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Proc. nº 340/97
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O..., divorciado, gestor de empresas, residente em Matosinhos, propôs, em 11 de Fevereiro de 1993, acção declarativa ordinária, no Tribunal de Círculo de Anadia, contra AP..., S.A., com sede em Aguada de Baixo, em Águeda, pedindo que esta última fosse condenada a pagar ao autor a quantia de
174.000 contos, acrescida de juros, a título de retribuições referentes aos anos de 1989, 1990, 1991 e 1992, a ele devidas pelo desempenho do cargo de administrador delegado em empresas do grupo, nos termos de acordo oportunamente celebrado.
A acção foi contestada, foi proferido despacho saneador e organizados especificação e questionário.
Por sentença de 21 de Dezembro de 1994, foi a acção julgada improcedente e não provada.
Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação, mas, por acórdão de 15 de Março de 1996, a Relação de Coimbra negou provimento ao recurso.
O autor interpôs então recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo suscitado duas questões jurídicas nas alegações: a primeira dizia respeito à existência de uma aprovação tácita pela assembleia geral da sociedade antecessora da ré recorrida das remunerações estipuladas e das que foram efectivamente processadas e recebidas pelo mesmo autor nos anos de 1989 a 1992, na medida em que essas remunerações eram 'parte integrante através da votação dos respectivos Relatórios, balanço e contas e de que constavam o total das remunerações atribuídas aos seus corpos gerentes', a segunda era a da
'inadequação da sanção de nulidade à inobservância da norma do art. 399º, nº 1, do C.S.C. [Código das Sociedades Comerciais] pelo acordo que definia o vencimento do A. antes dele ser eleito Administrador-Delegado da «Cerâmica de Souselas, S.A.»' (a fls. 363).
No âmbito da segunda questão abordada nas alegações apresentadas no recurso de revista, o autor referiu-se à fundamentação da sentença de primeira instância e à decisão baseada no art. 294º do Código Civil, preceito que
'feriria de nulidade o negócio celebrado entre as partes e do qual resultou a fixação do vencimento do A. ora peticionado' (tal nulidade 'resultaria, para a sentença recorrida, do facto de a fixação do esquema remuneratório do A. contrariar, na forma como foi feito, os arts. 399º, 408º e 409º do CSC'). A este propósito afirmou que, não tendo a questão da nulidade sido levantada pelas partes, mas conhecida oficiosamente pelo Tribunal, nos termos do art. 286º do Código Civil, e não tendo as partes tido oportunidade de se pronunciarem sobre essa matéria, haveria uma inconstitucionalidade por violação do art. 20º da Constituição. E, notando que ele não suscitara a questão no recurso de apelação, o recorrente sustentou que o acórdão da Relação de Coimbra deveria ter conhecido
'da constitucionalidade da interpretação feita pelo Tribunal de 1ª instância
(Anadia) do art. 294º do Código Civil (art. 207º da CRP) e, declarando-a inconstitucional, determinar a nulidade do Acórdão em crise (al. d) nº 1 do art.
668º do CPC) com a consequente baixa do processo para ser elaborado novo Acórdão, em que a aplicação, ou não, do art. 294º do C. Civil só se verificasse após a notificação das partes, nomeadamente do Recorrente, para dizerem o que consi-derarem necessário em defesa dos seus interesses' (a fls. 369).
Através de acórdão de 19 de Abril de 1997 o Supremo Tribunal de Justiça negou a revista do autor sobre a questão de constitucionalidade suscitada nas alegações do recurso de revista pela primeira vez, aquele Alto Tribunal considerou que a mesma improcedia, não só porque as partes tinham tido oportunidade de discutir na primeira instância todas as questões de facto e de direito submetidas ao tribunal, mas em especial porque, no recurso de revista, estaria apenas em causa o acórdão da Relação de Coimbra proferido no recurso de apelação:
' Por isto, a questão de saber se às partes, nomeadamente ao autor, foi ou não dada a possibilidade de se pronunciarem acerca da falta ou nulidade da deliberação ou decisão a fixar as remunerações deste, nos termos do disposto no art. 399º, nº 1, do Cód. das Sociedades Comerciais, tem que se colocar com referência ao douto Acórdão sob recurso. Em relação à sentença a questão perdeu interesse efectivo, passou a ser meramente académica. Ora, também em relação ao douto Acórdão recorrido, as partes tiveram oportunidade de se pronunciar e, mais que isso, pronunciaram-se efectivamente em douto debate que teve lugar nas alegações escritas apresentadas na apelação. Por outras palavras: uma vez que a decisão de mérito da presente causa é a proferida pela Relação, após debate acerca da aplicabilidade e interpretação do preceituado nos arts. 399º, nº 1, do Cód. das Soc. Com., 294º e 286º do Cód. Civil, mostra-se assegurada a audição contraditória das partes.' (a fls. 415 dos autos)
Face a estas considerações, o Supremo considerou que, dado a questão de constitucionalidade ter uma função instrumental em relação à questão de mérito, estava ultrapassada a eventual interpretação inconstitucional perfilhada pela primeira instância.
Notificado deste acórdão, o autor interpôs recurso de constitucionalidade do mesmo, ao abrigo do art. 70º, nº 1, alínea b), da Lei Tribunal Constitucional. Identificou como decisão recorrida o acórdão do Supremo Tribunal, 'na parte em que decidiu «que a decisão de mérito da presente causa é a proferida pela Relação, após debate acerca da aplicabilidade e interpretação do preceituado nos arts. 399º, nº 1, do Cód. das Soc. Comerciais, 294º e 286º do Cód. Civil» mostrando-se assegurada a audição contraditória das partes»' (a fls.
431). Considera que, no acórdão recorrido, foram aplicadas, conjuntamente, as normas dos arts. 294º e 286º do Código Civil e que a questão de inconstitucionalidade do art. 286º do Código Civil, 'ao permitir que o Tribunal conheça oficiosamente da nulidade de um negócio jurídico sem que as partes sejam notificadas para dizerem, acerca da alegada nulidade, o que tiverem por conveniente, viola o art. 20º, nº 1, da Constituição da Rep. Portuguesa e o princípio do contraditório dele emergente (vide Acs. do T. Constitucional nº
222/90, 16º vol., págs. 635 e segs)'.
Este recurso foi admitido por despacho de fls. 434.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apresentaram alegações recorrente e recorrida.
O recorrente formulou as seguintes conclusões:
'A) Não tendo a questão da nulidade do contrato celebrado entre as partes e referente ao esquema remuneratório do Recorrente sido levantada foi a referida nulidade, oficiosamente, conhecida pelo Tribunal, nos termos do art. 294º do Cód. Civil sem que as partes fossem notificadas para dizerem, acerca da alegada nulidade, o que tivessem por conveniente; B) Ora, o art. 294º do Cód. Civil deverá ser analisado no que se refere à sua compatibilidade com o art. 20º, nº 1 da Constituição; C) «Já este Tribunal, no Acórdão nº 222/90 (Acórdão do Tribunal Constitucional,
16º vol., 1990, pp. 635 e segs.), teve oportunidade de se pronunciar sobre a relevância constitucional do princípio do contraditório em processo civil. Aí, após ponderar ser o texto constitucional omisso na enunciação de regras mais ou menos precisas por onde deva pautar-se a regulamentação legal do processo civil, acrescentou-se: Mas nem por isso deixam, quanto a ele, de poder e dever retirar-se da Constituição - e em particular do direito de acesso aos tribunais, nela em geral garantido - determinadas exigências, que hão-de reflectir-se em tal regulamentação ou com que esta haverá de harmonizar-se»; D) «Isto mesmo, de resto, já teve este Tribunal ocasião de reconhecê-lo - em jurisprudência em que justamente se pôs em relevo ser o respeito e a salvaguarda do 'princípio do contraditório' uma exigência comum para qualquer tipo de processo decorrente da garantia do artigo 20º, nº 2, da Constituição, e da noção de um due process of law, ínsita na própria ideia de Estado de direito democrático (v., além de outros, os Acórdãos nºs. 404/87, 85/88 e 396/89, no Diário da República, 2ª Série, de 22 de Dezembro de 1987, de 22 de Agosto de
1988 e de 14 de Setembro de 1989, respectivamente)» (Ac. do Trib. Const. nº
606/95- 2ª Sec. - in DR (II Série) nº 64 de 15/3/96); E) Resulta, assim, líquido para o Tribunal Constitucional verificar-se violação do art. 20º, nºs. 1 e 2, da CRP sempre que, nos pleitos submetidos a julgamento,
é violado o princípio do contraditório - «princípio básico do ordenamento adjectivo civil português» - não garantindo às partes - neste caso ao A. - «o exercício do contraditório», isto é a possibilidade, mediante prévia notificação, de alegar o que sobre o assunto entender ou tiver por conveniente em ordem à defesa dos seus interesses; F) Ao considerar normas imperativas os arts. 399º, 408º e 409º da CSC e, nesse entendimento e nos termos do art. 294º do Cód. Civil conhecer oficiosamente da nulidade do pactuado entre as partes sem lhes dar a possibilidade de dizerem o que tivessem por conveniente a sentença do Tribunal de Anadia tomou uma «decisão surpresa» na medida em que a questão da nulidade do pactuado não havia sido suscitada pelas mesmas partes; G) Ao conhecer oficiosamente da nulidade do pactuado entre A. e Ré (art. 294º do C. Civil) sem ouvir qualquer das partes, nomeadamente o A. e ora Recorrente, violou a sentença do Tribunal de Anadia o princípio basilar da contrariedade, sendo certo que a questão da nulidade do negócio por ele apreciada não foi levantada pelas partes nos articulados nem é uma mera questão de «indagação, interpretação e aplicação das regras de direito»; H) Na verdade só será constitucionalmente legítima a aplicação do art. 294º do C. Civil após prévia notificação das partes para dizerem o que tiverem por conveniente em defesa dos seus interesses, como, de resto, o nº 2 do art. 3º do CPC (Dec-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro) acabou por consagrar; I) Embora não tendo sido levantada no recurso para o Tribunal recorrido afigura-se clara a legalidade do levantamento da questão da constitucionalidade do art. 294º do C. Civil, na forma como foi aplicado, em recurso para esse Colendo Tribunal; J) Na verdade «nos pleitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela configurados (art. 207º da CRP), não se tratando, aqui, de mera questão académica sem reflexo na sentença do Tribunal da Anadia porquanto, não só o Trib. da Rel. de Coimbra deveria ter recusado a aplicação de norma inconstitucional, mas também, e conforme bem sublinha o douto Ac. do Trib. da Rel. de Coimbra, o Recorrente acabou por ficar diminuído na defesa dos seus direitos ao ser confrontado com uma «decisão-supresa» que não pode contestar; K) Em consequência devendo o STJ recusar-se a aplicar uma norma inconstitucional, a inconstitucionalidade poderá sempre constituir fundamento de recurso para o STJ; L) Em consequência deverá necessariamente: a) Não ser julgado inconstitucional o art. 294º do Cód. Civil desde que interpretado no sentido de que a decisão da questão da nulidade do negócio celebrado entre as partes está condicionada pela prévia audição dos interessados sobre a matéria; b) Ser concedido provimento ao recurso, determinando-se a reforma do Ac. impugnado, de harmonia com o presente juízo sobre a questão da constitucionalidade suscitada.' (a fls. 442 a 443 vº)
A recorrida, por seu turno, concluiu as suas alegações nos seguintes termos:
' 1) A fixação da remuneração do Recorrente, na parte em litígio não foi feita pelos órgãos competentes em manifesta violação do Artigo 399º do C.S.C.
2) Tal norma é imperativa.
3) A consequência da violação de normas imperativas, atendendo aos interesses em causa, como aliás, foi e bem referido nas instâncias, não pode deixar de ser a declaração de nulidade de tal negócio jurídico.
4) Ao Recorrente foi dada a possibilidade de se pronunciar, nas diversas instâncias, sobre tal nulidade, não o tendo feito.
5) A 1ª Instância limitou-se, e bem mais uma vez, a aplicar o Artigo 664º do C.P.C.
6) Tal poder em nada viola o disposto no Artigo 20º da C.R.P.
7) Devendo, assim, concluir-se pela inexistência de qualquer interpretação inconstitucional do Artigo 294º do C.C.' (a fls. 446 vº - 447 dos autos)
3. Foram corridos os vistos legais.
4. Concluso o processo ao relator para elaboração de memorando ou projecto de acórdão, afigurou-se ao mesmo relator que o Supremo Tribunal de Justiça não tinha aplicado a norma cuja inconstitucionalidade fora suscitada pelo recorrente com o sentido alegadamente inconstitucional.
Dado tratar-se de questão prévia não debatida pelas partes, convidou-as a pronunciarem-se sobre a mesma, no prazo de dez dias.
5. O recorrente, depois de transcrever uma passagem do acórdão recorrido relativa ao conhecimento oficioso de questões de direito pelo tribunal nos termos do art. 664º do Código de Processo Civil, sustentou, na sua resposta, que o disposto do art. 294º do Código Civil nunca teria autonomia, confundindo-se com qualquer pedido, nessa visão das coisas. Passou, depois, a criticar o entendimento seguido no acórdão recorrido, reiterando a posição de que havia sido tempestivamente suscitada nas alegações da revista esta questão de constitucionalidade, a qual não se revestiria de pura natureza académica:
' Na verdade ao apreciar o Ac. da Rel. de Coimbra deveria o S.T.J. verificar se aquele aplicou - como aplicou - o art. 294º do C. Civil e censurar a aplicação de uma norma inconstitucional nos termos do art. 207º da C.R.P. que proíbe tal prática [...]. Nem se diga, também, que o facto de a questão de fundo ter sido discutida nas alegações para o T.R.C. [Relação de Coimbra] resolve o problema ora levantado. Na verdade, as partes ficaram privadas de um nível de jurisdição com consequente dano para a defesa dos seus interesses, como é claro no que respeita ao ora recorrente.
[...] Em consequência e como resulta do exposto, foi, na verdade, aplicada no Ac. recorrido «a norma do art. 286º do C. Civil, conjugada com a do art. 294º do mesmo diploma legal, com o sentido interpretativo inconstitucional referido pelo recorrente».' (a fls. 456-457)
A sociedade recorrida, por seu turno, concordou com o ponto de vista aventado na exposição do relator, considerando que o Tribunal Constitucional não devia conhecer do recurso, pois que, tendo as instâncias decidido que a norma do art. 399º do Código das Sociedades Comerciais tem carácter imperativo, a violação dessa norma imperativa acarreta a nulidade do acto ou contrato, não se vendo como tal conclusão poderia colidir com o princípio do contraditório (a fls. 452-453).
III
6. Impõe-se, pois, começar por abordar a questão dos pressupostos do recurso de constitucionalidade, nomeadamente a questão de saber se o acórdão recorrido aplicou a norma com o sentido inconstitucional que lhe foi assacado pelo recorrente.
Dispõe o art. 286º do Código Civil, sob a epígrafe de 'nulidade':
' A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.'
Por seu turno, o art. 294º do mesmo diploma estatui, sob a epígrafe de 'negócios celebrados contra a lei':
' Os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.'
Sem pôr em dúvida a afirmação do recorrente de que o Tribunal de Círculo de Anadia considerou oficiosamente nulo o acordo remuneratório invocado pelo autor na causa e que a questão dessa nulidade não havia sido suscitada nos articulados e outras peças processuais das partes, a verdade é que ele não suscitou a eventual inconstitucionalidade do entendimento normativo dessas normas com preterição da audição prévia das partes da acção, tendo tido ocasião de discutir a tese de nulidade nas alegações da apelação.
Ora, tendo a Relação confirmado a sentença de primeira instância, o respectivo acórdão substituiu-se à sentença do Tribunal de Anadia,
'consumindo-a'.
Daí que, ao suscitar a questão da interpretação inconstitucional dessas normas pelo tribunal de primeira instância no recurso de revista, o recorrente haja procurado 'ressuscitar' um momento processual que passara já a não ter autonomia quanto à sua relevância processual.
O Supremo Tribunal de Justiça afastou essa questão de constitucionalidade, considerando que a mesma carecia de interesse relevante, por se ter tornado 'académica': tendo as partes debatido a questão jurídica da nulidade em dois graus de jurisdição (na apelação e na revista), não podia razoavelmente esperar-se que o Supremo fosse analisar uma omissão da primeira instância que, a ter sido relevante quanto à genese da sentença de primeira instância, deixara de o ser a partir do momento em que fora proferido o acórdão da Relação, após debate contraditório sobre a problemática do art. 294º do Código Civil.
Tem, assim, de concluir-se que o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou as normas conjugadas dos arts. 286º e 294º do Código Civil, com o sentido inconstitucional apontado pelo recorrente. Disse antes que, sendo a questão de constitucionalidade instrumental em relação à questão de mérito, não podia conhecer-se de uma questão de constitucionalidade meramente 'académica', pois já não subsistia no ordenamento jurídico a sentença de primeira instância que se achava consumida pelo acórdão da Relação.
7. Faltando o pressuposto da aplicação da norma, pelo acórdão recorrido, com o sentido inconstitucional invocado pelo recorrente - e que este acaba por não negar ter ocorrido, refugiando-se na questão da oportunidade ou tempestividade da suscitação da questão de inconstitucionalidade nas alegações do recurso de revista - não pode o Tribunal conhecer do presente recurso.
IV
8. Termos em que decide o Tribunal Constitucional não conhecer do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) unidades de conta.
Lisboa, 5 de Março de 1998 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa