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Processo nº 694/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- H..., identificado nos autos, foi, por decisão de 25 de Junho de 1993 do Comandante do Batalhão nº 4 da Guarda Fiscal, condenado pela prática da contra-ordenação prevista no artigo 35º, nº 1, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras (RJIFA), aprovado pelo Decreto-Lei nº 376-A/89, de
25 de Outubro, na coima de 600.000$00, bem como no pagamento de 2.000.000$00 face ao disposto o artigo 45º, nºs. 1, alíneas a) e b), e 2 do mesmo diploma.
Inconformado, recorreu para o Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto que, por sentença de 22 de Março de 1994, manteve a coima aplicada, nessa parte confirmando a decisão recorrida, concedendo no mais parcial provimento, na medida em que fixou em 1.000.000$00 a quantia a pagar nos termos daquele artigo 45º.
De novo inconformado, recorreu o interessado para o Tribunal Tributário de 2ª Instância o qual, por acórdão de 28 de Junho de 1995, negou provimento ao recurso, confirmando inteiramente o anteriormente decidido.
Após arguição de nulidade, relativa a alegada omissão de pronúncia, que seria indeferida por acórdão de 30 de Janeiro de 1996, interpôs o interessado recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com o objectivo - segundo aclaração obtida mediante a observância do disposto no artigo 75º-A deste texto legal - de ser apreciada pelo Tribunal Constitucional a constitucionalidade das normas do nº 1 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 503/85, de 30 de Dezembro, e do nº 2 do artigo 660º do Código de Processo Civil (CPC).
Resulta da conjugação do requerimento inicial de interposição do recurso e do que respondeu ao convite feito ao abrigo do artigo
75º-A, que o recorrente entende que a norma do nº 1 do citado artigo 15º, viola os artigos 168º, nº 1, alínea j) [terá querido escrever i)], 106º e 122º, nº 3, da Constituição da República (CR) na medida em que não houve respeito 'do princípio da reserva legislativa (inconstitucionalidade orgânica), nem do princípio da legalidade tributária (inconstitucionalidade material), nem do princípio da obrigatoriedade de publicidade dos actos legislativos genéricos
(ineficácia jurídica)'.
Acresce que, em seu entender, a interpretação feita pelo Tribunal recorrido da norma do nº 2 do artigo 660º do CPC colide com o disposto nos artigos 205º, nºs. 1 e 2, 206º e 208º da CR.
2.- Admitido o recurso, alegou oportunamente o recorrente, formulando a síntese conclusiva seguinte:
- O direito compensador incidente sobre as bananas é um imposto cuja taxa não foi fixada pelo legislador do Decreto-Lei nº 503/85, ficando o seu 'apuramento' dependente do poder regulamentar e administrativo, mediante a variável aleatória que era o preço de entrada, apurado em concurso público;
- A omissão de taxa explícita, com carácter genérico, e a falta de publicidade da mesma, inquinam o artigo 15º do Decreto-Lei nº 503/85 de inconstitucionalidade formal;
- São violados os artigos 106º e 122º da CR.
Por sua vez, o Senhor Procurador-Geral Adjunto advogando a improcedência do recurso, concluíu do seguinte modo as suas alegações:
'1º O direito de compensação devido pela importação de bananas, nos termos do artigo
15º do Decreto-Lei nº 503/85, de 30 de Dezembro - traduzido numa receita consistente na diferença entre o preço de referência e o preço de entrada daquele produto - estabelecido e cobrado com fins de direcção económica e de protecção da produção nacional, não constitui, de um ponto de vista jurídico-constitucional, um verdadeiro imposto, a que se deva aplicar o bloco normativo integrado pelos artigos 106º e seguintes da Constituição da República Portuguesa.
2º Tendo o Decreto-Lei nº 503/85 sido editado ao abrigo da autorização legislativa outorgada pelas alíneas b) e f) do artigo 30º da Lei nº 2-B/85, de 28 de Fevereiro - e contendo tal autorização, quando complementada e integrada com os instrumentos de direito comunitário, os requisitos mínimos essenciais de qualquer lei delegante - não padece de inconstitucionalidade orgânica a norma , constante do artigo 15º, enquanto prevê o estabelecimento e cobrança dos referidos 'diferenciais de preços'.
3º A própria natureza de tais 'diferenciais de preço' e a função por eles desempenhada - não especificamente tributária, mas de natureza macro-económica, visando a protecção e defesa da produção agrícola nacional - implicam o seu cálculo e cobrança segundo regras específicas, baseadas em variáveis económicas, sujeitas a frequente mutuação, inviabilizando o clássico estabelecimento de uma taxa fixa aplicável a determinada matéria colectável, precedentemente fixada.'
No mesmo sentido da improcedência se pronunciou o Representante da Fazenda Pública, que assim concluíu:
'1ª- O recorrente pretendia fazer entrar no consumo em Portugal mercadoria - bananas - sem pagar os direitos de compensação, que sabia serem devidos.
2ª- Do ponto de vista jurídico-constitucional, estes direitos não são tratados como impostos.
3ª- Mesmo, porém, que se tratasse de impostos, a verdade é que o Decreto-Lei nº 503/85, de 30 de Dezembro, e a Portaria nº 1242/92, de 31 de Dezembro, indicam, sem margem para dúvidas, os mecanismos de criação dos direitos compensadores e publicitam as taxas aplicáveis.
4ª- Resulta, assim, que os diplomas citados não enfermam de qualquer inconstitucionalidade.'
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1.- Delimitação do objecto do recurso.
Constitui objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 503/85 - diploma que estabelece uma organização nacional de mercado para a banana - que, inserida no Título VI, epigrafado de 'Regime de comércio externo', assim dispõe:
'1.- Sempre que o preço de entrada das bananas importadas se situar abaixo do preço de referência, será cobrado um direito de compensação igual à diferença entre os dois preços'.
É certo que, na sequência do despacho lavrado nos termos do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, o recorrente convocou igualmente a norma do nº
2 do artigo 660º do CPC (como tal não enunciada no originário requerimento de interposição do recurso), defendendo que a interpretação dela feita pelo Tribunal Tributário de 2ª Instância colide com o disposto nos artigos 205º, nºs.
1 e 2, e 206º e 208º da CR.
No entanto, nas alegações posteriormente apresentadas neste Tribunal, o recorrente silencia essa problemática, pelo que se entende que a 'abandonou' (suscitada, de resto, vaga e inconclusivamente tudo leva a crer que foi deixada 'cair' no quadro alegatório).
Assim sendo, circunscreve-se o objecto do recurso nos termos já explanados.
2.- Da fundamentação.
2.1.- Sustenta o recorrente que o 'direito de compensação' previsto no nº 1 do artigo 15º transcrito, representando a diferença entre o 'preço de referência' e o 'preço de entrada' das bananas importadas - tendo por fim, como se colhe do nº 1 do artigo 14º, evitar perturbações graves no escoamento da produção nacional - se configura como um verdadeiro imposto.
Sendo o 'preço de entrada' uma variável correspondente ao preço CIF, adicionado das despesas de cais, direitos aduaneiros e outras imposições cobradas à entrada e sendo o 'preço de referência' fixado periodicamente por via de portaria, a determinação do quantum da taxa do direito compensador, à falta de critério legal, é, por natureza, variável, procedendo a Administração - sempre na tese do recorrente - no aproveitamento do vazio legislativo, à atribuição das licenças de importação aos importadores que ofereçam o preço CIF e as despesas de cais mais baixas, de modo a ampliar o diferencial entre os dois preços - de entrada e de referência - deste modo obtendo maior imposto, como lhe chama.
Nesta perspectiva, a norma em causa seria materialmente inconstitucional por violar o princípio da legalidade tributária, segundo o qual
'os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes', tal como plasmado se encontra no nº 2 do artigo 106º da CR, a que hoje corresponde o nº 2 do artigo
103º, do mesmo passo que afrontaria não só o disposto no artigo 122º do mesmo texto (actual artigo 119º) como também a reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, gerando, assim inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo 168º, nº 1, alínea i), da CR - hoje, artigo 165º
- qualificada de formal nas alegações apresentadas.
2.2.- A argumentação do recorrente assenta, como se viu, no pressuposto de que se está, in casu, perante um verdadeiro imposto, o que, no entanto, e no mínimo, é altamente controverso.
Com efeito, antes se afigura encontrarmo-nos perante uma norma de direcção económica e de protecção da produção nacional que não se recorta como de natureza tributária e, por isso, não está sujeita ao princípio da legalidade acolhido constitucionalmente no nº 2 do artigo 106º da Lei Fundamental, hoje correspondente ao nº 2 do artigo 103º (cfr., a este respeito, para situações paralelas, os acórdãos nºs 7/84 - 'diferenciais' dos preços de cereais - e 70/92
- direitos niveladores - publicados no Diário da República, II Série, de 3 de Maio de 1984 e 18 de Agosto de 1992, respectivamente).
2.3.- Mas ainda que de um imposto se tratasse, não haveria violação da Constituição, seja do disposto no seu artigo 106º (hoje 103º), nº 2, seja no artigo 122º (hoje 119º).
Decerto que, nessa orientação, por exigência constitucional, a lei deve fixar os elementos constitutivos essenciais da obrigação de imposto, de forma a tutelar os direitos e garantias dos contribuintes.
Porém, como se observou no acórdão nº 229/97, publicado no Diário da República, II Série, de 30 de Junho de 1997 - que recaíu sobre situação semelhante - tal exigência não implica que do preceito legal tenha de resultar directamente o valor da prestação que cada contribuinte deve pagar por força da aplicação da norma da incidência. 'O valor exacto da prestação a favor do Estado há-de resultar da aplicação de um critério pré-fixado (a taxa do imposto) referido a um factor variável (base tributável), sem que tal mecanismo de apuramento do quantum do imposto represente uma violação de princípio da tipicidade tributária'.
Assim, existem várias modalidades de taxas que, em função da sua aplicação a factores mais ou menos variáveis, levam à determinação do montante que o contribuinte terá de entregar ao Estado. O critério a utilizar tem de estar generica e abstractamente previsto na lei; os valores ou variáveis a que se aplicam, em concreto, tais critérios, dos quais resultará o montante específico da prestação devida, já não estarão - nem podiam estar, por natureza
- sujeitos ao princípio da legalidade.
Aquele critério - que a lei tem de definir - implica naturalmente um elemento fixo, o qual assume normalmente a forma de uma taxa, que se reporta seja ao valor dos bens, na forma de uma percentagem (impostos ad valorem), seja, por exemplo, à quantidade, peso, volume, etc., dos mesmos
(tributação específica).
2.4.- Ora, volvendo à situação concreta, não lhe falta esse elemento fixo, ainda que não expresso, como é mais corrente, na forma de uma taxa: ele reside, antes, na fixação de um preço de referência.
Como se observou no citado acórdão nº 229/97, '[...] a lei prevê o critério pelo qual se determina o montante a entregar ao Estado por força da cobrança de direitos compensadores na importação de bananas. O valor a pagar resultará da diferença entre o preço de referência (fixado por portaria) e o preço de entrada (fixado nos termos do nº 2 do artigo 15º do Decreto-Lei nº
503/85), sempre que este for inferior àquele.
Este critério está generica e abstractamente consagrado na lei
(artigo 15º, nº 1, do Decreto-Lei nº 503/85), tendo sido objecto da devida publicidade (o referido diploma foi publicado no DR., I Série A, de 30 de Dezembro de 1995).'
Deste modo, o que resulta do funcionamento das leis de mercado não é o elemento quantitativo fixo a partir do qual se calcula a importância a pagar pelo importador, mas o valor naturalmente variável que é o preço da entrada. Suposto que se esteja perante um imposto, a fixidez daquele primeiro elemento realiza o princípio da legalidade tributária; a consideração do segundo transporta-nos já para o momento de concretização do valor da obrigação tributária. O que não violaria o disposto seja no nº 2 do artigo 106º da Constituição (hoje nº 2 do artigo 103º), seja no artigo 122º, hoje 119º, do mesmo texto, referente à publicidade dos actos.
2.5.- Por outro lado, importa salientar que o Decreto-Lei nº 503/85 foi editado sob a expressa invocação das alíneas b) e f) do artigo 30º da Lei nº
2-B/85, de 28 de Fevereiro, a primeira concedendo ao Governo autorização para
'alterar a estrutura das pautas dos direitos de importação' e a segundo para
'adaptar a legislação aduaneira às técnicas implementadas na União Aduaneira do Mercado Comum, tendo em vista a próxima adesão à CEE'.
Assim, não sendo um modelo rigoroso da estatuição constitucionalmente imposta - como já foi anteriormente observado, caso do acórdão nº 70/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de
1992 - o certo é que a lei delegante mostra-se suficientemente explícita na caracterização do objecto que pretende prosseguir com a autorização legislativa, bem como na delimitação da sua extensão e sentido, visando a adaptação da legislação aduaneira às técnicas implementadas na União Aduaneira, com vista à adesão às Comunidades, o que faz por via indirecta e mediata através da remissão para a realidade prática e jurídico-normativa que esta União representa, ou seja, para a regulamentação decorrente do Tratado de Adesão e para a respectiva legislação comunitária, propriamente dita.
Interpretada deste modo - e completada pelos instrumentos de direito comunitário que admitem a 'transição por etapas' no
âmbito do mercado de produtos agrícolas, incluindo o sector das bananas (artigos
233º e 259º do Acto de Adesão) - a Lei nº 2-B/85 configura-se como instrumento legitimador adequado e suficiente para a edição do Decreto-Lei nº 503/83, não se surpreendendo, assim, o suposto vício de inconstitucionalidade deste último diploma.
Razões que ditam a improcedência do presente recurso, sem necessidade de maiores considerações.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 5 de Março de 1998
Ass) Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Maria da Assunção Esteves
Vitor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa