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Proc.Nº 848/96
Sec. 1ª
Rel. Consº Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. - A A. veio reclamar do despacho proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, pelo qual lhe não foi admitido o recurso interposto para este Tribunal do Acórdão daquela Relação de 25 de Setembro de 1996.
Fundamenta a reclamação pela forma seguinte:
- em processo que o Ministério Público moveu contra B. pela prática de crime de homicídio por negligência, foi deduzido, pelos assistentes contra o arguido e também contra a A. um pedido de indemnização; o arguido veio a ser absolvido, na 1ª instância, da acusação e o pedido de indemnização julgado improcedente quanto ao mesmo arguido e quanto à A.;
- tal decisão foi objecto de recurso interposto pelos assistentes para a Relação de Coimbra;
- este Tribunal, julgando de facto e de direito, entendeu alterar a matéria de facto fixada no Tribunal recorrido e revogando a decisão recorrida julgou a acusação e o pedido de indemnização procedentes;
- mas, no entender do reclamante, o referido acórdão
'incorreu na mais obstinada omissão de fundamentação da matéria de facto que entendeu provada';
- pelo que a A. veio logo arguir a nulidade do acórdão referindo terem sido violadas, entre outras, as normas do artigo 379º e do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, 'esta última na refracção que iniludivelmente constitui do artigo 208º, nº 1, da Constituição da República
(CRP), norma também invocada e referida como violada';
- esta arguição de nulidade veio a ser desatendida pelo Acórdão de 25 de Setembro de 1996;
- deste acórdão interpôs a A. recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) para apreciar a inconstitucionalidade do nº 2 do artigo
374º do Código de Processo Penal de 1987 por violação do artigo 32º, nº 1, e
208º, nº 1, ambos da CRP.
2. - Este recurso não foi admitido, sendo do seguinte teor o despacho de não admissão:
...'Mas, a pretensão da requerente padece de incoerência e o recurso é manifestamente infundado.
Na verdade:
Em primeiro lugar, o acórdão de folhas 342, que apreciou a eventual nulidade do acórdão de folhas 329 e segs., não está directamente subordinado ao disposto no citado artigo 374º, nº 2, nem tinha que obedecer a tantas exigências formais.
Em segundo lugar, o que a requerente sustenta é que o nº 2 daquele artigo
374º 'mais não é do que verdadeiro direito constitucional aplicado, nos termos do artigo 208º, nº 1, da Constituição da República' - vide folhas 339. Sendo assim, a que propósito afirma agora que pretende recorrer com base em que o Tribunal aplicou norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo?
O que a requerente podia dizer - como já disse - é que o Tribunal não cumpriu o disposto no referido nº 2 do artigo 374º. Só que isso não constituiria fundamento de recurso para o Tribunal Constitucional.
Em face do exposto, e nos termos do artigo 76º da Lei nº 28/82, não admito o recurso interposto.'
Apresentada a reclamação à conferência, a Relação de Coimbra, por acórdão de 13 de Novembro de 1996, confirmou o despacho de não admissão do recurso.
3. - Recebida a reclamação foi concedida vista ao Ministério Público que exarou o seguinte parecer:
'A presente reclamação configura-se como claramente improcedente, já que a norma que constitui objecto do recurso de constitucionalidade interposto não foi interpretada e aplicada, na decisão recorrida, com o sentido pretensamente inconstitucional, apontado pelo reclamante, traduzido na violação do dever de fundamentação das decisões judiciais.
Na verdade, e ao contrário do que pretende o ora reclamante, a decisão recorrida enuncia claramente a matéria de facto que considerou provada, acentua a 'diferença substancial' entre a versão fáctica que acolheu e a que merecera procedência na 1ª instância e justifica, em termos bastantes, quais as provas que serviram de suporte à convicção do Tribunal, que exerceu os poderes de integral reapreciação da matéria de facto apurada no tribunal 'a quo' (cfr. o segundo parágrafo de fls. 13 dos presentes autos).
Nestes termos - e embora por fundamento diverso do apontado no acórdão de fls. 6 - não devia efectivamente ter sido admitido o recurso de constitucionalidade interposto, por faltar um essencial pressuposto de admissibilidade do mesmo.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
4. - Em processo crime em que o arguido foi acusado da prática de homicídio por negligência, foi deduzido pelos assistentes um pedido de indemnização cível contra o arguido e contra a A..
Contestados a acusação e o pedido, a decisão da 1ª instância veio absolver o arguido do crime de que era acusado e julgou improcedente o pedido de indemnização, absolvendo o arguido e a A..
Desta decisão, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação quer o Ministério Público quer os assistentes.
Nesta instância, julgando de facto e de direito, o colectivo de Desembargadores, 'procedendo a uma análise crítica das provas recolhidas nos autos' concluiu que 'os factos ocorreram de forma algo diferente da versão que ficou plasmada na sentença'.
E, considerando como provados outros factos, a Relação decidiu revogar a sentença recorrida e, em consequência, negar provimento ao recurso do Ministério Público e conceder provimento parcial ao recurso dos assistentes, nos termos que a seguir se transcrevem:
'a) Considera-se que o arguido praticou um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelo artigo 136º, nº 1, do Código Penal de 1982;
b) condena-se o arguido, como autor desse crime, em 180 dias de prisão, substituída por multa à taxa diária de 1.000$00 - ou 120 dias de prisão em alternativa;
c) declara-se perdoada a pena, nos termos do artigo 8º, nº 1, alínea c), da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, sob a condição resolutiva prevista no artigo 11º da mesma Lei;
d) condena-se o arguido na taxa de justiça normal e nas custas, bem como na quantia equivalente a 1% daquela taxa, nos termos do artigo 13º, nº 3, do Decreto-Lei nº 423/91, de 30 de Outubro;
e) considera-se parcialmente procedente o pedido cível, condenando-se o arguido e a demandada 'E.D.P.' a pagar, solidariamente, aos demandantes o equivalente a 75% das seguintes importâncias:
- 4.000.000$00, por danos não patrimoniais sofridos por aqueles demandantes;
- 3.000.000$00, como indemnização pela perda do direito à vida da vítima;
- o que se liquidar em execução da sentença como valor dos danos patrimoniais dos demandantes, resultantes da morte do C., com juros de mora, à taxa legal, desde a citação.'
Face a este acórdão que altera radicalmente o anteriormente decidido, a A. veio arguir a sua nulidade e neste requerimento suscitou pela primeira vez a questão da inconstitucionalidade da interpretação feita no acórdão do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, interpretação esta que considerou violadora do artigo 208º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
A reclamante alegou nesse requerimento o seguinte:
'a) Nos termos do artº 379º do CPP a sentença - no caso, Acórdão - diz-se nula, quando não contiver as menções do nº 2 do artigo 374º do mesmo diploma.
Ora,
b) o nº 2 do artº 374º é uma norma verdadeiramente crucial, da perspectiva garantística. Na verdade, como se vem entendendo pacificamente na doutrina, às decisões dos Tribunais não basta a razão da força, vale por dizer, é necessário que lhes ande colimada a eficácia de convencimento que tem de ser conatural, num Estado de Direito Democrático, a qualquer decisão judicial.
Na verdade,
c) o nº 2 do referido normativo, ao exigir que da decisão judicial conste
'uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão', mais não é do que verdadeiro direito constitucional aplicado, nos termos do artº 208º, nº 1 da Constituição da República.
Efectivamente,
d) salvo o devido respeito, por mais que se leia o Acórdão em apreço, não se topa nele, sequer, com qualquer arremedo de fundamentação, nos mencionados termos positivados em sede de lei ordinária e constantes do programa Constitucional.
Como assim,
e) afigurando-se, como se afigura manifesto que o Acórdão em apreço não procedeu a uma motivação digna desse nome, em contravenção com as imposições do direito legislado e do próprio direito constitucional, é nulo, repete-se, não só por violar uma interpretação razoável e garantística do dever de motivação, como por a referida norma do artigo 208º, nº 1, tratando-se de regra atinente aos direitos, liberdades e garantias, sempre seria de aplicação imediata, como comanda o disposto no artigo 18º, nº 1 do diploma fundamental.'
Indeferida a arguição de nulidade, a A. apresentou recurso para o Tribunal Constitucional do respectivo acórdão, recurso este que não lhe foi admitido e está na base da presente reclamação.
5. - De acordo com o preceituado no artigo 280º, nº 1, alínea b) da CRP e do artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional
(Lei nº 28/82, de 15.11.), cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos Tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Este Tribunal vem entendendo, em jurisprudência uniforme e reiterada, que o pressuposto de admissibilidade deste tipo de recurso - do qual o recorrente se serviu - no que se refere ao exacto significado da locução
«durante o processo» utilizado em ambos os normativos, deve ser tomado não num sentido puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância), mas num sentido funcional, tal que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão. Ou seja: a inconstitucionalidade haverá de suscitar-se antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de inconstitucionalidade) respeita. Um tal entendimento decorre do facto de se estar justamente perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que pressupõe, obviamente, uma anterior decisão do tribunal a quo sobre a questão
(de constitucionalidade) que é objecto do mesmo recurso.
Deste modo, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional «não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial nem torna esta obscura ou ambígua», há-de ainda entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não é já, em princípio, meio idóneo e atempado para suscitar a questão de inconstitucionalidade .
Por outro lado, o legislador constitucional elegeu como conceito identificador do objecto típico da actividade do Tribunal Constitucional em matéria de fiscalização da constitucionalidade (artigos 278º,
280º e 281º da Constituição) o conceito de norma jurídica pelo que só estas ou uma dada interpretação normativa e não já as decisões judiciais, em si mesmas consideradas, podem constituir o objecto dos recursos em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, recurso este sobre o qual recaiu despacho de não admissibilidade, o qual está em reclamação nos autos.
Acresce ainda que quanto ao requisito da aplicação da norma, o Tribunal tem entendido que a norma cuja conformidade constitucional é questionada deve ser um dos fundamentos normativos da decisão e aplicada, em regra, na sequência do não atendimento da invocação da sua inconstitucionalidade.
Assim, os recorrentes têm o ónus de suscitar, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade das normas aplicadas na decisão, devendo fazê-lo de modo directo, explícito e perceptível através das disposições legais que consideram afectadas de inconstitucionalidade.
6. - No caso, a reclamante suscitou a questão de inconstitucionalidade da interpretação do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal feita no acórdão, logo no requerimento de arguição de nulidade, a qual aliás consistia exactamente na aplicação daquela norma com o sentido que a A. reputa de inconstitucional.
Ou seja, a questão de constitucionalidade foi suscitada num momento em que o Tribunal requerido ainda podia validamente pronunciar-se sobre ela pois a própria questão de constitucionalidade do preceito processual constituía o cerne da nulidade invocada.
Mas, deverá deferir-se a presente reclamação?
7. - A reclamante indica correctamente a norma a sindicar e a suscitação da questão de inconstitucionalidade pode considerar-se feita durante o processo. Mas, a reclamante não indica com clareza e de forma inequívoca qual a interpretação do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal (CPP) que considera inconstitucional e violadora do artigo 208º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, ou seja, do dever de fundamentar as decisões judiciais.
De facto, no requerimento de interposição do recurso, a reclamante refere apenas que 'o Tribunal da Relação de Coimbra fez prevalecer uma interpretação do disposto no nº2 do artigo 374º do Código de Processo Penal que o inconstitucionalizou, face ao comando dimanado do artigo 208º nº1, da Constituição da República'.
Por outro lado, na fundamentação da arguição de nulidade onde suscitou tal questão - e que fica transcrita atrás -, a reclamante, depois de referir o conteúdo da norma em causa e de dizer que esta 'mais não é do que verdadeiro direito constitucional aplicado, nos termos do artigo 208º, nº1 da Constituição da República', afirma que ' por mais que se leia o Acórdão em apreço, não se topa nele, sequer, com qualquer arremedo de fundamentação, nos mencionados termos positivados em sede de lei ordinária e constantes do programa Constitucional'. E, mais adiante, 'afigurando-se, como se afigura manifesto que o Acórdão em apreço não procedeu a uma motivação digna desse nome, em contravenção com as imposições do direito legislado e do próprio direito constitucional, é nulo, repete-se, não só por violar uma interpretação razoável e garantística do dever de motivação, como por a referida norma do artigo 208º, nº 1, tratando-se de regra atinente aos direitos, liberdades e garantias, sempre seria de aplicação imediata, como comanda o disposto no artigo 18º, nº 1 do diploma fundamental.'
Ora, face a esta impostação do problema, poderia entender-se que o reclamante considera a norma do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal inconstitucional se interpretada no sentido de que o tribunal de recurso, quando conhece da matéria de facto e da matéria de direito, não está sujeito a todas as exigências formais daquela norma.
Mas, a ser assim, é manifesto que a decisão recorrida não aplicou a norma questionada com este sentido, porquanto, como bem salienta o Ministério Público, o acórdão impugnado 'enuncia claramente a matéria de facto que considera provada, acentua a «diferença substancial» entre a versão fáctica que acolheu e a que merecera procedência na 1ª instância e, justifica, em termos bastantes quais as provas que serviram de suporte às convicções do Tribunal, que exerceu os poderes de integral reapreciação da matéria de facto aprovada no Tribunal 'a quo' (...)'.
E não tendo a interpretação normativa que o reclamante teria considerado inconstitucional sido aplicada pelo acórdão recorrido, isto é, não sendo o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, com o sentido que o recorrente considera inconstitucional, utilizado para estruturar os fundamentos decisórios do acórdão da Relação, falta um requisito de admissibilidade de recurso, o que só por si levaria ao indeferimento da presente reclamação.
Mas, analisada mais detidamente a forma como a reclamante fundamenta a arguição de nulidade onde suscita a questão de inconstitucionalidade, constata-se que ao dizer-se que 'o Acórdão não procedeu a uma motivação digna desse nome em contravenção com as imposições do direito legislado e do próprio direito constitucional', não está a suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade normativa mas a arguir-se de inconstitucional o próprio acórdão, imputando-se à própria decisão a violação da norma constitucional referida, ou seja, no entender da reclamante, a decisão proferida não cumpriu ou não cumpriu inteiramente as exigências legais e/ou constitucionais.
Porém, como se referiu atrás, só as normas ou uma dada interpretação normativa podem constituir o objecto do recurso de constitucionalidade, pelo que também por este motivo, a reclamação deve ser indeferida.
8. - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide desatender a reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
5 UC's.
Lisboa, 1997.03.12 Vitor Nunes de Almeida Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa