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Processo nº 443/96 Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. M... e E... foram condenados, como autores do crime previsto e punível pelo artigo 28º, nº 2, do Decreto-Lei nº 430/83, de 13 de Dezembro, cada um deles, na pena de 9 anos de prisão e na de multa de 250.000$00, ele, e de
300.000$00, ela.
Inconformados, recorreram, primeiro, para a Relação e, de seguida, para o Supremo Tribunal de Justiça, mas sem êxito.
2. Do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (de 18 de Maio de 1995) recorreram eles para este Tribunal ao abrigo das alíneas b) e g) do nº 1 do artigo 70º da respectiva lei, para
apreciação da constitucionalidade dos artigos 469º e 665º do Código de Processo Penal de 1929.
Neste Tribunal, o recorrente G... formulou as seguintes conclusões:
1ª. O acórdão recorrido , proferido em 18/05/95, pelo Supremo Tribunal de Justiça, constante de fls. 4968 a 5020, não respeitou, apesar de o ter citado, o acórdão nº 401/91, de 30/10, do Plenário do Tribunal Constitucional, que declarou a 'inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do STJ, de 29 de Junho de 1934, por violação do disposto no artigo 32º, nº 1, da Constituição'.
2ª. O Tribunal da Relação de Lisboa, nos presentes autos, não procedeu, em rigor, ao reexame da prova pelo que não existiu, a nível de recurso, um verdadeiro julgamento da matéria de facto.
3ª. Aliás, o acórdão da mesma Relação, neste processo, traduziu-se, no tocante aos factos considerados provados, a uma fotomontagem do acórdão da 1ª instância, como acima se explicitou.
4ª. Não se respeitou o princípio do duplo grau de jurisdição, no que concerne à matéria fáctica.
5ª. Não pode haver garantias de defesa em processo criminal se as respostas aos quesitos não se mostrarem fundamentadas.
6ª. Assim, o aludido artigo 469º do Código de Processo Penal, na redacção do Dec. nº 20 147, de 11/08/1931, é materialmente inconstitucional, porque fere o princípio da necessidade de motivação das respostas aos quesitos e, logo, pode conduzir como no presente caso aconteceu, ao desvirtuamento e ao erro grosseiro na matéria de facto dada como provada.
7ª. A falta de motivação das respostas aos quesitos representa um clamoroso défice, altamente significativo e gravoso, das garantias de defesa do réu, no processo de querela.
8ª. O acórdão recorrido do STJ, como o da Relação que o antecedeu, aplicaram inconstitucionalmente as normas dos artigos 469º e 665º, ambos do Código de Processo Penal de 1929, e violaram o disposto nos artigos 16º, nº 2, 32º, nº 1,
207º e 208º, nº 1, da Constituição da
República Portuguesa, e os artigos 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 14º, nºs 2, 3 e 5, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aprovado para ratificação, sem reservas, pela Lei nº 29/78, de 12/06, e artigo 6º, nºs 2 e 3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada para ratificação pela Lei nº 65/78, de 13/10. Por todo o exposto, devem ser declaradas as inconstitucionalidades normativas dos citados artigos 469º e 665º, com as consequências processuais daí legalmente decorrentes.
A recorrente E..., no que aqui importa, concluiu as suas alegações como segue:
10º. A fundamentação das respostas aos quesitos, em processo de querela, apresenta-se como a forma mínima e essencial de garantir o duplo grau de jurisdição em matéria de facto - de garantir o direito ao recurso;
11º. A Lei Fundamental também consagra o princípio fundamental da plenitude das garantias de defesa no processo criminal (art. 32º, nº 1, da Constituição);
12º. As disposições conjugadas dos arts. 210º, nº 1, e 32º, nº 1, da CRP e a sua leitura à luz do Estado de Direito democrático (artigo 2º) impõem que as respostas aos quesitos em processo de querela sejam fundamentadas;
13º. A norma do art. 469º do CPP de 1929 ofende as normas e princípios constitucionais, violando os arts. 210º, nº 1, e 32º, nº 1, da CRP;
14º. O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa entendeu ser de aplicar o CPP de
1929 [...], tendo como limites na decisão a proferir os limites estabelecidos pelo art. 665º do CPP (de 1929);
15º. Quando tal norma já havia sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão 401/91, publicado no DR, I-A, em 08/01/92;
21º. Não havendo motivação das respostas aos quesitos não há uma verdadeira garantia do direito ao recurso, violando-se o nº 1 do art. 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (ex vi do nº 2 do art. 16º da CRP), o nº 5 do art. 14º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 16 de Dezembro de 1966 (ratificado, sem reservas, pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho), o art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (ratificada pela Lei nº
65/78, de 13 de Outubro);
22º. O que se traduz em inconstitucionalidade material;
23º. Face à violação do princípio do duplo grau de jurisdição;
24º. O acórdão recorrido aplicou, inconstitucionalmente, os arts. 469º e 665º do CPP de 1929, por violação do disposto nos arts. 16º, nº 2, 32º, nº 1, 207º,
208º, nº 1 e 210º, nº 1, da CRP;
26º. Pelo que devem ser declaradas as inconstitucionalidades ora suscitadas, com as consequências daí decorrentes.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal formulou as seguintes conclusões:
1º. O Supremo Tribunal de Justiça, na decisão recorrida, não aplicou à delimitação dos poderes cognitivos da Relação a norma constante do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, com a sobreposição interpretativa restritiva do assento de 29 de Junho de 1934, pelo que não ocorre qualquer colisão entre o decidido e o teor do acórdão nº. 401/91 deste Tribunal Constitucional, indicado pelos recorridos como 'acórdão fundamento' do recurso que fundaram na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, pelo que dele se não deverá tomar conhecimento.
2º. A recorrente E... não suscitou, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade normativa do artigo 469º do Código de Processo Penal 1929, pelo que não deverá conhecer-se do recurso por ela interposto com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
3º. Deverá ser julgado improcedente o recurso interposto pelo arguido M..., com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, por a norma constante do artigo 469º do Código de Processo Penal de 1929 não violar qualquer preceito ou princípio constitucional.
Ouvidos sobre as questões prévias suscitadas pelo Ministério Público, vieram os recorrentes dizer que este
Tribunal deve conhecer ambos os recursos, e 'em toda a sua extensão'; ou seja, deve conhecer da 'inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 469º e
665º, ambos do Código de Processo Penal de 1929 (este último com e sem a interpretação que lhe foi dada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça, de
29 de Junho de 1934)'.
É que - disse o recorrente G... -, 'sobre a inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, com e sem a interpretação que lhe foi dada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, além dos acórdãos invocados pelo recorrente, a fls. 5.047 a
5.049, invoca ainda os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 150/94, 430/94, de 24 de Maio de 1994, publicado no Diário da República, II série, nº 8, de
10.01.95, e 680/95, os dois primeiros também anteriores à prolação do acórdão recorrido, de 18.05.95'.
De sua parte, a recorrente E... ponderou que, nas suas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça (ponto III), disse que 'a norma do artigo
469º do CPP de 1929, integrado no conjunto do sistema processual penal, ao regular o instituto da quesitação, excluindo a motivação das respostas (na
interpretação jurisprudencial dominante) ofende os princípios constitucionais, nomeadamente os arts. 210º, nº 1, e 32º, nº 1, da CRP'. E, visando o artigo
665º, acrescentou que, 'com, ou sem, a interpretação do assento de 29 de Junho de 1934, colide com o decidido e nomeadamente o teor do acórdão nº 401/91 deste Tribunal Constitucional'.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. Questões prévias:
4. 1. Recurso de G...:
Este recurso vem interposto ao abrigo das alíneas b) e g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e com ele pretende-se que este Tribunal aprecie, sub specie constitutionis, as normas dos artigos 469º e 665º do Código de Processo Penal de 1929.
Pretende o Ministério Público que se não tome conhecimento do recurso quanto ao artigo 665º, uma vez que - contrariamente ao que é imposto pela alínea g) do nº 1 do mesmo artigo 70º - o Supremo Tribunal de Justiça não o aplicou com a sobreposição interpretativa do assento de 29 de Junho de 1934, mas na sua singeleza (isto é, sem a sobreposição interpretativa do assento), ao passo que o acórdão nº 401/91, que o recorrente indica como a decisão anterior deste Tribunal que o aresto recorrido contraria, o que declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, foi a norma assim recomposta, e não o artigo 665º na sua singeleza.
Vejamos:
O acórdão recorrido aplicou, de facto, o referido artigo 665º sem a sobreposição interpretativa restritiva do assento de 29 de Junho de 1934. Lê-se nele, com efeito: As Relações conhecerão de facto e de direito (CPP29-665). Esta norma apenas foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do art.
32º-1 ConstRP, na interpretação que lhe foi dada pelo assento de 1934.06.29 (ac. TC 401/91 in DR Is.-A, de 92.01.08, p.118). O preceito em si, sem essa interpretação restritiva, respeita esse direito a um duplo grau de jurisdição
(garantia constitucional do arguido), não é inconstitucional. In casu, a Relação de Lisboa conheceu da matéria de facto sem qualquer limite - os vícios que os recorrentes apontavam ao acórdão do facto, e que agora reeditaram, foram apreciados de modo claro, exaustivo e pormenorizado.
Respeitado na lei (CPP29-665) o duplo grau de jurisdição, respeitado ainda o mesmo princípio pelo Tribunal da Relação no efectivo e concreto exercício da administração da justiça.
Assim sendo, só poderá conhecer-se da questão da constitucionalidade do artigo 665º sem a sobreposição do assento de 1934, se, em cumprimento do preceituado no artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, o recorrente, tiver, de facto, indicado um acórdão que, realmente, tenha julgado incompatível com a Constituição aquele artigo 665º sem aquela sobreposição interpretativa, como decisão que, com anterioridade, julgou inconstitucional aquela norma.
É que, aos recorrentes cumpre, inter alia, indicar, de forma clara e perceptível, 'a norma cuja inconstitucionalidade [...] se pretende que o Tribunal aprecie'; e cumpre, bem assim, identificar 'a decisão do Tribunal Constitucional que, com anterioridade, julgou inconstitucional [...] a norma aplicada pela decisão recorrida' (cf. artigo 75º-A, nºs 1 e 3, da Lei do Tribunal Constitucional).
O cumprimento destes ónus não representa simples observância do dever de colaboração das partes com o Tribunal; constitui, antes, o preenchimento de requisitos formais
essenciais ao conhecimento do objecto do recurso (cf., entre outros, o acórdão nº 462/94, publicado no Diário da República, II série, de 21 de Novembro de
1994).
Por isso, se os recorrentes indicarem como acórdão-fundamento um aresto que julgou inconstitucional norma diversa da que foi aplicada pela decisão recorrida, não se verificam os pressupostos do recurso. Num tal caso, entre a decisão impugnada e aquele acórdão, não existe colisão; e, então, não há motivo para que o Tribunal intervenha, pois não se torna necessário fazer respeitar a sua jurisprudência anterior, que é a razão de ser do recurso da alínea g) do nº 1 do artigo 70º.
Ora bem: o recorrente, no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, disse que o Supremo Tribunal de Justiça 'aplic(ou) a norma do falado artigo 665º, apesar de já anteriormente ter sido julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional, designadamente nos seus acórdãos 219/89, de 15/2, 340/90, de 19/12, e 430/94, de 24/5'. Nesse requerimento, não esclareceu, porém, se tais julgamentos anteriores de inconstitucionalidade tinham atingido o artigo 665º com a sobreposição interpretativa (restritiva) do assento de 29 de Junho de 1934, se sem ela.
No entanto, num dos arestos que identificou como fundamento (recte, no acórdão nº 430/94) - e, de entre os indicados, só nesse -, o Tribunal havia julgado inconstitucional o dito artigo 665º, mesmo sem a sobreposição interpretativa do assento.
Dir-se-á, então, que o recorrente pretende que o Tribunal reafirme o julgamento de ilegitimidade constitucional do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 sem a sobreposição interpretativa do assento, fundando a sua pretensão no facto de, não obstante no acórdão nº 430/94 este Tribunal ter julgado inconstitucional tal normativo mesmo sem qualquer interpretação restritiva, o mesmo ter sido aplicado pela decisão recorrida.
Nas alegações apresentadas neste Tribunal, o recorrente abandonou, porém, a referência ao acórdão nº 430/94 que invocara no requerimento, e identificou o acórdão nº 401/91 (publicado no Diário da República, I série-A, de
8 de Janeiro de 1992) - que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça, de
29 de Junho de 1934 - como a
decisão anterior deste Tribunal com a qual o acórdão recorrido entrou em rota de colisão.
Ora, tendo o acórdão recorrido aplicado o artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 sem a sobreposição interpretativa do assento de 29 de Junho de 1934, é óbvio que ele não aplicou a norma que, anteriormente, o acórdão nº 401/91 declarou inconstitucional, com força obrigatória geral.
Por isso, se, para o efeito de se decidir da verificação dos pressupostos do recurso da alínea g) do nº 1 do artigo 70º, dever ter-se por relevante - não a indicação fornecida no requerimento de interposição do recurso
- sim o que, a tal propósito, o recorrente disse nas alegações que aqui apresentou, então, a conclusão a extrair é a de que, no caso, tais pressupostos se não verificam.
Se estivesse em causa o objecto do recurso, relevante era, seguramente, o que o recorrente disse nas conclusões das alegações, uma vez que ele pode, aí, restringir tal objecto (cf. artigo 684º, nº 3, do Código de Processo Civil).
No caso, porém, não é disso que se trata: objecto do recurso, fundado-se este na alínea g) do nº 1 do artigo 70º, era - e só podia ser - o artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 tal como foi aplicado pelo acórdão recorrido - ou seja, sem a sobreposição interpretativa do assento de 29 de Junho de 1934. E esse continua a ser o seu objecto. Apenas aconteceu que o recorrente, erradamente, passou a indicar, como decisão anterior que julgou inconstitucional aquele artigo 665º sem o assento, o acórdão nº 401/91 deste Tribunal, em vez do nº 430/94, que indicara no requerimento inicial.
Esta errada identificação do acórdão-fundamento, feita nas alegações, é, porém, de considerar irrelevante para o efeito de se ter por cumprido o ónus imposto pelo artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional. O que importa, com efeito, é que o recorrente tenha identificado correctamente esse acórdão no requerimento de interposição de recurso ou, ao menos, na resposta ao convite que, acaso, lhe seja feito para cumprir tal normativo, maxime, para indicar a decisão do Tribunal que, com anterioridade, julgou inconstitucional a norma aplicada pela decisão recorrida.
Acontece, porém, que no caso, como se viu, o recorrente indicou, no requerimento de interposição de recurso, três acórdãos (os nºs 219/89, 340/90 e
430/94) como decisões que, anteriormente, tinham julgado inconstitucional a norma aplicada pela decisão recorrida (ou seja, o artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 sem a sobreposição interpretativa do assento de 29 de Junho de 1934). Simplesmente, como também já se anotou, desses três arestos, apenas o acórdão nº 430/94 julgou inconstitucional tal norma (a norma do artigo
665º sem o assento), pois que os outros dois o que julgaram incompatível com a Constituição foi aquele artigo 665º com a sobreposição interpretativa
(restritiva) do assento.
No caso dos autos, a indicação de mais que um acórdão como acórdão-fundamento, embora não podendo ser havida como inteiramente correcta, é, no entanto, de considerar satisfatória para o efeito de se ter por cumprido o
ónus (imposto pelo nº 3 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional) de identificar a decisão que, com anterioridade, julgou inconstitucional a norma aplicada pelo aresto de que se recorre. E isso porque, como se disse, dos três arestos indicados, apenas um deles (no caso, o acórdão nº 430/94) julgou inconstitucional a norma tal como fora aplicada pela decisão recorrida, não havendo, assim, lugar a dúvidas sobre qual era, realmente, o
acórdão anterior do Tribunal que o aresto sob recurso contrariava.
Há, no entanto, ainda um outro aspecto a considerar, a saber: o recorrente, depois de ter apresentado o requerimento a interpor recurso para este Tribunal, em que, entre outros, indicou o acórdão nº 430/94, veio aos autos, estando ainda a correr o prazo para a interposição de recurso, com novo requerimento, a dizer o seguinte: 'vem ainda especificar - quanto à inconstitucionalidade do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, cuja norma o Tribunal da Relação de Lisboa e esse Supremo, no acórdão recorrido, aplicaram, apesar de já anteriormente ter sido julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional, designadamente nos acórdãos indicados no seu requerimento de interposição de recurso - invocar, outrossim, expressamente, o acórdão nº 401/91, de 30/10, do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República nº 6, série I-A, de 8-1-92 [...]'. E acrescentou: 'E, assim, por ainda estar dentro do prazo de interposição de recurso, reitera-o expressamente com mais esta especificação do citado acórdão nº 401/91, do Tribunal Constitucional, nomeadamente à luz do espírito que promana do disposto no art. 75º-A, nº 5, da Lei nº 28/82, de 15/11, aditado pela Lei nº 85/89'.
Apesar desta errada 'especificação', feita ex novo pelo recorrente, o Tribunal entende que, no caso, se verifica o pressuposto do recurso da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção introduzida pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, consistente na identificação da
'decisão do Tribunal Constitucional [...] que, com anterioridade, julgou inconstitucional [...] a norma aplicada pela decisão recorrida' (no caso, repete-se, a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, sem a sobreposição interpretativa do assento de 29 de Junho de 1934).
É que o recorrente, com este novo requerimento, não pretendeu substituir o anterior, mas apenas completá-lo, como bem decorre do facto de se remeter para 'os acórdãos indicados no seu requerimento de interposição de recurso', de dizer que vem 'invocar, outrossim, expressamente, o acórdão nº
401/91' e de afirmar tratar-se de 'mais esta especificação'.
Há, então, que concluir que deve conhecer-se do recurso, cujo objecto são as normas dos artigos 469º e 665º do Código de Processo Penal de
1929, este sem a sobreposição interpretativa do assento de 29 de Junho de 1934.
4.2. Recurso de E...:
Este recurso vem igualmente interposto ao abrigo das alíneas b) e g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e com ele de igual modo se pretende que este Tribunal aprecie, sub specie constitutionis, as normas dos artigos 469º e 665º do Código de Processo Penal de 1929.
A recorrente indica também a alínea h), mas fá-lo fora de todo o propósito, pois que não indica qualquer decisão da Comissão Constitucional que tenha julgado aquele artigo 665º ferido de ilegitimidade constitucional.
Pretende o Ministério Público que o Tribunal não tome conhecimento do recurso, uma vez que - diz - a recorrente não suscitou a inconstitucionalidade do artigo 469º durante o processo - o que era necessário ter feito, face ao que preceitua a alínea b) do nº 1 do citado artigo 70º; e, quanto ao artigo 665º, contrariamente ao é imposto pela alínea g) do nº 1 do mesmo artigo 70º, o Supremo Tribunal de Justiça não o aplicou com a sobreposição interpretativa do assento de 29 de Junho de 1934, mas na sua singeleza (isto é, sem a sobreposição interpretativa do assento), ao passo que o acórdão nº 401/91,
que ela indica como a decisão anterior deste Tribunal que o aresto recorrido contraria, o que declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, foi a norma assim recomposta, e não o artigo 665º na sua singeleza.
Pois bem: pese, embora, o facto de a conclusão F) das alegações, que então apresentou, não ser clara a tal respeito, há que concluir que a recorrente suscitou, durante o processo, a inconstitucionalidade do referido artigo 469º.
Na verdade, nas suas alegações, escreveu: a norma do art. 469º do CPP de 1929, integrada no conjunto do sistema processual penal, ao regular o instituto da quesitação, excluindo a motivação das respostas (na interpretação jurisprudencial dominante) ofende os princípios constitucionais, nomeadamente os artigos 210º, nº 1, e 32º,nº 1, da CRP.
Dizer isto é, seguramente, suscitar a inconstitucionalidade da norma do artigo 469º do Código de Processo Penal de 1929, interpretado em termos de excluir a fundamentação das respostas aos quesitos.
Como a questão de inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça; e é do acórdão proferido por este Supremo que agora se recorre, há que concluir que, na parte em que o recurso interposto se funda na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o pressuposto consistente na suscitação da inconstitucionalidade durante o processo se acha, no caso, verificado.
Já no que concerne ao artigo 665º do Código de Processo Penal de
1929, tem razão o Ministério Público, pois que, como atrás se viu, o acórdão recorrido, expressamente, afastou a aplicação de tal preceito, com a interpretação que lhe foi dada pelo assento de 29 de Junho de 1934.
Ora, o acórdão nº 401/91, indicado pela recorrente como sendo a decisão anterior deste Tribunal que julgou inconstitucional este artigo 665º, apenas o declarou tal com a sobreposição interpretativa do assento de 1934, não se tendo pronunciado sobre ele na dimensão com que foi aplicado pelo aresto de que se recorre - ou seja, sem o assento.
Por conseguinte, há que conhecer do recurso, mas apenas para apreciar a constitucionalidade do artigo 469º do
Código de Processo Penal de 1929, na interpretação atrás indicada, e não também a do artigo 665º do mesmo Código sem a sobreposição interpretativa do assento de
1934.
É que, quanto a este artigo 665º, faltam os respectivos pressupostos; ou seja: falta ter ele sido julgado inconstitucional pelo citado acórdão nº 401/91; ou, vistas as coisas sob outro ângulo: falta ter havido aplicação, pela decisão recorrida, da norma que o dito acórdão nº 401/91 deste Tribunal antes declarara inconstitucional, com força obrigatória geral.
5. As questões de constitucionalidade:
5. 1. Advertência prévia:
Os recorrentes, para sustentarem as inconstitucionalidades cuja existência pretendem ver reconhecida por este Tribunal, fazem apelo, não apenas a normas constitucionais, mas também a princípios jurídico-internacionais constantes da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
Vai aqui implícita a ideia de que, em matéria de direitos fundamentais (ou de direitos do homem), o controlo de constitucionalidade abrange a apreciação da conformidade das normas internas com princípios jurídico-internacionais recebidos in foro domestico - ou seja: que a competência deste Tribunal para um tal controlo inclui também essa faculdade de apreciação.
O Tribunal, à semelhança do que já fizera notar em anteriores ocasiões (cf., por exemplo, o acórdão nº 124/90, publicado no Diário da República, II série, de 8 de Fevereiro de 1991), não tem, porém, necessidade de se pronunciar sobre a justeza de uma tal impostação do problema.
É que, como então se mostrou, os princípios jurídico-internacionais invocados pelos recorrentes não dizem nada que já se não contenha nas normas ou princípios constitucionais pertinentes. Por isso mesmo, serão tais princípios jurídico-internacionais tomados em consideração 'enquanto elementos coadjuvantes da clarificação do sentido e alcance' das normas ou princípios constitucionais relevantes para a decisão das questões de constitucionalidade, e não 'como padrões autónomos de um juízo de constitucionalidade' (cf. o citado acórdão nº
124/90 e, bem assim, os acórdãos nºs 440/87,
99/88 e 149/88, publicados no Diário da República, II série, de 17 de Fevereiro de 1988, 22 de Agosto de 1988 e 17 de Setembro de 1988, respectivamente).
Há, então, que afrontar as questões de constitucionalidade atrás indicadas.
5. 2. A questão da constitucionalidade do artigo 469º:
O artigo 469º do Código de Processo Penal de 1929 - que preceitua que 'o tribunal colectivo responderá especificadamente a cada um dos quesitos, assinando todos os vogais, sem qualquer declaração' - sempre foi uniformemente interpretado pela jurisprudência, mesmo depois da reforma processual civil de
1961, no sentido de excluir a necessidade de fundamentação ou motivação das respostas aos quesitos sobre matéria de facto em processo penal.
Significa isto que não vingou na jurisprudência o entendimento da doutrina, que sustentava existir uma lacuna quanto a esta questão no ordenamento processual penal, que havia que preencher recorrendo ao artigo 653º, nº 2, do Código de
Processo Civil (reforma de 1961), que dispunha que, 'de entre os factos quesitados, o acórdão declarará quais o tribunal julga ou não julga provados e, quanto àqueles, especificará os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador' (cf. EDUARDO CORREIA, Les preuves en droit pénal portugais, in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XIV, páginas 31 e 32; FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, I, Coimbra, 1981, páginas 205 e 206; CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Criminal, página 54; e CASTRO E SOUSA, A Tramitação do Processo Penal, página 254).
Já no âmbito da actual Constituição, após a sua revisão em 1982, certa doutrina veio sustentar a inconstitucionalidade da dispensa de fundamentação das respostas aos quesitos em processo penal (cf. RODRIGO SANTIAGO, Sobre o dever de motivação das respostas aos quesitos em processo penal, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, II, páginas 481 e seguintes), mas a jurisprudência não acolheu tal ponto de vista (cf., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 e 29 de Fevereiro de 1984, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, nº 334, páginas 274 e 200, respectivamente).
O Tribunal Constitucional já por diversas vezes teve ocasião de apreciar, sub specie constitutionis, o referido artigo 469º, interpretado no sentido de excluir a necessidade de fundamentar as respostas aos quesitos em processo penal, e sempre concluiu, embora com vozes discordantes, pela sua não inconstitucionalidade (cf., para além do acórdão 124/90, atrás citado, entre outros, os acórdãos nºs 55/85, 61/88, 207/88, 304/88 e 219/89, publicados no Diário da República, II série, de 28 de Maio de 1985, 20 de Agosto de 1988, 3 de Janeiro, 14 de Abril e 30 de Junho, de 1989, respectivamente).
Não há razões para alterar uma tão reiterada jurisprudência que, por isso, aqui se adoptará, remetendo-se para a argumentação então desenvolvida.
Agora, sublinhar-se-á apenas que tal norma não viola o artigo 208º, nº 1, da Constituição, que, ao prescrever que 'as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei', devolveu para o legislador a tarefa da sua concretização - o encargo de definir o âmbito e a extensão de um tal dever de fundamentação.
O legislador, não ficando de mãos inteiramente livres para delimitar o âmbito dessa obrigatoriedade de fundamentação das decisões dos tribunais, goza, no entanto, de uma razoável margem de liberdade constitutiva. Como se sublinhou no mencionado acórdão nº 61/88, essa obrigação, imposta ao legislador pela mencionada cláusula constitucional, sob pena de se subverter o próprio sentido desta - que é, intencionalmente, o de uma 'incumbência' ao legislador - respeita 'a um núcleo essencial mínimo de decisões judiciais'.
O dever de fundamentar as respostas aos quesitos em processo penal, entendido 'como algo em absoluto infungível e insuprível, de um ponto de vista constitucional' (cf. acórdão nº 61/88), também não pode fazer-se decorrer do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição, maxime na sua dimensão de garantia de direito ao recurso contra uma sentença penal condenatória (o direito a um duplo grau de jurisdição), nem tão-pouco da ideia de Estado de Direito democrático.
Na verdade - como desenvolvidamente se mostrou no citado acórdão nº
61/88 e se repetiu no também referido acórdão nº 124/90, para os quais aqui se remete -, o ordenamento
processual penal de 1929 contém mecanismos que, apesar de tudo, permitem suprir, com um mínimo de consistência, as funções que a motivação está chamada a desempenhar. E a supri-las, por forma a que o processo penal continue a ser um due process of law. Essas funções, como é sabido, são duas: uma, de ordem endoprocessual, que visa, essencialmente, impor ao juiz o controlo crítico da lógica da decisão; permitir às partes recorrer da decisão com perfeito conhecimento de causa; e possibilitar ao tribunal de recurso a formação do seu juízo de concordância ou de discordância com a decisão recorrida, com razoável segurança. A outra função, de ordem extraprocessual, pretende, acima de tudo, tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação fáctica, lógica e jurídica da decisão, com vista a garantir a transparência do processo e a da própria decisão.
O artigo 469º do Código de Processo Penal de 1929, com o sentido que a jurisprudência dele tem extraído, que é aquele com que foi aplicado pelo acórdão recorrido, não é, pois, inconstitucional.
5. 4. A questão da constitucionalidade do artigo 665º:
Este Tribunal, na decisão invocada como fundamento pelo recorrente G...(ou seja, no acórdão nº 430/94,
tirado em plenário e publicado no Diário da República, II série, de 10 de Janeiro de 1995), embora tão-só por maioria, julgou, inconstitucional a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, 'sem sobreposição do assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Junho de 1934, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República'.
Este mesmo julgamento de inconstitucionalidade havia-o o Tribunal já proferido, também por maioria, no acórdão nº 190/94, publicado no Diário da República, II série, de 12 de Dezembro de 1995.
Mais recentemente, no acórdão nº 1.056/96 (por publicar), tirado em plenário, o Tribunal aplicou a um caso de espécie esse juízo de inconstitucionalidade.
É essa mesma aplicação que há que fazer neste processo.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
(a). não tomar conhecimento do recurso interposto por E..., enquanto tem por objecto a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929;
(b). negar provimento a ambos os recursos, enquanto têm por objecto a norma do artigo 469º do mesmo Código;
(c). em aplicação do julgamento de inconstitucionalidade proferido no acórdão nº
430/94, conceder provimento ao recurso interposto por G..., tendo por objecto a norma daquele artigo 665º sem a sobreposição do assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Junho de 1934; e, em consequência, revogar o acórdão recorrido, na parte em que se pronunciou sobre a constitucionalidade desse artigo 665º, a fim de ser reformado em conformidade com tal juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 11 de Março de 1997 Messias Bento Fernando Alves Correia Bravo Serra Guilherme da Fonseca (vencido, quanto à alínea b), conforme declaração de voto junta ao Acórdão nº 97/95) José de Sousa e Brito (vencido, quanto à alínea b), conforme declaração de voto junta ao Acórdão nº 124/90) Luis Nunes de Almeida (vencido, quanto
à conclusão b), nos termos da declaração de voto que juntei ao Acórdão nº 61/88) José Manuel Cardoso da Costa