Imprimir acórdão
Proc. nº 492/93
1ª Secção Rel: Cons. Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I. No Tribunal Judicial da Comarca de Sintra, E... propôs contra H... acção com processo ordinário, pedindo que este fosse condenado a restituir-lhe uma embarcação de recreio com a quantia de Esc. 100.000$00 e a indemnizá-lo em Esc. 345.000$00.
Elaborados o despacho saneador, a especificação e o questionário, foram expedidas cartas registadas para notificação dos mandatários das partes. Mas a carta que se dirigia à mandatária do autor foi devolvida, com a indicação
'Mudou-se'. Foi então que o senhor juiz proferiu o seguinte despacho: 'Não obstante a devolução da carta que antecede, a notificação não pode deixar de considerar-se feita, atento o disposto no nº 3 do artigo 254º do C.P.C.. Prosseguirão, assim, os autos a sua tramitação normal, dando-se cumprimento ao disposto no artigo 511º, nº 4, do C.P.C. e 512º'.
Foram depois expedidas outras cartas registadas, mas, de novo, aquela que se dirigia à mandatária do autor foi devolvida com a indicação
'Mudou-se'. E também os postais registados para notificação do autor e sua mandatária do dia do julgamento foi devolvido com a indicação 'Mudou-se. Ignora-se para onde'.
Na data designada para o julgamento, a mandatária do autor informou o Tribunal da alteração do seu domicílio profissional e arguiu nulidades consistentes na falta daquelas notificações. E recorreu do despacho que ordenara o prosseguimento do processo.
Realizou-se a audiência de julgamento, a acção foi julgada improcedente e o réu absolvido do pedido. Do que o autor recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa.
A Relação de Lisboa, em acordão de 28 de Maio de 1992, negou provimento aos dois recursos, do despacho que ordenara o prosseguimento do processo, e destoutro da sentença absolutória. O acordão concluiu assim:
'As notificações aos advogados das partes são feitas por cartas registadas nos escritórios que se mostram indicados nos autos; devolvidas as cartas por facto não imputável ao tribunal têm-se por efectuadas as notificações em conformidade com o preceituado no nº 3 do artigo 254º do C.P. Civil. Assenta este preceito no pressuposto de que, ao indicar o seu escritório ou domicílio, o mandatário forense toma as devidas precauções para receber as notificações que hajam de lhe ser dirigidas e que, portanto, as que deixar de receber por culpa sua, produzirão os seus efeitos de notificação efectiva.
O autor recorreu deste acordão para o Supremo Tribunal de Justiça, suscitando a questão de constitucionalidade da norma do artigo 254º, nº 3, do Código de Processo Civil, na interpretação assim feita pela Relação de Lisboa.
O Supremo Tribunal de Justiça, em acordão de 13 de Maio de 1993, negou provimento ao recurso. Disse sobre a questão de constitucionalidade:
'(...) 6. Apreciemos, finalmente, a última questão suscitada, relativa à inconstitucionalidade do art. 254º, nº 3, na interpretação acolhida nas decisões das instâncias e ratificada por este Supremo Tribunal, no sentido de que a notificação se considera feita ainda que a respectiva carta registada, tendo sido enviada para o escritório do mandatário, não tenha sido entregue por ausência do destinatário.
Segundo o recorrente, esta interpretação viola a norma do artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem [toda a pessoa tem direito , em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações
(...)], aplicável por força do disposto no artigo. 16º, nº 2, da Constituição
[os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados da harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem].
Mas sem razão.
O preceito visado é aplicável, em plena igualdade, a toda e qualquer parte que se encontre na situação nele prevista, equitativa e publicamente, estando fora de causa a independência e imparcialiadade do tribunal para julgar as questões que lhe foram propostas de harmonia com as leis vigentes, como lhe é imposto.
O dito preceito não denega à parte qualquer direito.
É que o direito a que certa causa seja julgada está sujeito a diversas regras, entra as quais avulta, no nosso direito processual, o princípio dispositivo, segundo o qual «as partes dispõem do processo, como da relação jurídica material. O processo é coisa ou negócio das partes (concepção privatística, contratualista ou quase-contratualista do processo). É uma luta, em duelo entre as partes, que apenas tem de decorrer segundo certas normas. O juiz arbitra a pugna, controlando a observância dessas normas e assinalando e proclamando o resultado
(concepção duelística ou 'guerresca' do processo). Donde a inércia, inactividade ou passividade do juiz, em contraste com a actividade das partes. Donde também que a sentença procure e declare a verdade formal (intra-processual) e não a verdade material (extra-processual)» - Manuel Andrade, Noções Elementares, 1979, pág.374.
Improcede, assim, também a arguição de inconstitucionalidade'. (...)
O autor interpôs recurso deste acordão para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro , e delimitou-lhe o objecto na norma do artigo 254º, nº 3, do Código de Processo Civil, que confrontou com o artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ex vi do artigo 16º da constituição da República. Em alegações, concluiu assim:
' A) O artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, vigente no nosso Direito 'ex vi' do artº 16º da CRP, situa os Direitos Fundamentais num contexto mais vasto do que o da própria Constituição, como parte essencial da ideia do Direito da Ordem Jurídica Portuguesa;
B) Consagra esse artigo 10º o Direito à Justiça, corolário da conjugação do Direito ao Tribunal e do Direito à Protecção Jurídica.
C) Para o entendimento desse Direito à Justiça é fundamental, não só o facto da sua atribuição, mas também os termos em que é dado ao cidadão dele efectivamente usufruir;
D) A efectivação do Direito à Justiça impõe que as notificações aos advogados sejam remetidas para o seu efectivo escritório, e não para o que constar dos autos;
E) O douto Acórdão recorrido interpretou o artigo 254º, nº 3, do Código de Processo Civil no sentido de considerar-se feita a notificação nele prevista mesmo no caso de o mandatário forense provar que a carta não lhe chegou
às mãos, nem sequer chegou ao seu efectivo escritório;
f) Tal interpretação representa restrição inadmissível e não fundamentada na própria Constituição, do Direito à Justiça consignado no artigo
10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, violando também o artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, e invocando ainda o douto suprimento, deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma constante do nº 3º do artigo 254º do Código de Processo Civil, ou pelo menos da interpretação que a essa norma é dada pelo douto Acórdão recorrido'.(...)
II. 1. No Código de Processo Civil (redacção do Decreto-Lei nº
44129, de 28 de Dezembro de 1961), o artigo 254º, sob a epígrafe 'Formalidades', dispõe assim:
1. Os mandatários são notificados por carta registada, com aviso de recepção, dirigida para o seu escritório ou para o domicílio escolhido, mas também podem ser notificados pessoalmente pelos oficiais de diligências ou funcionários que os substituam, sempre que desse modo se consiga economia e não se prejudique a celeridade do processo, ou pelo escrivão, quando os encontre no edifício do tribunal.
2. A notificação considera-se feita no dia em que, no escritório ou no domicílio escolhido, foi assinado o aviso de recepção.
3. A notificação não deixa de produzir efeito pelo facto de os papéis serem devolvidos ou de o aviso de recepção não vir assinado ou datado, desde que a remessa tenha sido feita para o escritório do mandatário ou para o domicílio por ele escolhido; em qualquer desses casos, ou no de a carta não ter sido entregue no escritório ou no domicílio por ausência do destinatário, juntar-se-á ao processo o sobrescrito ou o aviso de recepção, considerando-se a notificação como efectuada no segundo dia posterior àquele em que a carta foi registada.
[O preceito foi alterado pelo Decreto-lei nº 329-A/95, de 12-12, o que aqui não releva: a velha fórmula foi a aplicada e, no essencial da questão, tão-pouco se distingue da nova fórmula].
É a norma transcrita do nº 3 que aqui se constitui em objecto do recurso. O recorrente confronta-a com o 'direito ao tribunal' e 'à protecção jurídica'. Se bem que aqui referido ao artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem. (ex vi do artigo 16º da Constituição), este direito tem consagração constitucional directa, pelo que a norma-parâmetro para o controlo de constitucionalidade é a do artigo 20º, nº 1, da Constituição [a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legitimos...].
2. Mas a norma do artigo 254º, nº 3, do Código de Processo Civil, com o sentido que lhe reconhece a concreta interpretação do Supremo Tribunal de Justiça, não é contrária ao artigo 20º da Constituição da República. Na verdade, segundo essa interpretação, existe um ónus de informação sobre o domicílio profissional que recai sobre os mandatários das partes, um ónus que, afinal, se radica no dever de colaboração com o Tribunal, numa certa dimensão do 'princípio dispositivo' e que é, também, em certo sentido, corolário da liberdade de escolha desse domicílio.
É claro que a norma do artigo 254, nº 3, do Código de Processo Civil, aqui em análise, garantindo a regularidade da remessa e a certeza sobre o endereço do escritório ou domicílio do mandatário - que, logicamente, há-de ser o endereço antes indicado ao Tribunal - não pode valer para os casos de extravio. A norma não pode valer, como é evidente, para o caso de o destinatário provar que não recebeu a carta porque se perdeu ou foi parar a outro sítio (cf., neste sentido, José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra 1945, pág. 730).
O princípio dispositivo, que é relevado no acordão do Supremo Tribunal de Justiça, não pode, com efeito, iludir a dimensão pública do processo e o seu relevo constitucional no plano da garantia de efectivação dos direitos. Um processo justo, mesmo quando é do processo civil que se trata, envolve a
'proibição da indefesa' (cf. acordão nº 271/95, do Tribunal Constitucional, D.R., II série de 21-O7-1995) e o funcionamento das regras do contraditório. Se a norma do artigo 254º, nº 3, valesse para o caso de extravio, seriam esses pressupostos a ser posto em causa.
Mas não é esse o caso. No caso, o não recebimento da notificação é imputado à inércia do mandatário da parte, que haveria de ter informado o tribunal da alteração do domicílio profissional, e não o fez. É este o quadro que conforma a concreta interpretação do artigo 254º, nº 3, do C.P.C., empreendida pelo acordão recorrido. Mas assim, nesse quadro, vale, sem limite, a argumentação do Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente, a que faz relevar as características do Processo Civil como um 'processo de partes' e o dever correspondente de colaboração delas. Por isso que o direito 'ao tribunal' e 'à protecção jurídica', consagrado no artigo 20º, nº 1, da Constituição da República, não está aí a ser violado.
III. Nestes termos, decide-se não julgar inconstitucional a norma do artigo 254º, nº 3, do Código de Processo Civil, e, assim, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Lisboa, 4 de Março de 1998 Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa