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Processo n.º 821/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., CRL, e recorrido B., foi interposto recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele tribunal, para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, quando interpretada no sentido de que às ações executivas intentadas após o início da vigência daquele diploma e que tenham que correr por apenso à ação declarativa, não se aplica o novo regime de recursos instituído por este.
2. A recorrente apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«1. Nos termos do art. 11.º, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 303/2007, de 24 de agosto, “Sem prejuízo do disposto no número seguinte, as disposições do presente decreto-lei não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”.
2. Esta norma tem sido interpretada de forma unânime pelas instâncias superiores no sentido de o novo regime instituído neste diploma se aplicar a “processos entrados a partir de 1.1.2008” (pontos 19 e ss.).
3. No acórdão recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça, ao interpretar aquela disposição estendendo o conceito de “processos pendentes”’ às ações executivas instauradas depois da entrada em vigor daquele diploma que corram por apenso à ação declarativa interposta anteriormente ao seu início de vigência e já transitada em julgado, considera que não são aplicáveis às referidas ações executivas as disposições daquele Decreto-Lei.
4. A interpretação do art.º 1l.º, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 303/2007 defendida por aquele Tribunal implica que situações idênticas — ações executivas intentadas após o início de vigência daquele diploma que corram por apenso a ação declarativa e ações executivas iniciadas após a entrada em vigor daquele diploma que não corram por apenso — sejam tratadas de forma distinta, ficando sujeitas a regimes de recursos diferentes.
5. Embora o legislador tenha feito uma distinção entre processos pendentes à data da entrada em vigor daquele diploma e processos instaurados após aquela data para efeitos de aplicação das disposições do referido Decreto-Lei, não estabeleceu qualquer distinção entre processos que corressem ou não por apenso.
6. A interpretação sustentada no douto acórdão recorrido implica ainda que se trate de forma diferente, no que respeita ao regime de recursos e sem qualquer fundamento que o justifique, as ações executivas baseadas em sentença e as que tem como base outro título executivo.
7. Interpretar o art. 11.º, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 303/2007 no sentido defendido pelo Supremo Tribunal de Justiça implica tratar de forma diferente situações que o legislador pretendeu sujeitar ao mesmo regime.
8. A interpretação do art. 11.º, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 303/2007, feita pelo tribunal recorrido, viola também o princípio constitucional da igualdade na medida em que restringe a possibilidade de dois cidadãos terem o mesmo prazo de recurso (isto é, ser-lhes aplicável o mesmo regime de recursos) em casos idênticos submetidos a tribunal no contexto da mesma legislação.
9. Independentemente da correção da interpretação seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, certo é que inexiste qualquer fundamento sério, razoável e legítimo que possa justificar a diferenciação jurídica de situações idênticas.
10. Acresce que a interpretação seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça prejudica a segurança jurídica, a qual deverá guiar e limitar eventuais diferenciações jurídicas entre situações idênticas, quando dotadas de fundamento legítimo.
11. Atendendo à ratio do art.º 11.º, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 303/2007 (evitar a aplicação de diferentes regimes de recursos no mesmo processo), é de concluir que esta não é compatível com a extensão do âmbito de aplicação daquela disposição a ações executivas instauradas após o início de vigência daquele diploma que corram por apenso a ação declarativa, uma vez que, estando em causa um novo processo, não haverá risco de aplicação de diferentes regimes de recursos no mesmo processo.
12. Pelo que, a ratio daquela norma não fundamenta a distinção entre situações idênticas levada a cabo pelo Supremo Tribunal de Justiça.
13. Do exposto decorre que a interpretação do art.º 11.º, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 303/2007, defendida no douto acórdão recorrido pelo Supremo Tribunal de Justiça viola o princípio da igualdade, na sua dimensão da proibição do arbítrio, ofendendo dessa forma o artigo 13.° da Constituição da República Portuguesa.
14. Assim, a norma constante do art. 11.º, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 303/2007, interpretada no sentido de que às ações executivas intentadas após o início de vigência daquele diploma e que tenham de correr por apenso à ação declarativa não se aplica o novo regime de recursos instituído por aquele diploma, enquanto nas ações executivas que não tenham de correr por apenso se aplica o novo regime de recursos é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação do artigo 13.° da Constituição da República Portuguesa.
NESTES TERMOS, E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, DEVERÁ JULGAR-SE O PRESENTE RECURSO PROCEDENTE E, CONSEQUENTEMENTE, DECLARAR-SE INCONSTITUCIONAL A NORMA DO ART. 11.°, N.° 1, DO DECRETO-LEI N.° 303/2007, DE 24 DE AGOSTO, NA INTERPRETAÇÃO QUE DELA É FEITA NO DOUTO ACÓRDÃO RECCORRIDO, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS. JUSTIÇA.»
2. O recorrido contra-alegou, concluindo o seguinte:
«1- O recurso apresentado pela recorrente junto do tribunal recorrido viola o disposto nos art.º 8.º e 11.º (DL 303/2007, 24 de agosto), que determina que a nova lei entra em vigor no dia 1 de janeiro de 2008, apenas se aplica aos processos que deram entrada após 1 de janeiro de 2008, pelo que lhe deve ser negado conhecimento.
2- Ora, in casu , o processo declarativo deu entrada no Tribunal da Primeira Instância em 2007, muito embora o apenso executivo de cuja decisão foi interposto recurso para a Relação do Porto, seja posterior a essa data, mas há uma notória relação, de total dependência, entre o presente recurso e mesmo o anterior, e a decisão declarativa de 1.ª Instância e veja-se mesmo a relação umbilical que a recorrente faz no seu recurso com a decisão de 1.ª Instância, socorrendo-se desta de forma insistente, contínua e em total dependência desta.
3- O regime aplicável é o anterior Decreto Lei 303/2007, pelo que a Apelada tinha 10 dias para primeiro interpor o Recurso, e depois, se deferido, apresentar as motivações, sendo que, só deu entrada no dia 19 de janeiro de 2011, tendo sido o douto Acórdão notificado a 2 de dezembro de 2010, que a recorrente não observou.
4- De qualquer dos modos, a convivência transitória entre o atual e o anterior regime dos recursos em processo civil não belisca o princípio da igualdade.
5- O Tribunal Constitucional já por diversas vezes foi chamado a pronunciar-se sobre situações de «tratamento desigual» resultante da aplicação de leis no tempo, e a esse respeito tem reiteradamente afirmado que o princípio da igualdade não opera diacronicamente. Ou seja, o legislador não está, em regra, obrigado a manter as soluções jurídicas que alguma vez adotou, antes sendo notas típicas da função legislativa, justamente, entre outras, a liberdade constitutiva e a autorrevisibilidade (Acórdão n.º 352/91)
6- Assim, a criação de situações de desigualdade, resultantes da aplicação do quadro legal revogado e do novo regime, é inerente à liberdade do legislador do Estado de Direito de alterar as leis em vigor.
7- Como mais recentemente se salientou nos Acórdãos n.ºs 260/2010 e 153/10, na determinação do conteúdo das normas que disciplinam a sucessão de leis no tempo é reconhecida ao legislador uma apreciável margem de liberdade no que respeita ao estabelecimento do marco temporal relevante para a aplicação do novo e do velho regime legal.
8- No caso em apreço, nada há no sentido e alcance da norma que fixa o prazo para recorrer que leve a questionar a admissibilidade constitucional da interpretação normativa — com correspondência imediata, aliás, no enunciado do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007 — segundo a qual as disposições da lei nova, incluindo as respeitantes aos recursos, «não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor».
9- Não cabe ao Tribunal aferir se o critério escolhido foi a melhor opção ou se, pelo contrário, teria sido possível encontrar um outro regime de direito transitório que se traduzisse na aplicação gradual do novo regime dos recursos aos processos pendentes, à semelhança do que foi feito em anteriores reformas da lei processual civil.
10- Um tal critério insere-se dentro da margem de discricionariedade que assiste ao legislador, por via do mandato democrático que lhe foi conferido, e não desrespeita a segurança jurídica, nem a proteção da confiança, nem é irrazoável.
Nestes termos e nos mais de direito que V.Ex.ªs se dignarem suprir, deve ao presente recurso ser negado provimento, assim se ordenando a manutenção na ordem jurídica do acórdão recorrido, com as devidas e legais consequências, assim se fazendo
JUSTIÇA.»
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
3. O artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto (que altera o Código de Processo Civil, procedendo, além do mais, à revisão do regime de recursos e de conflitos em processo civil), reza assim:
«Artigo 11.º
Aplicação no tempo
1 — Sem prejuízo do disposto no número seguinte, as disposições do presente decreto-lei não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
2 — A produção de efeitos do artigo 1.º, na parte em que altera os artigos 138.º -A, 143.º, 150.º, 150.º -A, 152.º, 163.º, 164.º, 165.º, 167.º, 209.º -A, 211.º, 213.º, 214.º, 219.º, 223.º, 226.º, 228.º, 229.º -A, 233.º, 254.º, 259.º, 260.º -A, 261.º, 379.º, 380.º, 467.º, 474.º, 486.º -A, 657.º e 1030.º do Código de Processo Civil, depende da entrada em vigor da portaria prevista no n.º 1 do artigo 138.º -A do referido Código e aplica -se aos processos pendentes nessa data.»
Entre as disposições do Decreto-Lei n.º 303/2007 sujeitas ao âmbito temporal de aplicação fixado no n.º 1 do artigo 11.º, figuram as que vêm estabelecer novos prazo e modo de interposição do recurso. Referimo-nos às disposições que deram nova redação ao artigo 685.º, n.º 1, e aditaram o artigo 684.º-B, ambos do CPC. Por força destes preceitos, o prazo-regra de interposição de recurso passa a ser de 30 dias, devendo o requerimento incluir a alegação do recorrente. Na versão anterior às alterações de 2007, o prazo de interposição era de 10 dias, sendo o prazo para alegar de 30 ou 15 dias, consoante estivesse em causa uma apelação ou um agravo, a contar da notificação do despacho que admitisse o recurso.
Nos presentes autos, está em causa a norma do n.º 1 deste artigo 11.º, quando interpretada no sentido de que às ações executivas intentadas após o início da vigência daquele diploma e que tenham que correr por apenso à ação declarativa, não se aplica o novo regime de recursos instituído por este.
Este critério, perfilhado pelo acórdão recorrido, parte do pressuposto de que as ações executivas não constituem ações autónomas em relação às ações declarativas quando correm por apenso a estas, não dando azo a “um processo novo a partir do qual se deva aferir a lei aplicável”. Acrescenta-se que essas ações «formam uma unidade instrumental com a ação principal proposta antes de janeiro de 2008, justificando uma unidade coerente de tramitação que terá de ser o bloco legal existente à data da instauração da ação principal».
De acordo com este entendimento, ainda que a execução tenha sido promovida posteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 303/2007, se o respetivo processo ficar apenso a uma prévia ação declarativa, não se lhe aplica o regime de recursos por aquele diploma instituído, pois deve ser incluído no conceito de “processos pendentes”, a que faz referência o n.º 1 do artigo 11.º, em delimitação negativa do âmbito de aplicação do diploma.
Só seriam abrangidas pelo novo regime de recursos «as ações executivas instauradas a partir de 01.01.2008, mas que sejam ações efetivamente autónomas, objeto de distribuição na respetiva espécie e que contenham o título executivo, que são todas as que não corram por apenso a ações declarativas (…)».
Admite-se, em conclusão, a vigência de dois regimes para os recursos de ações executivas interpostas após 01.01.2008: «um para aquelas que corram por apenso a ações declarativas propostas antes daquela data; outro para as ações executivas que tenham sido instauradas como autónomas, sendo objeto de distribuição e de registo próprio».
4. É a esta diferenciação de regimes que a recorrente imputa a violação do princípio da igualdade.
E, contrariamente ao sustentado pelo recorrido, a alegação não pode ser liminarmente rejeitada, com fundamento em que o princípio da igualdade não opera diacronicamente.
Esta diretriz tem sido, na verdade, repetidamente proclamada e uniformemente seguida por este Tribunal, mas apenas para afastar a aplicação do princípio às “desigualdades no tempo”, às diferenças de tratamento diretamente geradas por soluções legais temporalmente sucessivas, com distinto conteúdo regulador. Se, no presente, uma categoria de interesses é tratada mais desfavoravelmente do que o foi no passado, por força de um regime legal entretanto alterado por lei nova, não há qualquer violação do princípio da igualdade. «E isto porque – como se escreveu, entre muitos outros, no Acórdão n.º 171/2001 – o legislador, em via de princípio, não tem que manter as soluções jurídicas que alguma vez adotou. A sua função caracteriza-se, justamente, pela liberdade de conformação e pela autorreversibilidade». Como também se realçou no Acórdão n.º 429/2010, «a criação de situações de desigualdade, resultantes da aplicação do quadro legal revogado e do novo regime, é inerente à liberdade do legislador do Estado de Direito de alterar as leis em vigor».
Não é essa a dimensão problemática aqui presente. Está em causa a aplicação contemporânea, no momento presente, do mesmo preceito legal (o artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007), a partir do qual são extraídas soluções diferenciadas, ambas vigentes, em simultâneo. A situação pode, pois, ser apreciada pelo parâmetro do princípio da igualdade, sem que a isso se oponha a exigência da sua aplicação “sincrónica”.
Como se deixou claro no Acórdão n.º 398/2011:
«Quando se diz que o princípio da igualdade não opera diacronicamente, apenas se abrange as desigualdades resultantes de aplicação de diferentes regimes legais durante a sua respetiva vigência, mas já não quando, após a entrada em vigor duma lei, o legislador restringe a sua aplicação a determinadas situações, mantendo a aplicação da lei antiga, relativamente a outras, sem que se vislumbre fundamento razoável para essa situação. Neste último caso, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, da C.R.P., imporá um juízo de censura constitucional sobre essa opção».
5. Também não poderá responder-se conclusivamente, pela negativa, à invocação de que o regime diferenciado de recursos no âmbito das ações executivas instauradas após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 303/2007 ofende o princípio da igualdade, argumentando simplesmente, como faz o acórdão recorrido, que “estamos perante situações diferentes, para cada uma delas se aplicando um regime também diferente”.
Não basta, na verdade, assinalar uma diferença entre duas situações, para que de imediato fique respaldada, em face do princípio da igualdade, uma diferenciação de tratamento legislativo. Como conceitos normativos, igualdade e desigualdade são conceitos relativos e conceitos de valor, já que só podem determinar-se em função de certos elementos de comparação, adequadamente selecionados de entre o todo das características conformadoras das situações e submetidos a uma qualificação à luz de um critério valorativo coerente com o fim do tratamento jurídico (cfr. MARIA DA GLÓRIA FERREIRA PINTO, “Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula ‘carregada’ de sentido?”, sep. do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987, esp. 16-29). Em caso de tratamento desigual, o ponto decisivo está em saber se a característica destacada como distintiva tem valor significante para conferir sentido legítimo e fundamento material suficiente à diferenciação jurídica. Questão a que só poderá responder-se através de uma valoração comparativa das situações em confronto, do ponto de vista relevante (que só pode ser o fornecido pelos fins da norma em causa), conducente a um juízo qualificativo dessas situações como iguais ou desiguais.
Como o Tribunal tem repetidamente afirmado e a doutrina, em geral, igualmente acentua, o que o princípio da igualdade proíbe «são as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante» (Acórdão n.º 14/2000). E, «como destituída de fundamento razoável não há que considerar apenas a diferenciação de tratamento que possa considerar-se verdadeiramente arbitrária, mas também aquela que se baseie num critério que não possa ser relevante, considerando o efeito útil visado» (Acórdão n.º 275/2002).
Vazando esta metodologia para a questão que nos ocupa, concluir-se-á que o que importa é decidir se o correrem por apenso a uma ação declarativa que lhes fornece o título executivo é fundamento bastante para que as ações executivas instauradas após a entrada em vigor do novo regime sejam colocadas fora do domínio de vigência desse regime, em tratamento diferenciado de idênticas ações que não apresentem essa característica. Sendo os “processos pendentes” excluídos da aplicação da nova lei, urge determinar se aquele é um elemento materialmente diferenciador, fornecendo um ponto de vista relevante, que deva contar como critério de qualificação e de integração nessa categoria, com as inerentes consequências de regime.
6. É pela negativa que respondemos a esta questão.
Na verdade, considerar a ação executiva como pendente à data da entrada em vigor da nova lei, não obstante ter sido instaurada posteriormente, pelo simples facto de correr por apenso a uma prévia ação declarativa, iniciada anteriormente àquela data, implica a rejeição de autonomia do processo executivo que obedeça a essa característica. E esse passo foi expressamente dado, quer pelo despacho de não admissão do recurso, quer pela decisão recorrida, que indeferiu a subsequente reclamação.
Mas negar, nessas circunstâncias, a independência do processo executivo contraria frontalmente dados normativos e de dogmática processual bem consolidados. “As ações são declarativas ou executivas”, proclama categoricamente o n.º 1 do artigo 4.º do Código de Processo Civil. Cada uma destas distintas categorias de ação tem natureza, função e regimes próprios, cabendo à ação executiva a “reparação efetiva do direito violado”. Não pode, sequer, falar-se de um vínculo de dependência da ação executiva em relação à declarativa, tida como a ação principal, pois, como bem anota LEBRE DE FREITAS, «as duas ações coordenam-se funcionalmente, mas sem subordinação duma à outra» (A ação executiva, 4.ª ed., Coimbra, 2004, p. 21, n. 35-A).
E nada muda pelo facto de o título executivo advir de uma ação declarativa, contrariamente ao sustentado no acórdão recorrido, para o qual « (…) tal autonomia não se verifica, designadamente por o título executivo, a tomar em consideração em sede de execução, estar contido na ação declarativa».
A “certificação”, por um título executivo, do direito violado é um pressuposto de admissibilidade de toda e qualquer ação executiva. “Toda a execução tem por base um título (…) diz-nos o artigo 45.º, n.º 1, do CPC. Mas, por ser assim, o título executivo é um prius em relação à ação executiva, está antes do início e fora da tramitação a que ela dá lugar - ressalvadas as hipóteses particularíssimas dos artigos 825.º, n.º 2, e 869.º, n.º 3, do CPC. E isso não deixa de ser verdade quando o título é uma sentença judicial. Uma eventual ação executiva nela fundada, sempre dependente, no regime processual geral, da iniciativa de parte, “constitui uma nova instância” (LOPES CARDOSO, Manual da ação executiva, 3.ª ed., Coimbra, 1987, p. 16). Se a sentença já transitou em julgado, o processo declarativo em que ela foi emitida está, aliás, “findo” (cfr. a terminologia da parte final do n.º 3 do artigo 90.º do CPC).
Sendo assim, se a exclusão dos processos pendentes da aplicação da lei nova se ficou a dever, como razoavelmente é de supor, à intenção legislativa de evitar a aplicação de regimes recursórios diferentes a um mesmo processo, esse fim é plenamente alcançado com a aplicação, até ao termo da ação executiva, das regras vigentes no momento da sua interposição. Se, nesse momento, já se encontrava em vigor a lei nova, não se descortina qualquer fundamento material, do ponto de vista da norma transitória, para submeter a ação executiva ao regime de recursos aplicável à ação declarativa em que foi proferida a sentença dada em execução.
Fazer prevalecer, a este respeito, a data de proposição desta ação declarativa, levando a qualificar como processo pendente, à data da entrada em vigor do novo regime, uma ação executiva ainda não interposta, nessa data, releva de uma conceção que liga numa unidade orgânica e funcional ação declarativa e ação executiva, o que não se afigura dogmaticamente sustentável.
Não perturba, de modo algum, esta apreciação o facto de a ação executiva fundada em título judicial correr, em regra, por apenso à declarativa. Esse dado resulta de uma opção de regime determinada por razões organizatórias, decorre de um juízo de conveniência e não da natureza intrínseca da ação executiva ou da sua integração funcional na prévia ação declarativa.
As exceções abertas pelo n.º 3 do artigo 90.º provam que assim é. Nos termos dessa norma, a execução deixa de correr por apenso «quando, em comarca com competência executiva específica, a sentença haja sido proferida por juízo de competência especializada cível ou de competência genérica e quando o processo tenha entretanto subido em recurso, casos em que corre no traslado (…)». Ressalva-se a possibilidade de, nesta situação, o juiz de execução, “se entender conveniente, apensar à execução o processo já findo” [itálico nosso].
O conjunto deste regime deixa claro que são razões circunstanciais, “exteriores” ao processo executivo propriamente dito, que vão determinar a verificação ou não da apensação. Esta pode, até, ficar dependente da livre atuação processual do exequente, parte vencedora na ação declarativa, de cuja sentença tiver sido interposto recurso, com efeito devolutivo. De facto, não sendo o trânsito em julgado condição de exequibilidade da sentença (artigo 47.º, n.º 1, do CPC), aquele sujeito pode optar por instaurar a execução na pendência do recurso, o que obstará à apensação. Fatores de conveniência prática podem, de resto, justificar que seja o processo declarativo a apensar ao executivo, e não o inverso, como resulta da parte final da norma acima transcrita.
Todas estas variáveis de regime, sendo uma delas de cariz subjetivo, deixam patentemente a nu que a apensação não pode ser tida como um índice de falta de autonomia da ação executiva e, por arrasto, como justificação para a aplicação do regime de recursos vigente na data de instauração da ação declarativa e não na data de instauração da execução.
Isso mesmo foi entendido e decidido em acórdãos do STJ posteriores ao aqui recorrido (Acórdãos de 6.10.2011 e 14.02.2012), confirmando e reforçando a jurisprudência, nesse sentido, designadamente da Relação de Coimbra.
7. Do que fica dito, pode extrair-se a conclusão de que o critério interpretativo objeto do presente recurso se revela, se não pura e simplesmente arbitrário, em termos estritos, pelo menos desprovido, seguramente, de qualquer fundamento legitimante do diferente tratamento a dispensar a processos executivos ainda não em curso, em 01.01.2008, o mesmo é dizer, não pendentes nessa data. A diferença de regimes aplicáveis aos processos nessas condições não apresenta qualquer nexo de adequação objetiva ao fim da norma, determinante da exclusão dos “processos pendentes” do domínio da lei nova.
Este juízo coloca, prima facie, este critério sob a alçada de uma das proibições decorrentes do princípio da igualdade. Se não é justificável dar relevância distintiva, para fixação da pendência de uma ação executiva, à data de instauração da ação declarativa que lhe fornece o título executivo e a que está apensa, devendo antes ser utilizado como elemento de comparação a data de interposição da própria ação executiva, por atinência ao início de vigência da lei nova, então devem ser valoradas como estando em situação de igualdade, para este efeito, todas as ações executivas interpostas posteriormente a esse início. O tratamento diferenciado do que deve ser tido por igual, à luz do critério relevante, violará, em consequência, o princípio da igualdade.
O conteúdo e alcance dos regimes em confronto oferecem, todavia, resistência a esta aplicação do princípio da igualdade. Se este traduz “uma exigência axiológica à própria lei”, como quer CASTANHEIRA NEVES (O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos supremos Tribunais, Coimbra, 1983, p. 120), tendo como matriz muito próxima a ideia regulativa de base da igual dignidade de todos os homens, então o injustificado tratamento desigual deve simultaneamente representar um tratamento desfavorável, lesivo de interesses, em afetação da igual consideração devida aos respetivos titulares e da “ordem constitucional de valores” (cfr. a declaração de voto de Figueiredo Dias, apensa ao Parecer da Comissão Constitucional n.º 2/81, Pareceres da Comissão Constitucional, 14.º vol., Lisboa, p. 150).
Dificilmente se poderá sustentar ser esse o caso, na questão sub judicio. Na verdade, o regime de recursos novo e o antigo não divergem apenas quanto à duração do prazo de interposição, pois a mudança traduziu-se também (ou sobretudo) na concentração num momento processual único dos atos de interposição do recurso e da apresentação de alegações. Independentemente da configuração do interesse da recorrente, no caso em concreto, numa apreciação em geral e em abstrato não há razões para considerar o novo regime mais favorável, mais facilitativo do efetivo exercício do direito ao recurso. Tudo somado, mais facilmente se poderá defender o contrário.
Sendo assim, a menos que se desligue o princípio da igualdade do seu étimo fundante, parece que estamos fora do seu terreno próprio, mesmo que se adira à ideia de uma “escala móvel da densidade do controlo” (cfr. a referência a este critério praticado pela jurisprudência norte-americana em REIS NOVAIS, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, p. 115), ou mesmo, até, que se atribua ao princípio «uma dimensão material positiva possibilitadora do alargamento da fiscalização jurisdicional a soluções legislativas incongruentes ou contraditórias» (GOMES CANOTILHO, “A concretização da Constituição pelo legislador e pelo Tribunal Constitucional”, Nos dez anos da Constituição, Lisboa, 1987, p. 347 s., 355).
8. A solução de considerar pendente, no início de vigência da lei nova, um processo executivo ainda não instaurado, nessa data, mostra-se, todavia, em si mesma, como surpreendente e imprevisível, em face, desde logo, do enunciado normativo do qual ela é extraída. Nenhum dos cânones hermenêuticos em geral praticados suportam tal interpretação. Distante da letra da lei, ela não é amparada por qualquer outro elemento interpretativo.
Desconhece ainda este Tribunal qualquer corrente jurisprudencial ou doutrinal que a acolha. Pelo contrário, no panorama jurisprudencial dos nossos tribunais superiores é de aplicação generalizada o critério de que só está pendente o processo executivo em que o pedido que é da sua essência e lhe dá identidade própria (“a reparação efetiva do direito violado”) já foi formulado perante o tribunal e ainda não se encontra decidido com trânsito em julgado.
«Ora – como se deixou expresso no Acórdão n.º 413/2002 – se é certo que ao Tribunal Constitucional não compete sindicar o modo como o direito infraconstitucional – e neste âmbito restrito – é interpretado, não pode deixar de ponderar, na apreciação da constitucionalidade de uma determinada interpretação normativa e para efeitos de determinar as consequências que advêm para a parte que ela afeta, o entendimento comum, ou mesmo pacífico, na jurisprudência, sobre a questão».
Assim, não pode o Tribunal deixar de ponderar, em face daquele conjunto de dados, que a solução é de molde a contender com as exigências de calculabilidade e previsibilidade inferíveis do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança. Os interessados em recorrer não podem razoavelmente contar com a interpretação impugnada, mesmo cumprindo os ónus de uma conduta processual diligente e observando os ditames de prudência técnica.
Tal como se julgou no mencionado Acórdão, igualmente quanto a uma interpretação incidente, ainda que noutra dimensão normativa, sobre o direito ao recurso, é, deste modo, afetada «a confiança que a parte deposita no ordenamento jurídico regulador dos meios de defesa dos seus direitos, confiança essa que é tutelada pelo princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da CRP».
O justificado investimento de confiança dessa parte na qualificação de um processo executivo entrado posteriormente ao início de vigência da nova lei como um processo não pendente, nessa data, levou-a à adoção de um comportamento processual que acarreta para si, em face da interpretação que o tribunal recorrido fez da norma impugnada, a perda da possibilidade de exercitar o direito ao recurso.
III - Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
Julgar inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da CRP), a norma do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, quando interpretada no sentido de que às ações executivas intentadas após o início da vigência daquele diploma e que tenham que correr por apenso à ação declarativa, não se aplica o novo regime de recursos instituído por este;
Consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada em conformidade como presente juízo de inconstitucionalidade.
Custas pelo recorrido, fixando-se a taxa em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 24 de abril de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano (com declaração de voto que junto) – Catarina Sarmento e Castro (com declaração de voto) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Embora tenha subscrito a decisão de inconstitucionalidade não acompanhei a fundamentação deste Acórdão, segundo a qual a interpretação normativa fiscalizada, devido ao seu caráter surpreendente e imprevisível, violava o princípio da proibição da violação da confiança, insito na ideia do Estado de direito democrático (Lopes do Rego, em “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, em “Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa”, Coimbra Editora, 2003, pág. 840, defende que uma interpretação inovatória e surpreendente em processo civil pode violar o direito constitucional a um processo equitativo, não deixando, contudo de referir que a declaração dessa inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional é controversa por se situar na fronteira das figuras do controlo normativo e do recurso de amparo).
Na verdade, tenho muitas dúvidas sobre se o juízo fundamentador efetuado pela maioria se insere nos poderes de fiscalização do Tribunal Constitucional, uma vez que estamos perante uma declaração de inconstitucionalidade que tem como pressuposto a constatação de uma contradição flagrante entre uma interpretação da lei surpreendente e imprevisível e a própria lei que defrauda as expectativas do cidadão que recorreu a um processo judicial confiante numa aplicação correta das regras processuais que a lei consagrava.
Penso que estamos perante um caso de inconstitucionalidade indireta (sobre este conceito vide RUI MEDEDEIROS, em “A decisão de inconstitucionalidade”, pág. 360-365, da ed. de 1999, da Universidade Católica), uma vez que o juízo de inconstitucionalidade, embora tendo como parâmetro o princípio estruturante da proibição da violação da confiança, também aqui resulta da verificação prévia de uma interpretação da lei que não está amparada em nenhum dos cânones hermenêuticos em geral praticados, ou seja de uma questão de mera legalidade, cuja competência de controlo, no nosso sistema, escapa ao Tribunal Constitucional.
Entendi, contudo, que a interpretação normativa sindicada, pelo seu conteúdo e não pela sua revelia à lei, não deixava de pôr em causa o direito à existência de um processo equitativo consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição.
A expressão constitucional um processo equitativo é premeditadamente aberta, estando dotada de uma força expansiva que lhe permite alcançar aqueles casos, como o da presente interpretação normativa, que impõe a aplicação simultânea de diferentes regimes processuais, sem um qualquer fundamento legitimante, entre os processos executivos iniciados posteriormente a 01.01.2008, além de, sem razão justificativa, determinar a aplicação de um regime que pode ter vigorado em época bem distante daquela em que foram instauradas as ações executivas.
O critério apontado pela interpretação sindicada revela-se de tal modo arbitrário e inadequado que não pode deixar de merecer a reprovação do imperativo constitucional do processo equitativo.- João Cura Mariano.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tendo embora votado a decisão de inconstitucionalidade da norma do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007, quando interpretada no sentido de que às ações executivas intentadas após o início da vigência daquele diploma e que tenham que correr por apenso à ação declarativa, não se aplica o regime de recursos instituído por este, divergi quanto à fundamentação, por ter tido dúvidas que fosse ainda controlo normativo aquele que se realiza no presente Acórdão, quando se considera que a interpretação normativa em causa, por ser surpreendente e imprevisível, viola o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsito no Estado de direito democrático (artigo 2.º da CRP).
Tê-la-ia, no entanto, considerado inconstitucional por violação do direito a um processo justo e equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP): tal interpretação normativa, ao conduzir, sem razão justificativa bastante, à aplicação simultânea de diferentes regimes processuais para os processos executivos iniciados depois de 1 de janeiro de 2008, considerando pendente, no início da vigência da lei nova, um processo executivo ainda não instaurado, foge a uma conformação justa e adequada do processo, quando encarado no seu conjunto, para as situações que se lhe possam considerar-se subsumíveis. Uma tal solução não tem qualquer fundamento legitimante. Pelo contrário, como resulta claramente da descrição que acompanha a fundamentação do acórdão, a solução preconizada – cuja aplicação, aliás, em muito dependerá de fatores externos – contraria as linhas gerais de um processo que se possa ter como adequado e justo.
Catarina Sarmento e Castro