razões de proximidade e de celeridade, sempre que as não possa realizar no âmbito das Forças Armadas.
Artigo 103.º
Diligências de prova
1 — O instrutor deve realizar as diligências requeridas pelo arguido no prazo de 15 dias, prorrogável por despacho fundamentado da entidade que mandou instaurar o processo.
2 — O instrutor pode recusar, em despacho fundamentado, as diligências requeridas, quando as repute meramente dilatórias, impertinentes ou desnecessárias, ou considere suficientemente provados os factos alegados pelo arguido na sua defesa.
3 — As testemunhas que não residem no local onde corre o processo, se o arguido não se comprometer a apresentá-las, são ouvidas pelo instrutor ou por qualquer entidade militar, podendo esta designar um oficial para a respetiva inquirição.
4 — Finda a produção da prova oferecida pelo arguido, o instrutor pode ainda ordenar, em despacho fundamentado, as diligências consideradas indispensáveis para o completo esclarecimento da verdade.
Artigo 123.º
Subida e efeitos
1 — O recurso hierárquico interposto de decisão que não ponha termo ao processo sobe com a decisão final, e apenas se dela se recorrer.
2 — A interposição de recurso hierárquico suspende a decisão recorrida, exceto no caso previsto no n.º 2 do artigo 51.º
2. Fundamentos do pedido
Os requerentes fundamentaram o pedido nos seguintes termos:
? O Regulamento de Disciplina Militar, adiante designado por RDM, que foi aprovado na Assembleia da República, em votação final global a 29 de maio de 2009, padece de diversas inconstitucionalidades violando direitos, liberdades e garantias e princípios fundamentais da ordem jurídico-constitucional portuguesa. São nomeadamente postos em causa o princípio da presunção de inocência, o princípio da legalidade, o princípio da tipicidade, o direito de defesa do arguido e o princípio da igualdade.
? O Regulamento de Disciplina Militar define, no seu artigo 7.°, “infração disciplinar” como “o facto, comissivo ou omissivo, ainda que negligente, praticado em violação de qualquer dos deveres militares'. O artigo 11.º do RDM enuncia os “deveres gerais e especiais” dos militares, contendo o seu n.º 2 um elenco concreto dos mesmos, em diversas alíneas. São estes os deveres de obediência, autoridade, disponibilidade, tutela, lealdade, zelo, camaradagem, responsabilidade, isenção política, sigilo, honestidade, correção e aprumo. Por sua vez, os artigos 12.º a 24.º procuram concretizar o conteúdo de cada um desses deveres. No entanto, estes deveres militares surgem indicados de modo excessivamente vago e indeterminado.
Ora, segundo o princípio da tipicidade, garantia fundamental na ordem jurídica portuguesa, “Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior” (artigo 29.º, n.º 3, da CRP).
Todavia, o conteúdo dos deveres militares não surge “expressamente” definido, tal como o exige o artigo 29.º, n.º 3, da CRP. Os deveres a que os militares estão sujeitos aparecem definidos através de conceitos abertos, suscetíveis de múltiplas e contrárias interpretações. Na prática, isto significa que um mesmo facto pode ser considerado infração ou não consoante o aplicador, desaparecendo todo o caráter de certeza e previsibilidade que a norma sancionatória deve ter.
Esta enunciação põe, ainda, em causa o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP, na medida em que a factos materialmente idênticos podem corresponder diferentes penas, consoante o livre arbítrio de quem conclui o processo e determina a pena aplicável.
? Os artigos 30.º a 38.º do RDM enunciam as “penas aplicáveis pela prática de infração disciplinar”. Refere o artigo 30.º que, “pela prática de infração disciplinar” (ou seja, pela violação dos deveres acima referidos), são aplicáveis as penas de repreensão, repreensão agravada, proibição de saída, suspensão de serviço e prisão disciplinar (n.º1). Este artigo refere ainda que estas penas são aplicáveis “por ordem crescente de gravidade”.
Quer isto dizer, e é esta a lógica subjacente ao Regulamento de Disciplina Militar, que não há uma correspondência exata entre infração e pena, entre um facto que consubstancie uma violação concreta de um dever e a sua sanção. Ou seja, a qualquer infração pode corresponder a aplicação de uma qualquer pena, sem que exista uma clara previsibilidade na lei das penas concretamente aplicáveis a cada um dos tipos específicos de infrações.
Há aqui uma flagrante violação do artigo 29.º, n.os 1 e 3 da CRP, que dispõem, respetivamente, que “Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior” e “Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior”.
Esta situação é tanto mais grave quanto entre as penas aplicáveis se encontra uma pena privativa da liberdade, a prisão disciplinar, à qual acrescem outras de outro cunho, mas que são suscetíveis de ter efeitos ainda mais nefastos na vida pessoal e profissional dos arguidos: a separação de serviço e a reforma compulsiva.
? O procedimento disciplinar, em especial o procedimento disciplinar militar, tem uma natureza bastante gravosa do ponto de vista das penas aplicáveis, assumindo uma natureza em tudo semelhante à do processo criminal.
Se atentarmos no artigo 30.º do RDM, este prevê penas como a suspensão de serviço ou até uma pena privativa da liberdade, que é a prisão disciplinar. No entanto, e embora envolva a privação de liberdade, esta não é porventura a pena mais grave prevista no RDM. As penas de reforma compulsiva e de separação de serviço (artigo 30.º, n. 2) são penas a cuja gravidade devem corresponder, em especial, todas as garantias previstas para os arguidos em processo penal.
Neste sentido se pronuncia, aliás, Paulo Mota Pinto, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 33/02, onde se fiscalizava a constitucionalidade de uma disposição do anterior RDM. Refere este Conselheiro que “o artigo 27.°, n.º 2, alínea d), da Constituição (...) permite a privação da liberdade em consequência da aplicação de prisão disciplinar a militares — mas não é possível extrair dela nada a respeito dos princípios e das garantias processuais que tal aplicação tem constitucionalmente de respeitar, e, muito menos, qualquer argumento de distinção genérica do processo criminal, cujas garantias estão previstas no artigo 32.º (e não no artigo 27.º) da Constituição”.
E no mesmo acórdão diz Maria Fernanda Palma: “entendo que a previsão, no artigo 27-°, n.º 3, alínea d), da Constituição, da prisão disciplinar militar não corresponde, a qualquer título, a uma legitimação de um processo militar disciplinar sem o essencial das garantias do processo penal” e que “Não posso, no entanto, aceitar a ilação de que tal ilícito e a respetiva sanção permitem um aligeiramento nas garantias de defesa que são atribuídas ao respetivo processo. Essas, quanto a mim, hão de ser, no essencial, idênticas às garantias essenciais do processo penal, nomeadamente no que se refere, pelo menos numa medida mínima”.
Na mesma linha, cite-se ainda, por exemplo, o Acórdão, n.º 90/88, publicado no Diário da República n.º 111, de 13 de maio: “Este Tribunal já teve ocasião de afirmar que, por vezes, se há de entender que certos princípios expressamente consagrados para o processo criminal são igualmente válidos, «na sua ideia essencial, nos restantes domínios sancionatórios, e agora, em particular, no domínio disciplinar» (cf. o Acórdão n.º 103/87, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 6 de maio de 1987).
Nestes termos, deve concluir-se que, muito embora a disciplina militar possa ter uma natureza específica, sempre lhe devem ser aplicadas as garantias previstas para o processo criminal, dada a natureza eminentemente sancionatória de ambos.
? O artigo 51.º do RDM, sob a epígrafe “Momento do cumprimento da pena”, dispõe no seu n.º 2 que “As penas de repreensão e de repreensão agravada são cumpridas imediatamente a seguir à decisão que as aplicou”.
Ou seja, aquelas penas são de aplicação imediata, sem qualquer possibilidade de recurso que possa sindicar, com efeito prático, a legalidade dos seus pressupostos e os critérios que determinaram a medida concreta da pena. Esta situação é tanto mais grave dado que a aplicação imediata deste tipo de penas leva a uma consumação imediata do efeito das mesmas. Ou seja, as penas de repreensão ou de repreensão agravada, dada a sua própria natureza, produzem todos os seus efeitos no momento da aplicação, não podendo ser reconstituída posteriormente a situação original.
Consequentemente, é também inconstitucional a norma do artigo 123.º, n.º 2, do RDM que impede o efeito suspensivo do recurso hierárquico que tenha sido interposto contra a aplicação das penas de repreensão e repreensão agravada previstas no artigo 51.º, n.º 1.
Estas disposições violam, em nosso entender, o princípio da presunção de inocência, tal como previsto no n.º 2 do artigo 32.º da CRP, bem como as garantias de defesa do arguido genericamente garantidas no n.º 1 do mesmo preceito constitucional.
? Mas também o disposto no n.º 1 do artigo 51.º do RDM enferma dos mesmos vícios de ofensa ao princípio constitucional da presunção da inocência e das garantias de defesa do arguido, afrontando ademais, diretamente, o comando constitucional que decorre da alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP. Senão vejamos:
Dispõe o n.º 1 do artigo 51.º do RDM que “as penas disciplinares militares' logo também as penas de prisão disciplinar e de proibição de saída ? “são cumpridas logo que expirado o prazo para a interposição do recurso hierárquico sem que este tenha sido apresentado ou, tendo-o sido, logo que lhe seja negado provimento”.
A presente formulação legal significa porventura um avanço significativo relativamente ao RDM anterior onde se não previa sequer o diferimento do cumprimento da pena disciplinar em razão do uso pelo arguido das normais garantias administrativas, mormente o recurso hierárquico. Agora, na norma em questão, assegura-se a garantia do recurso hierárquico, mas continua a não ficar assegurada a via da impugnação jurisdicional de ato sancionatório quando dele implique a aplicação, e posterior cumprimento, de uma pena privativa da liberdade.
Para além disso, a especial autorização constitucional, estabelecida na alínea g) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP, para que um ente administrativo aplique uma pena de detenção ou de prisão a um militar, em sede disciplinar, impõe uma garantia inequívoca de sindicabilidade judicial. Ora, o cumprimento da pena disciplinar de detenção ou de prisão logo que tenha sido negado provimento a um recurso hierárquico, sem que se preveja a suspensão da aplicação da pena no caso de ter sido interposto recurso judicial, viola aquela garantia constitucional e retira sentido útil ao processo jurisdicional.
Não se atinge de resto como pode a interposição de recurso hierárquico suspender a decisão recorrida, nos termos do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 123.º, mas já não o recurso à justiça administrativa. De facto, a pena de proibição de saída ou de prisão será sempre cumprida 'logo que [lhe] tenha sido negado provimento” ao recurso hierárquico (n.º 1 do artigo 51.º do RDM) pelo superior hierárquico do órgão com competência disciplinar. Tal solução normativa limita injustificadamente o acesso aos tribunais e constitui uma violação do disposto na alínea g) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP, bem como do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no n.º 1 do artigo 20.º.
? O artigo 76.º do RDM vem regular certos aspetos relativos ao procedimento disciplinar, dispondo no seu n.º 2, que “Após a acusação, é facultada ao arguido e seu defensor a consulta do processo ou a passagem de certidões, mediante requerimento escrito, dirigido ao instrutor, ficando aqueles vinculados ao dever de segredo”. O n.º 3, por sua vez, determina que “A passagem de certidões de peças de processo disciplinar só é permitida quando destinada à defesa de interesses legítimos, devendo o requerimento especificar o fim a que se destina e podendo ser proibida a sua divulgação.”
Analisando estes preceitos, verificamos que o n.º 2 restringe já o acesso ao processo, ao dispor que apenas ao arguido e seu defensor é facultada a passagem de certidões. Assim sendo, não se compreende a limitação que o n.º 3 vem introduzir, quando refere que tais certidões só podem ser passadas no âmbito da “defesa de interesses legítimos”. O facto é que se deve entender que o arguido, sendo visado por procedimento disciplinar, terá sempre e em todo o caso um interesse legítimo no mesmo, que é o de poder defender-se. Não deve, pois, permitir-se que se coloque um possível entrave ao direito de defesa dos militares, ficando este à mercê de uma apreciação hierárquica do que constitui ou não a “defesa de interesses legítimos”.
O Tribunal Constitucional veio já considerar, até, inconstitucional a recusa de passagem de certidões no âmbito de um procedimento de avaliação do foro militar, por violar o direito de acesso aos documentos administrativos, previsto no artigo 26.º, n.os 1 e 2 da CRP. Refere o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 80/95, que “privando os interessados (exceção feita do próprio militar avaliado) da possibilidade de obterem certidões que se mostrem necessárias à instrução dos recursos que, acaso, pretendam interpor, acaba por atingir o núcleo essencial do mencionado direito à informação”. Desta forma, e se isto é verdade para o acesso a qualquer documento administrativo, mais a sua aplicação deve ser observada no âmbito de um procedimento sancionatório como o procedimento disciplinar ora em apreço.
Acresce que nos termos do n.º 3 do artigo 269.º da CRP, o direito de defesa do arguido é expressamente garantido em processo disciplinar.
O RDM está, assim, a permitir uma possível violação ao direito de defesa do arguido, constitucionalmente previsto no n.º 1 do artigo 32.º e no n.º 3 do artigo 269.º da CRP, bem como do direito de acesso aos documentos, assegurado pelo artigo 268.º.
? As considerações acima mencionadas são também válidas para os artigos 94.º, n.º 5 e 103.º, n.º 2, do RDM. Sob a epígrafe “Diligências de prova”, o n.º 2 do artigo 103.º dispõe que “O instrutor pode recusar, em despacho fundamentado, as diligências requeridas, quando as repute meramente dilatórias, impertinentes ou desnecessárias, ou considere suficientemente provados os factos alegados pelo arguido na sua defesa”. Disposição semelhante está contida no n.º 2 do artigo 94.º.
Sendo o procedimento disciplinar de natureza sancionatória, sempre se conclui que o arguido tem o direito à sua defesa, podendo para isso empregar os meios que considere suficientes. Desta forma, é de duvidosa constitucionalidade que possa caber ao instrutor avaliar quais os meios de prova que o arguido deve ou não indicar. Só o arguido está em condições de aquilatar acerca dos meios e elementos de prova da sua inocência.
Não se pode, de modo nenhum, admitir que o instrutor possa recusar meios de prova por os reputar “impertinentes ou desnecessários”, ou por entender que estão “suficientemente provados os factos alegados pelo arguido na sua defesa”.
Se tal se admitir, isso significa considerar que, uma vez instaurado o procedimento disciplinar, já nada mais restaria ao arguido provar, estando toda a convicção sobre a culpabilidade do agente já formada pelo instrutor. Ora é precisamente para contrariar este facto, ou seja, para conferir ao arguido a possibilidade real de provar uma outra versão dos factos, se assim o entender, que o direito à defesa lhe é constitucionalmente conferido.
Ao permitir que este direito fique sujeito a apreciação discricionária, esta disposição viola o direito à defesa e o princípio da presunção de inocência, tal como previstos no artigo 31.º, n.os 1 e 2, da CRP, sendo ainda suscetível de violar o direito à defesa, tal como previsto nos artigos 32.º, n.º 1 e 269.º, n.º 3, da CRP.
3. Resposta do órgão autor da norma
Notificado para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos e entregou cópia da documentação relativa aos trabalhos preparatórios da Lei n.º 2/2009, de 22 de julho.
4. Memorando
Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em harmonia com o que então se estabeleceu.
II. Fundamentação
5. A questão da tipicidade das infrações e das penas
O Requerente entende que o Regulamento de Disciplina Militar (RDM) viola o princípio da tipicidade consignado no artigo 29.º da Constituição, em sede de direitos, liberdades e garantias.
De facto, afirma o Requerente que o RDM define, nos artigos 7.º, 11.º e 12.º a 24.º, os deveres cujo incumprimento constitui infração disciplinar de um 'modo excessivamente vago e indeterminado', utilizando 'conceitos abertos, suscetíveis de múltiplas e contrárias interpretações'.
Além disso, diz ainda, o mesmo Regulamento não estabelece qualquer conexão entre as infrações cometidas e as penas a aplicar, limitando-se a fazer uma enumeração dessas penas por ordem crescente de gravidade, podendo à partida, nos termos da lei, qualquer das infrações por mais leve que seja corresponder a qualquer das penas por mais grave que seja, sendo certo que algumas das penas ? como a prisão disciplinar, a reforma compulsiva ou a separação de serviço ? afetam direitos fundamentais dos militares de uma forma particularmente gravosa.
Comecemos pelo primeiro ponto: a utilização de conceitos vagos e indeterminados na definição dos deveres cuja infração pode conduzir a uma sanção disciplinar.
O artigo 7.º (que define a infração disciplinar como 'o facto, comissivo ou omissivo, ainda que negligente, praticado em violação de qualquer dos deveres militares') e o artigo 11.º (que enumera esses deveres militares) não definem, por si mesmos, nenhuma infração específica. No artigo 7.º afirma-se a relevância geral da omissão e da negligência, como é regra nos direitos sancionatórios de cariz não penal e, muito em especial, no direito disciplinar. E o artigo 11.º é a norma ordenadora dos conteúdos normativos que se encontram nos artigos seguintes ? enumera os deveres militares e não tem por função delimitá-los para efeitos de definição de infrações.
Na sequência dos artigos 7.º e 11.º, os artigos 12.º a 24.º definem os deveres militares e é a violação a esses deveres que constitui infração disciplinar. Nestes, a lei utiliza a técnica legislativa dos 'exemplos-padrão', que consiste na cumulação dum conceito aberto com uma série de exemplos que o concretizam e, dessa forma, delimitam. Essa técnica não é usual no Direito Penal, embora seja aí admitida (veja-se Figueiredo DIAS, Anotação ao Artigo 132.º, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra 1999, p. 28). Ela é, contudo, a técnica mais habitual no direito disciplinar, onde são diversos do direito criminal o balanceamento e os critérios de prevalência entre as exigências de segurança e formalização e as exigências de justiça concreta e adequação material.
Como diz Taipa de CARVALHO (Direito Penal, 2ª ed. 2008, p. 147), 'Diferentemente do direito penal, e até do direito de ordenação social, o direito disciplinar utiliza, na definição das infrações disciplinares, a técnica da cláusula geral com enumeração exemplificativa, exceto no caso da menos grave das infrações disciplinares em que há apenas a cláusula geral'. Esta é, portanto, a técnica característica do direito disciplinar.
Vendo os artigos do RDM que definem os diversos deveres dos militares cujo incumprimento é suscetível de constituir infração disciplinar, verificamos que eles são relativamente minuciosos na exemplificação dos conceitos que posteriormente permitirá a sua delimitação analógica, segundo a racionalidade própria dos 'exemplos-padrão' em que o conceito geral e os exemplos se devem interpretar em recíproca correlação.
Poderia, porventura, censurar-se a técnica de definição das infrações através do incumprimento de 'deveres' em vez da indicação de 'factos'. Mas é a primeira que é comum a todo o direito disciplinar. E isto porque ela permite maior amplitude na apreciação dos factos (que podem revelar-se mais ou menos complexos) em vista das exigências de adequação material da sanção disciplinar.
Não se pode afirmar que as exigências de tipicidade valham no domínio disciplinar com o mesmo rigor que no direito criminal. Aliás nem sequer existe no artigo 29.º da Constituição, que se refere às garantias substantivas do direito criminal, um preceito semelhante àquele que existe no artigo 32.º a respeito das garantias processuais, alargando-as, com as necessárias adaptações, a todos os outros processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10). Ainda assim, deve entender-se que, pelo menos no que respeita às infrações mais graves, devem evitar-se conceitos demasiado vagos na definição de tais infrações. Mas a verdade é que os artigos 12.º a 24.º do RDM não são sob este ponto de vista censuráveis. Eles são até relativamente precisos, tipificando, de forma copiosa, exemplos de infração a cada um dos deveres enumerados. No domínio disciplinar mais não se pode exigir.
Acresce, todavia, o facto de não haver no RDM uma conexão entre as infrações legalmente definidas e as penas disciplinares aplicáveis.
Na verdade, em matéria de punição criminal exige-se não só a tipicidade das infrações e das penas, como exige também uma conexão clara entre ambas (Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., Coimbra 2007, p. 495). Uma pessoa só pode sofrer uma pena 'cujos pressupostos estejam fixados em lei anterior' (artigo 29.º n.º 1, da Constituição). Ora o RDM não estabelece qualquer conexão direta entre as diversas infrações e cada uma das penas disciplinares.
Este facto torna-se mais notório pelo contraste com o novo Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9 de setembro, o qual fixa uma ligação clara entre as infrações e as penas, ou, pelo menos, entre as penas mais graves e os respetivos pressupostos. Delimita, pois, os pressupostos específicos de cada um dos tipos de penas mais graves (artigos 16.º a 19.º).
É necessário sublinhar que aquilo que está aqui fundamentalmente em causa é a questão da existência ou não de um princípio de tipicidade em relação ao direito disciplinar que inclua a conexão direta entre as infrações e as penas.
Ora um tal princípio resulta, no que respeita ao direito criminal, do artigo 29.º, n.º 1 e do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, que exigem a ligação da 'sentença criminal' e das 'penas' a determinados 'pressupostos' que lhes estejam referidos. Mas não existe apoio constitucional semelhante no que respeita ao direito disciplinar: desde logo, o teor da alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, ao contrário da mencionada alínea c), não aponta para a mesma exigência de conexão no que respeita a sanções disciplinares e seus pressupostos. E, como vimos, não há no artigo 29.º da Constituição, que se refere às garantias substantivas do direito criminal, um preceito semelhante ao artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, que alarga, com as necessárias adaptações, as garantias em processo penal, a todos os outros processos sancionatórios.
Não é, pois, possível fazer uma simples transposição do princípio da tipicidade criminal, em todo o seu rigor garantístico, para o domínio meramente disciplinar e, em especial, para o domínio do direito público disciplinar.
Como diz Paulo Veiga MOURA (Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública Anotado, Coimbra 2009, p. 33), 'A infração disciplinar assume-se, porém, como uma infração atípica, sendo esta justamente uma das características que a distinguem do ilícito criminal. (…) Significa isto que a infração disciplinar decorre mais da violação de um dever e menos da adoção de uma conduta descrita na lei (descrição essa que pode nem sequer ser efetuada), pelo que a lei enumera os deveres que impendem em geral ou particular sobre o trabalhador público e considera ilícito o comportamento que atente contra tais deveres, mesmo que a conduta adotada não esteja descrita na previsão de qualquer preceito'.
Ainda que se entenda que as exigências substantivas previstas no artigo 29.º da Constituição deverão tendencialmente valer no direito disciplinar, nunca poderão valer com a mesma intensidade.
Claro que o legislador é livre de aproximar o direito disciplinar das exigências de tipificação rigorosa do direito criminal. Mas não é obrigado a fazê-lo. O grau de formalização legal constitucionalmente exigido ao direito disciplinar é sempre menor do que aquele que é requerido ao direito criminal.
Como afirma Germano Marques da SILVA (Direito Penal Português, I, Lisboa 1997, p. 130): 'Vimos oportunamente que uma característica que singulariza o direito penal relativamente a outros ramos do direito, e que cumpre a função garantístico-individual do direito penal, é o seu alto grau de formalização. Esta formalização que preside ao exercício do jus puniendi, mostrando-se como o exercício controlado por garantias estabelecidas a favor do delinquente, e que tem expressão em princípios como o[…] da legalidade […], não é tão exigente no direito disciplinar, embora a tendência seja para acrescer as garantias dos seus destinatários'.
O princípio da legalidade não vale no plano disciplinar com a mesma rigidez com que vale no direito penal. Note-se, aliás, que a passagem do acórdão n.º 90/88 e as duas declarações de voto do acórdão n.º 33/02 (da autoria dos Conselheiros Paulo Mota Pinto e Fernanda Palma), que o Requerente invoca, dizem respeito a questões 'processuais' e mesmo aí apenas preconizam a equiparação tendencial que se afere pelas expressões 'pelo menos numa medida mínima' e 'na sua ideia essencial'.
É verdade que deve haver uma equiparação tendencial sob diversos aspetos, ou a respeito de diversos princípios. Neste sentido, dizem Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., p. 498): 'É problemático saber em que medida é que os princípios consagrados neste artigo são extensíveis a outros domínios sancionatórios. A epígrafe 'aplicação da lei criminal' e o teor textual do preceito restringem a sua aplicação direta apenas ao direito criminal propriamente dito (crimes e respetivas sanções). Há de, porém, entender-se que esses princípios devem, na parte pertinente, valer por analogia para os demais domínios sancionatórios, designadamente, o ilícito de mera ordenação social e o ilícito disciplinar'.
Contudo, logo de seguida, ao esclarecerem os princípios que são concretamente aplicáveis nos domínios sancionatórios fora do âmbito penal, Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA excluem o princípio da tipicidade (é, aliás, o único princípio que excluem). Dizem literalmente: 'Será o caso do princípio da legalidade lato sensu (mas não o da tipicidade), da retroatividade, da aplicação retroativa da lei mais favorável, da necessidade e proporcionalidade das sanções' (ob. cit., p. 498).
De todo o modo, o RDM assegura, ainda que de uma forma flexível, uma certa conexão entre as infrações e as penas. Essa conexão não é feita norma a norma, mas ela resulta do texto do RDM no seu todo e vincula a decisão do aplicador, em termos ainda admissíveis no âmbito disciplinar.
Não podemos, portanto, concluir que as normas impugnadas do diploma em apreço violem um princípio de tipicidade legal a que o direito disciplinar estivesse submetido. Na verdade, não ocorre qualquer violação do artigo 29.º, n.º 1 e 3 da Constituição.
Deve, ainda, atender-se a que, mesmo sem uma tal conexão estrita, o aplicador está longe de ter um poder arbitrário na escolha da pena.
Veja-se, por exemplo, que, no que respeita às sanções que implicam a cessação definitiva da prestação de serviço militar, a lei reduz o seu âmbito de aplicação através das ideias conjugadas de gravidade da infração em vista da criação de uma situação de incompatibilidade com a permanência do militar no ativo, na reserva ou, em casos de excecional gravidade, nas próprias forças Armadas. Na verdade, a pena de reforma compulsiva só 'é aplicável ao militar nas situações do ativo ou da reserva cujo comportamento, pela sua gravidade, se prevê incompatível com a permanência naquelas situações” (artigo 36.º, n.º 2) e a pena de separação de serviço é aplicável ao militar nas situações do ativo ou da reserva “cujo comportamento, pela sua excecional gravidade, se revele incompatível com a permanência nos quadros das Forças Armadas' (artigo 37.º, n.º 2).
Note-se, igualmente, que o artigo 39.º do RDM dá um importante contributo neste âmbito, ao fornecer uma série de critérios para a escolha da pena aplicável, segundo juízos de proporcionalidade. A par destes critérios, o legislador atendeu, também, ao especial circunstancialismo que rodeia, no caso da disciplina militar, a escolha e a medida da pena (Capítulo IV, relativo à escolha e medida das penas, em que o mencionado artigo 39.º também se insere).
A tudo isto acresce que a decisão de aplicação da sanção disciplinar é suscetível de posterior controlo por parte dos tribunais.
6. Momento do cumprimento das penas disciplinares
O RDM, no artigo 51.º, relativo ao momento do cumprimento da pena, define duas regras de execução imediata das penas disciplinares. O requerente considera que é inconstitucional o artigo 51.º, n.º 1, na medida em que estabelece que 'as penas disciplinares são cumpridas logo que expirado o prazo para a interposição de recurso hierárquico sem que este tenha sido apresentado ou, tendo-o sido, logo que lhe seja negado provimento'. E, também, o número 2 desse mesmo artigo, que determina que 'as penas de repreensão e de repreensão agravada são cumpridas imediatamente a seguir à decisão que as aplicou', sem que o recurso hierárquico tenha, nestes casos, o efeito suspensivo que possui nas hipóteses de aplicação de outras penas (artigo 123.º, n.º 2, RDM).
O legislador distinguiu duas categorias diferenciadas de penas. Por um lado, a repreensão verbal simples, que é feita em privado (artigo 31.º), e a repreensão verbal agravada, que é feita na presença de outros militares de posto superior ou equivalente (artigo 32.º). Por outro lado, distinguiu todas as outras penas disciplinares: aquelas que ocorrem na pendência da prestação de serviço militar ? proibição de saída, suspensão de serviço e prisão disciplinar (artigos 33.º a 35.º) ? e aquelas outras que fazem cessar essa prestação ? reforma compulsiva, separação de serviço e cessação compulsiva do regime de voluntariado ou de contrato (artigos 36.º a 38.º).
As penas de repreensão, que consistem 'na declaração feita ao infrator de que sofre reparo por ter praticado uma infração disciplinar', possuem um regime especial. Tanto a pena de repreensão, como a de repreensão agravada, são cumpridas imediatamente a seguir à decisão que as aplicou (artigo 51.º, n.º 2), sem que o recurso hierárquico tenha efeito suspensivo (artigo 123.º, n.º 2, do RDM).
O requerente sustenta que tal solução põe em causa o princípio da presunção de inocência, tal como previsto no n.º 2 do artigo 32.º da CRP, bem como as garantias de defesa do arguido genericamente garantidas no n.º 1 do mesmo preceito constitucional.
Vejamos se assim é.
Numa instituição onde a hierarquia e a disciplina assumem, em nome do superior interesse da eficácia e da eficiência da defesa nacional e das Forças Armadas (artigos 273.º e 275.º da Constituição), uma importância sem paralelo na generalidade dos domínios da Administração Pública, tem certamente um efeito útil que a pena disciplinar de repreensão possa ser executada com a mínima dilação possível em relação ao momento da prática da infração.
Deve, além disso, notar-se que, na sua aplicação, as sanções de repreensão se dirigem a uma infração específica, estritamente relacionada com a prestação do serviço militar, e, ainda assim, a repreensão segue uma regra de comunicação restrita ou de difusão limitada. Ela é aplicada em privado (artigo 31.º) ou, nos casos mais graves, perante outros militares, mas ainda assim apenas na presença de militares de posto superior ou equivalente e dentro da unidade, estabelecimento ou órgão a que pertencem (artigo 32.º, do RDM), não podendo o facto da punição ser publicado (artigos 61.º e 107.º, n.º 3, do RDM).
Acresce que as sanções de repreensão, tal como quaisquer outras, apenas podem ser aplicadas na sequência de um processo em que o arguido teve oportunidade de se pronunciar em sua defesa com todas as necessárias garantias (artigos 99.º a 103.º do RDM). Logo, não é possível dizer-se, como pretende o Requerente, que há uma violação do princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição) ou das garantias de defesa em processo disciplinar (artigo 32.º, n.º 1 e 10, da Constituição). O juízo sobre a prática de uma infração surge após o decurso de um processo que dá as devidas garantias de defesa, e essas garantias são proporcionais à natureza da infração e à gravidade da sanção que possam estar em causa. No caso, o processo disciplinar, tal como está regulado, tendo em conta a menor gravidade das sanções e apesar da ausência de recurso hierárquico prévio à execução, constitui garantia suficiente do princípio da presunção de inocência.
Acrescente-se, também, que não é possível uma leitura a contrario do artigo 133.º do RDM no sentido de que as sanções de repreensão não seriam passíveis de impugnação em juízo.
A sanção disciplinar de repreensão, ou de repreensão agravada, mesmo depois de executada, tal como outras sanções disciplinares militares, é suscetível de impugnação (artigo 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição) que, em caso de procedência, gera a reconstituição da situação jurídica violada e a consequente eliminação da sanção do respetivo registo disciplinar, embora a providência de suspensão da eficácia que pudesse ser associada a essa impugnação tenha uma eficácia limitada por se tratar de ato já executado (artigo 129.º do CPTA).
Como esclarece Mário Aroso de ALMEIDA (Constituição da República Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo III, p. 613), 'o que o artigo 268.º, n.º 4, hoje, diz, é que a garantia de impugnação de atos administrativos se estende a todos os atos que impliquem, de alguma forma, a lesão de direitos ou interesses, porque deve ser este o conteúdo material da impugnabilidade dos atos administrativos. Esta garantia vale em relação a todo e qualquer ato administrativo, independentemente da entidade que o pratique ou do contexto procedimental em que seja produzido: basta que um ato administrativo seja passível de lesar direitos ou interesses protegidos'. É esta a jurisprudência firmada por este Tribunal, nomeadamente, no acórdão n.º 416/99.
E nem se diga que da previsão constitucional expressa de “recurso para o tribunal competente”, relativa ao caso da sanção de prisão disciplinar militar, prevista no artigo 27.º, n.º 3, alínea d), da Constituição (anteriormente, alínea c), se retira que as sanções disciplinares militares restantes não são passíveis de impugnação jurisdicional.
Sobre a questão pronunciou-se o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 90/88, que acerca dessa norma constitucional refere:
«De qualquer forma, o alcance do disposto na alínea c) [hoje alínea d do n.° 3 do artigo 27°. da Lei Fundamental só pode ser o de reforçar a garantia constitucional do recurso contencioso, e nunca o de, a contrario sensu, vir eliminar essa garantia no que respeita às decisões disciplinares, no âmbito militar, que não apliquem penas privativas da liberdade».
Tal como, aliás, lhes é, igualmente, garantido o recurso hierárquico, muito embora, diferentemente das outras sanções disciplinares militares, a interposição deste recurso não suspenda a decisão recorrida (artigo 123.º, n.º 2, do RDM).
Em suma, no que respeita à sanção de repreensão, o RDM estabelece um equilíbrio entre o interesse da disciplina e da hierarquia militar e os direitos dos militares individualmente considerados. O superior interesse da disciplina e da hierarquia militar está garantido através de brevidade do espaço de tempo entre a prática da infração e a aplicação da pena. A proteção do militar, por sua vez, está devidamente acautelada através das garantias de defesa de que dispõe no processo disciplinar (artigos 99.º a 103.º do RDM e 32.º, n.º 10, da Constituição), mas também através dos meios próprios de impugnação junto dos tribunais.
Conclui-se, pelo exposto, que o disposto no artigo 51.º, n.º 2, e no artigo 123.º, n.º 2, que preveem a execução imediata das penas de repreensão e repreensão agravada (sem que o recurso hierárquico tenha o efeito suspensivo que possui nas hipóteses de aplicação de outras penas), não violam, nem o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2), nem as garantias de defesa em processo disciplinar (artigo 32.º, n.os 1 e 10), nem a tutela jurisdicional efetiva garantida no artigo 20.º, n.º 1.
O recorrente alega ainda que o n.º 1 do artigo 51.º, do RDM, que respeita às outras sanções disciplinares ? e nas quais se incluiriam, como refere, a proibição de saída e a prisão disciplinar ?, ofende o princípio constitucional da presunção da inocência e das garantias de defesa do arguido, afrontando ainda, diretamente, o comando constitucional que decorre da alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição, pondo, igualmente, em causa o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição.
Uma das normas constitucionais invocadas como parâmetro (prevista no artigo 27.º, n.º 1, alínea d), refere-se, de modo expresso, à prisão disciplinar imposta a militares, razão pela qual se entende que a norma cuja constitucionalidade vem questionada é a prevista no n.º 1 do artigo 51.º do RDM quando estabelece que a pena de prisão disciplinar é cumprida logo que expirado o prazo para a interposição de recurso hierárquico sem que este tenha sido apresentado ou, tendo-o sido, logo que lhe seja negado provimento. A sanção disciplinar em causa consiste “na retenção do infrator por um período de um a 30 dias, em instalação militar, designadamente no quartel ou a bordo do navio” (artigo 35.º do RDM).
É precisamente do ponto de vista da garantia constitucional, especialmente consagrada a propósito da prisão disciplinar imposta a militares, que a solução legislativa agora em análise, traduzida na norma do n.º 1 do artigo 51.º, merece especial atenção, visto que tal solução parece pôr em causa o disposto no artigo 27.º, n.º 3, alínea d), da Constituição. Sobre esta garantia lê-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 90/88:
“7 - No seu artigo 20.°, n.° 2 [hoje n.º 1], a Constituição estabelece que 'a todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos'. Esta garantia da via judiciária pressupõe, designadamente 'uma proteção judicial sem lacunas, não podendo a repartição da competência jurisdicional pelos vários tipos de tribunais deixar nenhum espaço sem cobertura' (cfr. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. c i t., pág. 181).
Aliás, a garantia constante do artigo 268.º, n.° 3 [hoje n.º 4], ao assegurar 'aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer atos administrativos definitivos e executórios', mais não é do que um desenvolvimento do referido n.° 2 [hoje n.º 1] do artigo 20.°.
Nos casos em que a punição disciplinar, no âmbito militar, implique a privação da liberdade, a possibilidade de recurso encontra-se expressamente prevista na alínea c) [hoje alínea d)] do n.° 3 do artigo 27.° da Lei Fundamental, onde se admite, entre as diversas hipóteses de privação da liberdade sem prévia decisão judicial condenatória em pena de prisão ou em medida de segurança, a 'prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente '.
É certo que a prisão disciplinar imposta a militares constitui uma exceção à reserva de decisão judicial em matéria de penas privativas da liberdade, prevista no artigo 27.º, n.º 2, da Constituição, ao admitir-se a sua imposição em virtude de uma decisão administrativa [n.º 3, alínea d)]. Tal exceção, como outras no domínio militar, encontra justificação nos objetivos constitucionalmente fixados à defesa nacional.
Refere a esse propósito o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 33/2002:
“Não se vá sem dizer que a Lei Fundamental não deixou de excetuar, quanto ao princípio da proibição da privação da liberdade a não ser em consequência de sentença judicial condenatória, os casos de prisão disciplinar imposta a militares [alínea d) do nº 3 do artigo 27.º].
Seja qual for o entendimento que se der a essa exceção - nomeadamente saber se a consagração constitucional dessa exceção visa, e tão só, o estabelecimento de uma regra de competência de harmonia com a qual se admite a possibilidade de, sem que esteja em causa um procedimento criminal culminante com uma sentença judicial condenatória, os chefes militares poderem impor penas de prisão -, o que é certo é que se intentou consagrar que um tal género de sanção possa ser aplicável fora daquele processo (…)”.
Mas, ao excetuar a prisão disciplinar imposta a militares, quanto ao princípio da proibição da privação da liberdade a não ser em consequência de sentença judicial condenatória, a Constituição obriga, como se viu, a que tal sanção seja prevista «com garantia de recurso para o tribunal competente», assim tutelando, de modo particular, os direitos dos militares a ela sujeitos.
Ora, como se escreveu, relativamente a este segmento, no já citado Acórdão n.º 90/88, no caso da pena de prisão disciplinar, o sentido desta garantia expressa de impugnação junto do tribunal competente poderá ser, entre outros que então se mencionaram, «provavelmente, o de apontar para a conveniência de a lei prever, neste caso, um recurso de âmbito mais vasto do que o mero recurso contencioso de anulação, com fundamento em ilegalidade, garantido no artigo 268.º, n.º 3 [hoje n.º 4]. De qualquer forma, o alcance do disposto na alínea c) do n.° 3 do artigo 27°. da Lei Fundamental [hoje alínea d)] só pode ser o de reforçar a garantia constitucional do recurso contencioso».
De facto, a previsão da alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição não se limita a garantir a possibilidade de impugnar uma pena de prisão disciplinar junto dos tribunais, finalidade que seria já assegurada pela previsão constitucional genérica do artigo 268.º n.º 4. Nos termos da Constituição, a prisão disciplinar imposta a militares deve ser consagrada em moldes tais que garantam que uma pretensão deduzida em juízo, relativa à aplicação dessa sanção, possa ainda ter utilidade.
Na ausência de decisão judicial condenatória impondo a pena de prisão disciplinar militar, a Constituição pretende assegurar que a imposição administrativa da prisão possa, com utilidade, ser impugnada junto dos tribunais, devendo, para o efeito, o militar poder dispor de tempo adequado.
A possibilidade de execução da pena de prisão disciplinar logo após o indeferimento do recurso hierárquico não garante a efetividade do controlo jurisdicional que venha a ser instaurado.
Tal impugnação, para ter efeito útil, deveria assegurar que o militar pudesse dispor de tempo suficiente de modo a discutir a aplicação de tão gravosa sanção, o que não acontece. E a falta de resposta atempada do sistema judicial gera, nestes casos, uma lesão irreversível do direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1, da Constituição).
Em suma, a regra estabelecida no n.º 1 do artigo 51.º do RDM não acautela a utilidade da impugnação judicial quando, após decisão do recurso hierárquico, impõe que a sanção de prisão disciplinar militar seja cumprida de imediato: isto é, havendo sido interposto recurso hierárquico, a execução da pena terá lugar logo que lhe seja negado provimento.
Não se argumente, para salvar a constitucionalidade da norma que vem impugnada, que, de todo o modo, sempre estariam previstos na lei mecanismos para impugnação das medidas disciplinares, nomeadamente da prisão disciplinar, alguns dos quais consubstanciam verdadeiros mecanismos de natureza cautelar. Ainda que seja possível discutir judicialmente a sanção disciplinar depois de ela ter sido decidida com todas as formalidades previstas na lei, incluindo o recurso hierárquico obrigatório, na verdade, os meios de impugnação das medidas disciplinares, previstos no Código de Processo nos Tribunais Administrativos, com as especialidades introduzidas pela Lei n.º 34/2007, de 13 de agosto, - que não impedem a execução imediata da sanção -, não garantem ao militar uma utilização ainda útil do recurso aos tribunais, para obtenção de uma decisão que se pronuncie sobre a sanção disciplinar aplicada.
Aliás, mesmo estando previstas providências cautelares – diga-se, com critérios especiais de decisão mais gravosos para os militares em matéria de disciplina (Lei n.º 34/2007) – incluindo medidas de suspensão da eficácia, o facto de poder ter sido requerida uma tal providência não dá lugar à suspensão imediata da execução da sanção disciplinar militar, nem assegura necessariamente, a utilidade da discussão judicial da sanção.
Estabelece expressamente o artigo 2.º da Lei n.º 34/2007, acerca do regime especial de suspensão cautelar da eficácia dos atos administrativos em matéria de disciplina militar: “Quando seja requerida a suspensão de eficácia de um ato administrativo praticado ao abrigo do Regulamento de Disciplina Militar, não há lugar à proibição automática de executar o ato administrativo prevista no artigo 128.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos”.
E ainda que dos mecanismos atrás mencionados resultasse um regime dotado de garantias – o que, como se viu, não sucede – que pudessem, com utilidade e proveito, ser também invocadas por todo aquele a quem fosse aplicada uma pena militar de prisão disciplinar, a verdade é que a disciplina ordenadora da vida militar, prevista no RDM, não oferece aos militares a especial proteção constitucionalmente exigida.
Ora, a particular natureza e sensibilidade da matéria em questão exigia que a legislação relativa à disciplina militar concedesse, ela própria, uma específica proteção ao direito de impugnação dos militares sujeitos a prisão disciplinar, de modo a preservar tal garantia de possíveis oscilações de um hipotético regime geral.
Os mecanismos processuais previstos no RDM não asseguraram, por si mesmos, a garantia de um processo impugnatório ainda com utilidade. Ou seja, a solução da parte final do n.º 1, do artigo 51.º pode retirar sentido útil ao processo jurisdicional, pois a execução imediata da pena de prisão disciplinar militar logo após a decisão que negue provimento ao recurso hierárquico, não garante uma impugnação que com efeito prático sindique a sua aplicação.
Nestes termos, deve declarar-se a inconstitucionalidade da norma constante da parte final do n.º 1, do artigo 51.º, do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pela Lei Orgânica n.º 2/2009, na medida em que prevê que o cumprimento da pena de prisão disciplinar tenha lugar logo após ter sido negado provimento ao recurso hierárquico apresentado, sem que tenha sido garantida, no âmbito de regulação próprio da disciplina militar, a possibilidade de impugnação junto do tribunal competente em tempo útil, por violação do disposto no artigo 27.º, n.º 3, alínea d) da Constituição.
7. Passagem de certidões e diligências de prova requeridas pelo arguido
O artigo 76.º, n.º 1, do RDM, diz que o processo disciplinar é de natureza secreta até à notificação da acusação. Após a acusação, o n.º 2, do mesmo artigo, permite ao arguido e seu defensor a consulta do processo ou a passagem de certidões, mediante requerimento escrito, dirigido ao instrutor. Por fim, o n.º 3, do referido artigo 76.º, autoriza a passagem de certidões de peças de processo disciplinar, se destinada à defesa de interesses legítimos, devendo o requerimento especificar o fim a que se destina e podendo ser proibida a sua divulgação.
O Requerente entende que o arguido tem sempre interesse legítimo em pedir 'certidões' num processo em que é arguido e que a restrição que se faz quando se exige que ele tenha um 'interesse legítimo' viola o seu direito de acesso a documentos administrativos (artigo 268.º, nos 1 e 2) e o direito de defesa em processo disciplinar (artigos 269.º, n.º 3 e 32.º, n.º 10 da Constituição).
Mas, não tem razão, o requerente.
Após a acusação, para o arguido e seu defensor o processo é aberto. Só é secreto para terceiros. Esta regra de clausura do processo em relação a terceiros resulta, na lei, do 'dever de segredo' que é imposto ao arguido e ao seu defensor, especificamente no artigo 76.º, n.º 2, do RDM, dever esse que vinculará também, como é evidente, por maioria de razão, o instrutor.
Assim sendo, após a acusação, o arguido tem direito, nos termos do artigo 100.º, n.º 1, do RDM, ao exame do processo 'durante o prazo para a apresentação da defesa' e 'às horas normais do expediente' seja por si, seu representante ou curador, seja pelo defensor por qualquer deles constituído. Acresce que o n.º 2, deste mesmo artigo 100.º, admite que lhes sejam fornecidas fotocópias do processo e, quando tal não seja possível, permite-se mesmo que o processo seja confiado ao defensor, que o poderá levar consigo, nos termos gerais do processo civil.
O arguido tem, pois, acesso aos documentos administrativos, podendo inclusivamente pedir fotocópias desses documentos. Para sua defesa, o arguido pode examinar todo o processo e pode pedir fotocópias do mesmo.
Mas o arguido tem, igualmente, o direito de pedir certidões.
As 'certidões' não são apenas fotocópias do processo. São documentos autenticados, com os sinais distintivos duma autoridade pública.
Se o arguido pede certidão para utilizar no próprio processo, para sua defesa, ele tem, evidentemente, um interesse legítimo na sua passagem.
Não colhe, assim, nesta parte, a invocação do requerente de que um pedido de certidão ficaria à mercê de uma apreciação hierárquica do que constitui ou não a “defesa de interesses legítimos”, inexistindo, nesta perspetiva, o alegado entrave à sua defesa.
A questão será distinta se a certidão se destina a ser usada fora do processo, para outros efeitos, mediante apresentação a outras entidades, sejam elas administrativas, judiciais ou de outra natureza.
O n.º 3 do artigo 76.º do RDM estabelece as condições em que se pode passar certidões, quando estas se destinam a um uso externo ao processo. De facto, poderá a certidão não se destinar necessariamente à defesa processual do arguido e, nesse caso, este deverá especificar o fim a que se destina, assim como invocar um 'interesse legítimo' (como seria, por exemplo, o interesse na defesa da reputação e do bom-nome) que justifique a passagem da certidão.
Mas, nesta situação, em que está em causa a passagem de certidão para fins alheios ao mesmo, numa fase em que o processo, sendo para o arguido aberto, deve permanecer em segredo para o exterior, o facto do arguido ter de invocar um interesse legítimo para a passagem de certidão para outros fins não põe em causa o seu direito de acesso aos documentos, ou o seu direito de defesa.
Desde logo porque, como se referiu, o acesso aos documentos, para sua defesa no próprio processo (artigo 76.º, n.º 2), está sempre assegurado.
Por outro lado, caso a certidão a requerer seja necessária para sua defesa num outro processo, também aqui o arguido terá, ipso facto, um interesse legítimo em pedi-la.
Da necessidade de invocação de um interesse legítimo, que surge associada à indicação da finalidade a que se destina a certidão, não resulta, ao contrário do que sustenta o recorrente, uma violação dos seus direitos de defesa e de acesso aos documentos.
Recorde-se, ainda, que, nestes casos, uma recusa deverá ser devidamente fundamentada (artigo 76.º, n.º 4, do RDM), sendo um tal ato de recusa passível de impugnação, em termos especialmente previstos (artigo 104.º a 108.º do CPTA).
Não tem, pelos motivos expostos, razão, o requerente quanto à invocada inconstitucionalidade.
O Requerente contesta, ainda, que o instrutor possa recusar diligências de prova requeridas pelo arguido, nos termos dos artigos 94.º, n.º 5, e 103.º, n.º 2, do RDM, alegando que tal constitui uma violação dos direitos de defesa do arguido (artigo 269.º, n.º 3 e 32.º, n.os 1, 2 e 10, da Constituição).
Mas estes preceitos correspondem a uma regra de direito frequentemente adotada.
Tomando apenas algumas soluções que lhe são próximas, relembre-se que o artigo 46.º, n.os 3 e 4 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, estabelece: '3- Durante a fase da instrução, o arguido pode requerer ao instrutor que promova as diligências para que tenha competência e consideradas por aquele essenciais para o apuramento da verdade. 4- Quando o instrutor julgue suficiente a prova produzida, pode, em despacho devidamente fundamentado, indeferir o requerimento referido no número anterior'.
A mesma regra surge, também, no próprio Código de Processo Penal que prescreve no seu artigo 340.º, n.º 4, após esclarecer que o juiz deve recusar as provas e meios de prova legalmente inadmissíveis: 'Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que: a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; b) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou c) O requerimento tem finalidade meramente dilatória'.
Este facto é particularmente significativo não apenas pela remissão que o RDM faz para a aplicação subsidiária, com as necessárias ou devidas adaptações, da legislação processual penal (artigo 10.º do RDM), mas principalmente pelo facto de, por definição, o processo penal ser sempre o mais garantístico dos processos de todo o ordenamento.
O Requerente parece, porém, pretender que o processo disciplinar militar tenha mais garantias do que o processo disciplinar comum dos trabalhadores que exercem funções públicas e, inclusivamente, que o próprio processo penal.
Tal não é, todavia, processualmente razoável nem constitucionalmente exigível.
O instrutor tem de ter o poder de dirigir e disciplinar o processo para além do impulso processual das partes. Não pode ficar totalmente dependente de eventuais excessos das mesmas.
O direito à defesa está sujeito a critérios de adequação e necessidade (de proporcionalidade) que, sem porem em causa o seu conteúdo essencial, lhe demarcam determinados limites.
Acresce que, o instrutor deve decidir mediante 'despacho fundamentado' exigindo-se alguma 'concretização' (vendo a fundamentação essencialmente como concretização, Vieira de ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa, Coimbra, 1992, p. 234). Deve, portanto, o instrutor, apresentar as razões concretas pelas quais considera as diligências requeridas desnecessárias, inúteis, impertinentes ou dilatórias (artigos 94.º, n.º 5 e 103.º, n.º 2, 1.ª parte).
Por fim, resta dizer que não há qualquer violação do princípio da presunção de inocência quando o instrutor responde ao requerimento de prova considerando que estão 'suficientemente provados os factos alegados pelo arguido na sua defesa' nos termos do artigo 103.º, n.º 2, 2.ª parte, do RDM.
Note-se bem: trata-se dos 'factos alegados pelo arguido na sua defesa' (se o instrutor aceitar dar desde logo estes factos ou alguns destes factos como provados isso beneficia, com é evidente, o arguido). Não se trata de dar como provados os factos invocados pelo instrutor na sua acusação. Estes últimos não pode, obviamente, o instrutor considerar provados antes da realização das diligências probatórias. Diga-se, aliás, que mesmo que esteja na posse de algum meio de prova com força probatória plena (como um documento autêntico ou uma confissão) apenas poderá considerar os factos provados no estrito e delimitado âmbito abrangido por essa mesma força probatória plena e, além disso, não poderá excluir a possibilidade de se vir a provar a invalidade ou a falsidade de tais meios de prova.
Mas a norma do RDM nada acrescenta aos princípios comuns do direito probatório. E não se referindo aos factos formulados na acusação, mas apenas aos articulados pelo arguido na defesa, só estes se podendo considerar, desde logo, como suficientemente provados para efeitos de recusa de mais diligências probatórias, não há qualquer violação do princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.os 1 e 2 da Constituição).
Por outro lado, também quanto a este aspeto o instrutor deve esclarecer, em despacho fundamentado, quais as razões pelas quais considera suficientemente provados os factos alegados pelo arguido na sua defesa (artigo 103.º, n.º 2, 2.ª parte, do RDM).
Assim, tendo o direito de defesa, à semelhança de todos os direitos, limites decorrentes de exigências de idoneidade e necessidade, o instrutor pode recusar as diligências probatórias requeridas pelo arguido que se possam considerar desnecessárias ou impertinentes, segundo um princípio de razoável delimitação, não havendo, por isso, qualquer violação dos direitos de defesa do arguido (artigo 269.º, n.º 3 e 32.º, n.os1, 2 e 10, da Constituição).
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da parte final do n.º 1, do artigo 51.º, do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pela Lei Orgânica n.º 2/2009, na medida em que prevê que o cumprimento da pena de prisão disciplinar tenha lugar logo após ter sido negado provimento ao recurso hierárquico apresentado, sem que seja garantida, no Regulamento de Disciplina Militar, a possibilidade de impugnação junto do tribunal competente, em tempo útil, por violação do disposto no artigo 27.º, n.º 3, alínea d) da Constituição;
não declarar a inconstitucionalidade das restantes normas constantes do pedido.
Lisboa, 2 de maio de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – Maria João Antunes – Carlos Fernandes Cadilha – João Cura Mariano – Vítor Gomes (Vencido quanto à al. a) da decisão, conforme declaração de voto junta). – Carlos Pamplona de Oliveira – vencido quanto à alínea a) da decisão, conforme declaração em anexo. – Maria Lúcia Amaral (vencida, quanto à alínea a) da decisão, nos termos da declaração junta) – Ana Maria Guerra Martins (vencida, no essencial, pelas razões constantes da declaração do Senhor Conselheiro Victor Gomes) – Rui Manuel Moura Ramos. (Vencido, quanto à alínea a) da decisão, pelo essencial das razões constantes das declarações dos Senhores Conselheiros Vítor Gomes e Maria Lúcia Amaral).
Tem voto de conformidade do Senhor Conselheiro José Borges Soeiro, que não assina por, entretanto, ter deixado de fazer parte do Tribunal. – Catarina Sarmento e Castro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho a declaração de inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 51.º, n.º 1, do Regulamento de Disciplina Militar (RDM) a que o acórdão chegou, pela essencial razão de que, a haver deficit de tutela jurisdicional relativamente aos actos de aplicação da pena de prisão disciplinar militar, o vício se situará noutro lugar do sistema jurídico, designadamente nas normas relativas ao contencioso de tais actos – medidas cautelares ou de tutela urgente incluídas (cfr. Lei n.º 34/2007, de 13 de Agosto) – e não no dispositivo legal cuja inconstitucionalidade foi divisada.
Efectivamente, esta norma reproduz a regra geral de que os actos administrativos são “executórios” logo que eficazes (artigo 149.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo), também assumida no direito disciplinar geral dos trabalhadores que exercem funções públicas (actualmente, artigo 58.º do Estatuto Disciplinar, aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro). O comando expresso no n.º 1 do artigo 51.º do RDM (“logo que ….”) limita-se a acentuar as particulares exigências de prontidão e efectividade no domínio da disciplina militar. Nada acrescenta de restritivo da posição jurídica do destinatário da sanção, nem confere à Administração militar poderes novos ou mais latos quanto à execução das suas decisões do que aqueles que deteria se tal norma não existisse.
Quando muito, enfatiza o dever de fazer cumprir prontamente as decisões disciplinares, o que é conforme à necessidade de observância de estrita disciplina e rigorosa hierarquia para cumprimento das funções constitucionalmente cometidos às Forças Armadas (artigo 275.º da CRP). Como se afirmou no acórdão n.º 33/02 “ .... se há sector da Administração que se reveste de características muito próprias e de uma forma organizativa reconhecidamente peculiar, ele é, sem dúvida, o das Forças Armadas, onde a organização hierárquica rege por excelência. As finalidades e exigências específicas desse sector são, aliás, inconcebíveis se desacompanhadas de uma acentuada disciplina. É que, sendo as Forças Armadas uma instituição constituída por pessoas a quem é confiado o uso de armas e a quem, para a defesa nacional, é dada formação para o uso de meios violentos – exigindo-se-lhes a exposição a riscos que podem levar ao sacrifício da própria vida, o que tudo acarreta a observância de numerosos deveres que se não surpreendem noutros sectores da Administração –, mal se compreenderia que a cadeia hierárquica não estivesse dotada de poder para a aplicação de sanções eficazes contra quem, dentro dessa organização, desrespeita aqueles deveres. Por isso, só uma ampla subordinação à cadeia de comando pode levar à unidade de acção, de esforços e de direcção, subordinação essa que, se não fora a existência de sanções gravosas para o incumprimento de deveres essenciais às finalidades das Forças Armadas e a sua aplicação célere e simplificada, redundaria em ficar desprovida de efectividade prática”
Acresce, mesmo para quem entenda poder censurar a norma em causa na medida em que não interpõe um lapso de tempo mínimo entre a decisão hierarquicamente definitiva e a execução da pena de prisão disciplinar, em ordem a garantir que o militar sancionado possa recorrer ao tribunal antes de entrar em cumprimento dela, assim retirando da parte final da alínea d) do n.º 1 do artigo 27.º da CRP a imposição de uma específica conformação dos poderes da Administração militar quanto à sua execução, não poderia visar-se mais do que a obtenção de uma apreciação judicial prima facie e com ponderação dos interesses conflituantes na execução imediata. Condicionar necessária e sistematicamente a execução da pena, como parece decorrer do acórdão, à apreciação final da impugnação do acto punitivo, sacrificaria desproporcionadamente a eficácia do poder disciplinar precisamente quanto a infracções a que corresponde a mais grave das penas disciplinares não expulsivas, ignorando as ponderações constitucionais que levaram à consagração da excepção da alínea d) do n.º 1 do artigo 27.º da Constituição.- Vítor Gomes.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à pronúncia de inconstitucionalidade respeitante à alínea a) da decisão, por entender que o segmento normativo relativo ao inicio do cumprimento de prisão disciplinar logo que seja negado provimento ao recurso hierárquico não desprotege a garantia de impugnação judicial da sanção disciplinar, tal como é exigido na alínea d) do n.º 3 do artigo 27º da Constituição.
Na verdade, a aplicação da pena de prisão disciplinar é antecedida da instauração de processo disciplinar – durante o qual é facultada ao arguido e seu defensor a consulta do processo – da notificação da acusação, e da realização de diligências probatórias. Além disso, tendo em conta a estrutura fortemente hierarquizada da instituição militar que exige a interposição de um recurso hierárquico prévio ao recurso contencioso a interpor no 'tribunal competente', durante o prazo em que o recurso hierárquico pode ser apresentado, e, depois disso, até ele ser objeto de decisão, fica suspensa a eficácia da sanção, o que impede a sua imediata executoriedade. Ora, esse prazo é suficiente para preparar a defesa, e instaurar no tribunal competente a ação impugnatória, logo que seja notificada a decisão final.
Além disso, a especial estrutura das forças armadas – ancorada na disciplina dos seus órgãos e agentes, e submetida a um efetivo dever de obediência – impõe que a punição imposta pelo superior seja prontamente cumprida. A exigência constitucional de recurso, consagrada na referida alínea d) do n.º 3 do artigo 27º da Constituição, pretende garantir um controle de legalidade a posteriori que, ao contrário do que parece supor o acórdão, salvaguarda, com razoável extensão, a recomposição da situação jurídica que existiria se não fosse o ato ilegal praticado.
É isto e, a meu ver, apenas isto, que a Constituição impõe no aludido preceito, o que se mostra salvaguardado pela norma em análise.- Carlos Pamplona de Oliveira.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti do juízo de inconstitucionalidade quanto ao disposto no nº 1 do artigo 51.º do Regulamento de Disciplina Militar. No meu entendimento, a norma constante da parte final deste preceito, “na medida em que prevê que o cumprimento da pena de prisão disciplinar tenha lugar logo após ter sido negado provimento ao recurso hierárquico necessário, sem que seja garantida (…) a possibilidade de impugnação junto do tribunal competente, em tempo útil”, não lesa o artigo 27.º, nº 3, alínea d) da Constituição.
A pena de prisão disciplinar que o RDM prevê constitui, sem margem para dúvidas, uma forma de restrição legal do direito que todos têm à liberdade. Simplesmente, trata-se de uma restrição que conta, desde logo, com a especial legitimação de uma autorização constitucional expressa. Ao prever, como exceção à regra segundo a qual ninguém pode ser privado de liberdade senão em consequência de sentença judicial condenatória, que possa ser imposta a militares prisão disciplinar, a Constituição está a conferir ao legislador ordinário uma especial habilitação para que a liberdade deste grupo de pessoas seja restringida de forma diversa por que se restringe a liberdade das demais. A razão por que o faz encontra-se no estatuto constitucional das Forças Armadas (artigo 275.º) e nas exigências que daí decorrem para a regulação, por lei, do serviço militar (artigo 276.º).
A norma do artigo 51.º, nº1 do RDM concretiza esta autorização constitucional expressa para a restrição legal da liberdade dos militares, de uma forma que, a meu ver, é lícita porque respeita as exigências impostas às leis restritivas, nomeadamente a decorrente da proibição do excesso. As necessidades de eficácia e prontidão de aplicação das sanções disciplinares militares, justificadas pelas especiais relações de ordem e de hierarquia que no seio da instituição se estabelecem, tornam, segundo creio, adequada, necessária e proporcional a medida de aplicação imediata da pena de prisão disciplinar, logo que expirado o prazo para a interposição do recurso hierárquico ou logo que lhe seja negado provimento. No juízo de ponderação que faço, e que leva à conclusão da não inconstitucionalidade da norma, ocupa ainda lugar de relevo a consideração segundo a qual o grau de afetação da liberdade das pessoas que a aplicação desta particular sanção implica é, pelas próprias circunstâncias em que se desenrola a medida disciplinar, bem menor do que o grau de afetação da liberdade a que se refere o nº 1 do artigo 27.º da Constituição.
Maria Lúcia Amaral.