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Proc. nº 44/98
3ª Secção Rel.: Consº Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - J. M. demandou o Estado Português, mediante acção sob a forma ordinária, pedindo a sua condenação em quantia indemnizatória, por ter estado preso preventivamente, acusado da prática de crime de homicídio voluntário, do que viria a ser absolvido. A acção foi julgada improcedente na 1ª Instância - saneador-sentença de 21 de Março de 1996 do Tribunal de Círculo de Santo Tirso - decisão essa confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 4 de Fevereiro de 1997. Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça - recebido como de revista
- viria o mesmo a ser julgado deserto na Relação, por falta de alegações, nos termos do nº 1 do artigo 292º do Código de Processo Civil. Requereu o interessado que sobre esse despacho recaísse acórdão, tendo em conta o preceituado no nº 3 do artigo 700º do mesmo diploma legal, o que veio a suceder, por aresto de 12 de Junho de 1997, que, de harmonia com o anteriormente despachado, julgou deserto o recurso. Inconformado, recorreu o mesmo, para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso recebido como agravo, alegando agora ter o Governo ?abusado? da autorização legislativa que lhe foi concedida pela Lei nº 33/95, de 28 de Agosto, cujo artigo 2º nada dispôs quanto à modificação do processamento dos recursos, pelo que o Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, na parte em que introduziu alterações aos artigos 292º, nº 1, e 690º, nº 2, do Código de Processo Civil, padece de manifesta inconstitucionalidade orgânica, na medida em que ?foram violadas as disposições dos artigos 164º, 168º e 169º da Constituição Política?
(sic). O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 11 de Novembro de 1997, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida. Ponderou-se no aresto não caber a regulamentação dos recursos em processo civil na matéria incluída na reserva parlamentar, pelo que, e independentemente de a Lei nº 33/95 conter, ou não, no seu artigo 2º, autorização ao Governo para legislar sobre matéria de recursos em processo civil, o Decreto-Lei nº 329-A/95, editado ao abrigo dessa lei, não enferma, nesta parte, de inconstitucionalidade orgânica.
2. - Do assim decidido interpôs J. M. recurso para o Tribunal Constitucional, esclarecendo, após convite feito nos termos do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, que o faz ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º deste diploma legal, a fim de ser apreciada a constitucionalidade das normas do nº 2 do artigo 291º e do nº 2 do artigo 690º do Código de Processo Civil, na versão resultante do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, ?por se entender ter sido violado o disposto nos artigos 164º, 168º e 169º da Constituição Política?
(sic) ? versão a que correspondem, respectivamente, os actuais nºs. 2 do artigo
291º e nº 3 do artigo 690º. Recebido o recurso, alegaram oportunamente recorrente e recorrido. O primeiro concluíu do seguinte modo as respectivas alegações:
'A - As partes gozam, por via de regra, da livre faculdade de alegar, ou no Tribunal recorrido (artº 699º, nº 1), B - ou no Tribunal de recurso, isto é, depois da expedição para o Tribunal superior (artº 705º). C - As eventuais alterações da última reforma do Código de Processo Civil
(artigos 292º, nº 1, 690º, nº 2, e 698º), não podem ser aplicadas, por se dever entender Ter sido violada a lei de autorização legislativa, D - que não contemplava questões de recurso. E - Foi violado o disposto, para além das disposições já citadas, nos artigos
164º, 168º e 169º da Constituição Política? (sic).
O Ministério Público, por sua vez e em representação do Estado Português, contra-alegou, assim concluindo:
?1º - Não cabe no âmbito da competência legislativa da Assembleia da República o estabelecimento da disciplina jurídica da tramitação do processo civil, incluindo a da instância de recurso, situando-se, pois, no âmbito da competência legislativa do Governo, o estabelecimento do momento processual próprio para a produção de alegações de recurso e das consequências processuais decorrentes do incumprimento do ónus de alegar.
2º - Termos em que improcede manifestamente o presente recurso.?
II
1.1. - Uma das normas cuja apreciação de constitucionalidade se pretende obter é a que determina que o recurso seja julgado deserto no caso de falta de alegação do recorrente. Este comando constava do nº 1 do artigo 292ºdo CPC anteriormente às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro - a ele ainda se referindo quer o despacho de 14 de Abril de 1997, do Desembargador relator que julgou deserto o recurso interposto em 12 de Fevereiro anterior, quer o acórdão de 12 de Junho seguinte que o confirmou. No entanto, a norma hoje correspondente é a do nº 2 do artigo 291º, que o interessado pretende ver apreciada e que se tomará em conta. Com efeito, a alteração da numeração do preceito ficou a dever-se às modificações decorrentes daquele decreto-lei bem como do Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro, sendo certo que, por força do nº 1 do artigo 25º do primeiro desses diplomas, com a redacção do segundo, a nova lei á aplicável ao recurso da decisão, proferida após 1 de Janeiro de 1997.
1.2. - Por sua vez, para além das normas dos nºs. 2 do artigo 291º e do nº 2 do artigo 690º do CPC, cuja inconstitucionalidade suscitou e incluíu no requerimento de interposição do recurso, nas conclusões das alegações do recurso de constitucionalidade o impugnante adita, aliás, sem qualquer justificação explícita, a norma do artigo 698º do mesmo Código. Obviamente dela não se conhecerá, uma vez que o requerimento de interposição do recurso é o momento adequado para a fixação do seu objecto, que pode, nas conclusões das alegações, ser restringido mas não ampliado (cfr. os nºs. 2 e 3 do artigo 684º do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 69º da Lei nº
28/82).
2.1. - Pretende o recorrente que o legislador ordinário, ao editar o Decreto-Lei nº 329-A/95 - e as alterações por ele aprovadas ao Código de Processo Civil, no que às normas impugnadas respeita - terá agido para além do âmbito da autorização legislativa que a Lei nº 33/95, de 28 de Agosto, lhe concedeu, inquinando, nessa medida, as ditas normas de inconstitucionalidade orgânica, para o efeito tendo convocado os artigos 164º, alínea e), 168º, nº 1, alínea q), e 169º, nº 3 (como melhor explicita nas alegações de recurso) da Constituição da República (texto da Revisão Constitucional de 1992), violados, em seu critério, por aquela iniciativa legislativa. Com efeito, a Lei nº 33/95 autorizou o Governo a rever, além do mais, o Código mencionado (artigo 1º), precisando o artigo 2º deste diploma que as alterações a introduzir no processo civil, em execução dessa autorização, visam concretizar
?o direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais, consagrando que tal direito envolve a obtenção, em prazo razoável, de uma decisão de mérito afirmando como princípios estruturantes do processo civil o princípio do contraditório, designadamente na medida em que se pressupõe que, em momento prévio à decisão, tenha sempre lugar a audição das partes sobre as questões de direito ou de facto suscitadas, e o princípio da igualdade das partes?. No tocante ao regime de recursos, a lei de autorização, no seu artigo 7º, delimita o quadro dentro do qual se hão-de situar as alterações a introduzir. A seguir a tese defendida pelo recorrente, as normas sindicandas constituiriam concretização de uma iniciativa legislativa não enquadrável nos parâmetros da autorização legislativa: ao determinarem, ambas, o julgamento por deserção quando não apresentadas as respectivas alegações, não teriam ?cobertura? da credencial parlamentar.
2.2. - Não assiste razão ao recorrente.
Com efeito, o Supremo, no acórdão recorrido, debruçou-se sobre o artigo 7º da Lei nº 33/95, observando que as situações aí previstas têm contornos que colidem com a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais e com matérias que, embora de âmbito processual, comportam, no entanto, uma certa dimensão substantiva, como tal se perfilando o instituto dos recursos como projecção da garantia dos direitos e liberdades das pessoas. Nessa perspectiva, as alterações ao regime de recursos intentariam concretizar ?o direito fundamental do acesso à justiça e aos tribunais, consagrando que tal direito envolve a obtenção, em prazo razoável, de uma decisão de mérito?. Não obstante, se os parâmetros da autorização legislativa denunciam a consciencialização dos problemas decorrentes dos limites e da repartição das competências legislativas da Assembleia da República e do Governo, não se crê que a tramitação procedimental, enquanto tal, se inclua, necessariamente e integralmente, nessa área. É indiscutível que as regras de processo, em geral, não podem ser indiferentes ao texto constitucional: como já se observou, determinadas exigências, relativas à sua conformação e organização, são ?directo corolário da ideia de Estado de direito democrático?, sendo um dos elementos estruturantes desse modelo de Estado a observância de um due process of law na resolução dos litígios que no seu âmbito deva ter lugar (cfr., v.g., o acórdão nº 271/95, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Julho de 1995). Não estão nesse caso, as normas que prescrevem o julgamento por deserção do recurso no caso de falta de cumprimento do ónus de alegar. De resto, as normas em questão nada contêm de inovatório relativamente ao regime anterior ao diploma de 1995: o regime relativo às formalidades das alegações é exactamente o mesmo. Na verdade, o que foi alterado - com o objectivo de simplificar a marcha do processo - respeita à apresentação das alegações. Como escreve, a este propósito, Armindo Ribeiro Mendes:
'A Reforma de 1995-1996 deixou de admitir a possibilidade de as partes optarem entre a apresentação da alegação no tribunal a quo e a apresentação no tribunal ad quem, nos recursos de apelação e de revista. Por outro lado, impôs que, nos recursos de agravo interpostos, em primeira instância ou em segunda instância, com subida diferida, o recorrente alegasse sempre no tribunal a quo, não podendo diferir o momento de alegação para a altura de subida do chamado recurso dominante. Daqui resulta uma considerável simplificação nos diferentes regimes? (cfr. Os Recursos no Código de Processo Civil Revisto, Lisboa, 1998, pág. 67).
A norma que introduziu, inovatoriamente, a alteração processual relativa à apresentação das alegações - a do nº 2 do artigo 698º do CPC para o recurso de revista, como é o caso - não integra, no entanto, o objecto do recurso, como, em sede de delimitação do seu objecto, já se decidiu.
III Em face do exposto nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 20 de Outubro de 1998 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida