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Proc. nº 778/96
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., B. e marido C., D. e E., todos representados pelo mesmo Advogado, deduziram reclamação, nos termos dos arts. 76º, nº 4, e 77º da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho do Presidente da Relação do Porto que não admitira recurso de constitucionalidade por eles interposto de decisão proferida por aquele.
Fundamentaram a reclamação do seguinte modo:
- No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, invocaram os reclamantes 'a inconstitucionalidade do disposto no art. 689º do CPC, tal como interpretado e aplicado no douto despacho de 17-05-96, por violação directa dos princípios do Estado de Direito e do Acesso ao Direito consagrados nos arts.
2º e 20º da Constituição e do disposto nos arts. 205º, nº 2, e 208º, nº 1, da mesma Lei Fundamental';
- Não estando em causa qualquer questão de ilegalidade, não entendem por que razão o recurso de constitucionalidade tinha sido rejeitado com apelo à al. f) do art. 70º da Lei nº 28/82 [por lapso, referem-se ao art. 77º];
- Igualmente não deverá ser recusado o conhecimento do recurso com fundamento na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, no entendimento de que pressupõe que a inconstitucionalidade haja sido suscitada antes do requerimento de interposição, uma vez que os reclamantes 'só com a notificação do despacho foram confrontados com a estatuição dessa norma e com a sua interpretação constitucionalmente inaceitável, pelo que aquela condicionante da al. b) do [nº 1] do art. 7[0º], em tal hipótese, tem de admitir que a inconstitucionalidade seja apenas arguida no requerimento de interposição'
(invocam, para sustentar tal afirmação, o entendimento acolhido no acórdão nº
61/92 do Tribunal Constitucional);
- Concluem afirmando que, 'no entendimento contrário, seria a própria norma do art. 70º, nº 1, b) da Lei nº 28/82, de 15/11, que ofenderia o disposto nos arts.
2º, 3º, nº 2, e 18º, nº 2, da Lei Fundamental, por se tratar de uma restrição injustificadamente desproporcionada e que, a final, acabaria por permitir que fossem aplicadas aos cidadãos normas inconstitucionais, sem que aos mesmos se desse o direito de arguição de inconstitucionalidade e de obterem efectivo reconhecimento desse vício' (a fls. 97 dos autos).
2. Enviados os autos ao Tribunal Constitucional, deles teve vista o representante do Ministério Público. No parecer por ele subscrito, sustenta que, embora por fundamento diverso, deverá a reclamação ser julgada improcedente (a fls. 101 vº a 102 vº).
3. Foram corridos os vistos legais.
II
4. Impõe-se conhecer do objecto da presente reclamação.
Para tal, importa referir o contexto processual em que surgiu o despacho reclamado.
5. Em acção de divisão de coisa comum pendente no Tribunal Judicial de Vila Verde, o autor e os réus chegaram a acordo no sentido de se proceder à divisão de um certo prédio precedentemente tido por juridicamente indivisível, de forma a atribuirem a propriedade de parcelas do mesmo a diferentes comproprietarios, mas através de despacho proferido em 22 de Fevereiro de 1996, a Senhora Juíza indeferiu o requerimento de divisão. O autor e os réus interpuseram recurso desta decisão para a Relação do Porto, o qual foi admitido de forma diferida, para 'subir com o primeiro recurso que, depois de ele interposto, haja de subir imediatamente'.
Os interessados impugnaram, através de reclamação deduzida nos termos dos arts. 688º e 689º do Código de Processo Civil, o despacho de retenção do agravo, invocando que a subida do recurso devia ser imediata, sob pena de o recurso se tornar inútil (art. 734º, nº 2, do mesmo diploma). Foi mantido o despacho reclamado.
Através de despacho proferido em 19 de Abril de 1996, o Senhor Presidente da Relação do Porto indeferiu a reclamação, por ter entendido que o recurso interposto não era nenhum dos previstos, de forma taxativa, no nº 1 do art. 734º do Código de Processo Civil, nem a retenção do mesmo o tornava absolutamente inútil, visto não se considerar que a retenção inutilizaria por completo as potencialidades de impugnação (a fls. 80 vº dos autos).
Notificados os reclamantes do despacho, vieram os mesmos arguir, por requerimento de fls. 85, a sua nulidade e pedir a rectificação, considerando não estarem suficientemente especificados os fundamentos de facto e de direito dessa decisão, não sendo a mesma intelegível, na medida em que não se dava qualquer solução à dificuldade posta pelos reclamantes no sentido de não se vislumbrar qualquer prosseguimento possível dos autos, a não ser que as partes desistissem, expressa ou tacitamente, da pretensão sustentada no recurso, afirmando-se tão-somente que o processo podia prosseguir e que se aguardava que algo fosse requerido (arts. 668º, nº 1, alíneas b) e d), do Código de Processo Civil).
Sobre esta arguição de nulidade, incidiu o despacho de fls. 88, do seguinte teor: 'Ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 689º do C.P. Civil, indefiro o que se requer a fls. 85'.
Notificados deste segundo despacho, vieram os reclamantes interpor recurso de constitucionalidade, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, considerando que o Presidente da Relação do Porto tinha interpretado a norma do nº 2 do art. 689º do Código de Processo Civil de forma a que a 'proibição de impugnação da decisão do Presidente do Tribunal Superior se estende à arguição da nulidade dessa perante o seu autor, quer por omissão de decisão, quer por falta de fundamentação', interpretação que seria contrária ao disposto nos arts. 2º, 20º, 205º, nº 2, e 208º, nº 1 da Constituição. Explicitando a acusação de interpretação inconstitucional da norma, os reclamantes afirmaram que 'fere o nosso sistema constitucional o entendimento segundo o qual, sendo a decisão denegadora da justiça ou infundada
(normalmente por desculpável desatenção do juiz quanto ao âmbito das questões a apreciar ou quanto às premissas necessárias à compreensão do silogismo judiciário), não deva o juiz suprir o vício da decisão que a afecta, mesmo na sua forma' (a fls. 92-93).
Este recurso foi indeferido através do despacho reclamado, com o seguinte teor:
' Dado o disposto no art. 70º f, da Lei nº 28/82, de 15/11 não admito o recurso requerido para o Tribunal Constitucional'. (a fls. 95)
6. O fundamento invocado pelo autor do despacho reclamado não se afigura procedente.
Certamente por lapso de escrita, pretendeu-se nesse despacho que não podia ser admitido o recurso por imperativo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Ora, a verdade é que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem reconhecido que a suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo como pressuposto necessário de admissibilidade do recurso previsto na indicada norma pode ser dispensado sempre que o recorrente não haja tido a oportunidade processual de suscitar tal questão, nomeadamente numa hipótese em que a interpretação fosse tão insólita e imprevisível, que seria de todo o ponto desrazoável dever a parte contar com tal interpretação (formulações do acórdão nº 479/89, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., págs.
143 e seguintes, retomando formulações dos anteriores acórdãos nºs. 136/85 e
94/88).
No caso sub judicio, o Presidente da Relação do Porto invocou o nº 2 do art. 689º do Código Civil para indeferir a arguição da nulidade deduzida pelos ora reclamantes. Esse número do art. 689º dispõe que 'a decisão do presidente
[do Tribunal Superior] não pode ser impugnada, mas, se mandar admitir ou subir imediatamente o recurso, não obsta a que o tribunal ao qual o recurso é dirigido decida em sentido contrário'.
Há-de, assim, conceder-se que a invocação do nº 2 do art. 689º para indeferimento de uma arguição de nulidade não podia ser facilmente antevista pelos ora reclamantes, atendendo ao princípio geral de que, após ser proferida uma decisão judicial, o juiz pode sempre 'rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes na sentença e reformá-la quanto a custas e multa' (art. 666º, nº 2, do Código de Processo Civil, norma aplicável,
'até onde seja possível, aos próprios despachos'), só podendo tais nulidades ser arguidas perante o tribunal que proferiu a decisão se esta não admitir recurso ordinário (art. 668º, nº 3, do mesmo diploma).
Nessa medida, têm razão os reclamantes ao sustentarem que a aplicação desta norma fora imprevisível, não se podendo impor àqueles o ónus de suscitação, na própria arguição de nulidade, da inconstitucionalidade da interpretação do art. 689º, nº 2, norma que, em princípio, não deveria ter sido convocada na apreciação da arguição de nulidade.
7. A conclusão agora alcançada não implica, porém, que o recurso de constitucionalidade devesse ter sido admitido pelo autor do despacho reclamado.
É que não é claro que a invocação do nº 2 do art. 689º do Código de Processo Civil no despacho de fls. 88 só possa explicar-se pelo acolhimento de uma interpretação dessa norma violadora dos arts. 2º, 20º, 205º, nº 2, e 208º, nº 1, da Constituição.
De facto, os ora reclamantes não procuraram averiguar as razões da invocação pelo Presidente da Relação do Porto do disposto no nº 2 do art. 689º do Código de Processo Civil para indeferir a arguição de nulidade, nomeadamente através de um pedido de aclaração, nos termos do art. 669º, alínea a), do Código de Processo Civil (na redacção vigente na época, anterior à introduzida pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), tendo partido do princípio que tal invocação se devia ao entendimento de que a inexistência de impugnação por recurso do despacho do presidente do Tribunal Superior se estende à arguição da nulidade desse despacho perante o seu autor, quer por omissão de decisão, quer por falta de fundamentação.
Mas, tal como aventa o Exmº. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer de fls. 101 vº a 102 vº, o laconismo do despacho terá razoavelmente o sentido de que o seu autor interpretou a arguição da nulidade suscitada como forma ínvia de pôr em causa o mérito do despacho de indeferimento da reclamação, impugnação contrária ao princípio da inimpugnabilidade da decisão contemplada no referido nº 2 do art. 689º. A invocação dessa norma pelo autor do despacho teria o sentido de fundamentar o não conhecimento da arguição da nulidade, por entender que a finalidade visada pelos reclamantes era a de pôr em causa o mérito da sua decisão. Pode ler-se no referido parecer:
' Temos, porém, as maiores reservas que seja esse o sentido a extrair do lacónico despacho de fls. 88: na verdade, o que nos parece que - se ponderarmos na sua globalidade a situação processual debatida nos autos - terá efectivamente ocorrido é tal norma ter sido interpretada e aplicada em termos de, arguida a nulidade de certa decisão judicial, ser possível rejeitá-la de forma sumária, renovando implicitamente os precisos termos da decisão definitiva anteriormente proferida. É que, a nosso ver, a decisão inicialmente proferida pelo Exmº. Presidente da Relação estava suficientemente fundamentada, explicitando de modo perfeitamente inteligível as razões de direito por que se entendia não ser justificável a subida imediata do agravo - e não cumprindo seguramente, na filosofia do Código vigente, ao Tribunal «cooperar» com as partes, de modo a sugerir-lhes as condutas processuais adequadas, susceptíveis de «ilustrar» uma possível utilidade «residual» do agravo admitido com um regime de subida diferida (no dizer do[s] ora reclamante[s], «apontando, em concreto, algo que, por um lado, possa ser requerido para prosseguimento dos autos e, por outro, não tenha implícita a desistência do recurso»).' (a fls. 101 vº a 102)
Neste contexto, afigura-se como provável que tenha sido interpretada a utilização daquele meio processual como modo de os reclamantes visarem, através da arguição de nulidade, censurar o entendimento perfilhado pelo despacho do Presidente da Relação de fls. 80 - despacho que confirmou o despacho de sustentação do magistrado de primeira instância e que acolhe uma jurisprudência firme sobre o nº 2 do art. 734º do Código de Processo Civil - 'ficcionando' - para usar de novo as palavras do Exmº. Procurador-Geral Adjunto - 'uma falta de fundamentação obviamente inexistente', vendo-se confrontados 'com um despacho que, de forma embora lacónica, lhe[s] lembrou que a arguição de pretensas nulidades não é o meio processual adequado para pretender alcançar uma modificação substancial do conteúdo de decisões inimpugnáveis' (a fls. 101).
8. Embora os reclamantes não tivessem tido a oportunidade processual de suscitar a questão de inconstitucionalidade do nº 2 do art. 689º, na interpretação imputada ao despacho de fls. 88, a verdade é que tal decisão de que pretenderam recorrer, se interpretada 'em termos objectivos e razoáveis' - como se exprime o Exmº. Procurador-Geral Adjunto - no contexto global do desenrolar deste processo, não se configura de molde a revelar a aplicação do nº
2 do art. 689º do Código de Processo Civil com um sentido como o que lhe é atribuído pelos reclamantes, não podendo presumir-se que o autor do despacho ignorasse o disposto nos arts. 666º e seguintes do Código de Processo Civil.
Ora, não tendo sido aplicada a norma com o sentido atribuído pelos reclamantes e por eles qualificado de inconstitucional - e, recorda-se, que os reclamantes nada fizeram para precisar qual o sentido ou interpretação normativa acolhida no lacónico despacho de fls. 88 - não pode ser deferida a presente reclamação, faltando um pressuposto de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
III
9. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta.
Lisboa, 11 de Março de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa