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Processo n.º 684/98
2ª Secção Relator: Cons. Paulo Mota Pinto (Guilherme da Fonseca)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. J... e mulher M..., ora reclamantes, intentaram contra a C..., S.A, no Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, uma 'acção declarativa de condenação em processo sumaríssimo', na qual estava em causa 'saber se a Ré deve aos AA, a quantia por estes peticionada, o que passa pela questão da remuneração dos depósitos denominados obrigatórios'. Por sentença de 9 de Dezembro de 1997, foi julgada 'totalmente improcedente por não provada' a acção e, em consequência, foi a ré e ora reclamada C..., S.A., absolvida do pedido. Na sentença, depois de se dar como assente que 'só há lugar ao vencimento de juros quando há uma obrigação de capital', faz-se a pergunta
'Haverá nos autos essa obrigação de capital? Ter-se-á estabelecido entre AA. e Ré uma obrigação de capital?'. E a resposta é esta:
'A) Os AA. afirmam que o seu direito aos juros radica no ‘contrato de depósito’ que respeita à conta de depósito à ordem n.º ..., conta de que os AA. são titulares. Vejamos: A expressão ‘depósito bancário’, designa o depósito em dinheiro, que o público efectua, em diversas condições, nos estabelecimentos autorizados para receber depósitos desta espécie. O depositante tendo em vista a guarda ou custódia confia ao banco determinada quantia constituindo-se o banco na obrigação de a reembolsar, nas condições entre os dois ajustadas. Ora, não tem qualquer fundamento tal invocação pelo simples facto de o capital relativamente ao qual se peticionam juros não ter sido depositado pelos A.A. nem ter sido entregue para a conta de que são titulares, não tendo havendo qualquer ajuste entre os AA. e a Ré relativamente a tal capital. O contrário sucede nos depósitos voluntários, em que há a entrega de dinheiro por parte do público a uma instituição bancária, que fica constituída na obrigação de o restituir, nas condições ajustadas entre os dois; nesta vertente, a jurisprudência tem qualificado o depósito como contrato de depósito irregular
– art.º 1205º - ao qual se aplicam as regras do mútuo – art.º 1206º do CC – sem descurar a vertente de contrato de mútuo, tendo como sujeito passivo o banco, que se traduz no facto de o banco ficar autorizado a dispor do dinheiro, pagando uma dada contrapartida que são os juros. Mas como vimos nada disto ocorre no caso dos autos. B) Os AA. invocam ainda o enriquecimento injustificado por parte da R, com o que invocam o enriquecimento sem causa. Vejamos: Dispõe o artº 473º do CC:
‘1. Aquele que, sem causa justificada, enriquecer à custa de outrém é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa , tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou. A obrigação de restituição com base no enriquecimento sem causa depende da verificação de vários requisitos: a)tem de haver um enriquecimento - consiste na obtenção de uma vantagem patrimonial; b)tal enriquecimento tem de carecer de causa justificativa - tem de especial por objecto o que for indevidamente recebido ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que se não verificou; poderá dizer-se que a falta de causa justificativa se traduz na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema legitime o enriquecimento; a falta de causa terá de ser alegada e provada por quem pede a restituição - não bastará não se provar a existência de uma causa de atribuição;
é preciso convencer o tribunal da falta de causa; c)que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição - ao enriquecimento de um há-de corresponder o sacrifício económico de outro, o empobrecimento de outro - mesmo que o titular da coisa não a fruísse, nem por isso se pode deixar de entender que há enriquecimento sem causa, na medida em que tudo quanto os bens sejam capazes de produzir pertence ao respectivo titular; d)finalmente, que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga o direito à restituição - que não haja de permeio, entre o acto gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançado pelo enriquecido um outro acto jurídico.
* a)Em primeiro lugar verificamos que os AA. alegaram que a Ré durante o período alegado deu ao dinheiro a aplicação que entendeu, que produziu rendimentos e que aumentou o património daquela. No entanto a Ré veio negar, no artº 26º da contestação, tal asserção, pelo que cabia aos AA. fazer essa demonstração, o que não aconteceu. Na verdade, em sede de enriquecimento sem causa a lei não se basta com uma abstracção, carecendo, neste domínio, de concretização, de efectividade. b)Mesmo que assim não fosse, os AA. não alegavam a falta de causa para o enriquecimento que alegavam, limitando-se a enunciar o conceito jurídico de
'enriquecimento injustificado' sem justificarem, sendo certo que reconhecem implicitamente que a Ré estava obrigada a receber em depósito as rendas. c) Como resulta de fls. 18, o senhorio recusou receber as rendas. Essa recusa é juridicamente indivisível, no sentido em que não é possível aceitar que produza uns efeitos e não aceitar que produza outros. Assim, ao recusar receber as rendas, o senhorio determinou que as mesmas fossem depositadas, aceitando portanto que as mesmas ficassem fora da sua esfera jurídico patrimonial, da sua titularidade. Na verdade, as quantias referentes às rendas só passaram para a titularidade dos AA. com o seu levantamento. Até lá aguardaram a decisão do tribunal, tanto mais quanto foram feitas condicionalmente. Donde ainda que tal capital tivesse produzido algum rendimento, durante o referido período, não seriam os AA. os titulares do mesmo por não serem os titulares do capital. d)Finalmente, a haver um enriquecimento e um empobrecimento, ele não teria sido obtido imediatamente à custa dos AA. na medida em que de permeio se intrometeu um acto jurídico licito, qual seja, o depósito necessário das rendas. A haver enriquecimento ele decorreria do depósito necessário, face à recusa dos AA. em receber as rendas. Conclui-se assim não haver qualquer enriquecimento sem causa'.
2. J... e mulher M... interpuseram recurso de constitucionalidade desta sentença. Por despacho de 10 de Março de 1998, não foi admitido 'o recurso interposto pelos AA. da sentença de fls. 50 para o Tribunal Constitucional', por se entender que, vindo ele fundado no disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, 'nunca foi suscitada durante o processo' a inconstitucionalidade de determinado grupo de normas e, relativamente a outro grupo de normas, 'muito embora a sua inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, a verdade é que as mesmas não foram aplicadas por este Tribunal como decorre da leitura da sentença'. Nesse despacho vêm assim identificadas as normas a que recurso de constitucionalidade diz respeito:
'artºs 514º, n.º 1 e 664º do CPC, artº 342º, n.º 1, 473º, 1022º, 1038º alínea a)
1041º n.ºs 1,2,3 e 4 e 1042º n.ºs 1 e 2 do CC, artºs 20º, 22º, 25º, 27º e 28º do DL 321-
-B/90, de 15 de Outubro – alínea A), B), C), D) e E) do requerimento de interposição de recurso – e artº 2º do Dec. n.º 19706, de 07.05.1931, artºs 1º e
2º do DL n.º 693/70, artº 26º n.º 2 do DL n.º 694/70, artº 9º n.º 2 do DL n.º 48
953, de 05.04.69, dos despachos do Ministro das Finanças de 22.12.44 e do secretário de Estado do Tesouro de 22.05.70 – alínea F) do requerimento de interposição do recurso'. E acrescenta-se no despacho, imediatamente antes da decisão:
'1)Relativamente às normas indicados nas alíneas A) a E) do requerimento de interposição do recurso, a sua inconstitucionalidade nunca foi suscitada durante o processo, pelo que nessa parte o requerimento de interposição do recurso é ilegal;
2)Relativamente às normas indicadas na alínea F) do requerimento de interposição do recurso, muito embora a sua inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, a verdade é que as mesmas não foram aplicadas por este tribunal como decorre da leitura da sentença'.
3. Inconformados, os recorrentes apresentaram neste Tribunal Constitucional reclamação 'do despacho que não admitiu o recurso de constitucionalidade que interpuseram da sentença proferida' no Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, de 9 de Dezembro de 1997. Do extenso requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade colhe-se, na verdade, a identificação das normas referidas no despacho reclamado. No requerimento da reclamação, os reclamantes praticamente repetem o discurso do requerimento do recurso, sustentando aquela, em síntese, nestes termos: o o em relação às normas a que se refere a alínea 2) do despacho reclamado, 'as mesmas foram efectivamente aplicadas na sentença', não de forma expressa, 'mas foram-no implicitamente como implicitamente foram julgadas conformes com a Constituição', como resulta do 'trecho da decisão' em que se aborda a matéria do enriquecimento sem causa. o o em relação às normas a que se refere a alínea 1) do mesmo despacho, 'tem-se por conveniente referir que, tratando-
-se de um processo que segue a forma sumaríssima, os autores não têm qualquer oportunidade de suscitarem questões depois de a petição inicial dar entrada em juízo', mas, de qualquer modo, os reclamantes nunca podiam esperar que tais normas 'fossem interpretadas, ao arrepio da doutrina e de toda a jurisprudência, por forma tão insólita que é desrazoável e inadequado exigir-lhes um prévio juízo de prognose sobre essa aplicação, pelo que devem ser dispensados da suscitação prévia à sentença da inconstitucionalidade das mesmas, na interpretação adoptada pelo tribunal'.
3. No seu visto o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que a presente reclamação deve ser julgada improcedente, 'por não se verificarem manifestamente os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto, fundado na alínea b) do n.º 1 do artº 70º da Lei n.º 28/82'. Diz o Ministério Público:
'A decisão que os ora reclamantes pretendiam impugnar limitou-se a:
- considerar que, no caso dos autos, não houve qualquer celebração, entre os ora reclamantes e a ré C..., de um qualquer contrato de depósito bancário;
- decidir que – quanto ao invocado enriquecimento sem causa da ré à custa dos autores – não resultaram provados os factos que integrariam a ‘fattispecie’ do art. 473º do C.Civil.
É manifesto, quanto à primeira daquelas questões, que ela se situa inteiramente fora dos poderes cognitivos deste Tribunal, que carece naturalmente de competência para interpretar e aplicar o direito infraconstitucional, qualificando os negócios jurídicos celebrados pelas partes. Por outro lado – e quanto à segunda das questões em que se fundou a improcedência da acção – é manifesto que, para além de os ora reclamantes não terem suscitado tal questão de inconstitucionalidade, reportada à norma do art.
473º do C C, ‘durante o processo’, que a sentença não fez sequer a interpretação, alegadamente inconstitucional de tal preceito, limitando-se a considerar como é inquestionável, que é ao A. que cabe provar os factos constitutivos do direito que invoca.'
4. Vistos os autos, cumpre decidir. II. Fundamentos
6. O recurso de constitucionalidade que não foi admitido vinha interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. A admissibilidade deste tipo de recurso depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos específicos: o o Aplicação da norma impugnada como ratio decidendi pela decisão recorrida; o o Suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo; o o Esgotamento dos recursos ordinários. As reclamações sobre não admissão dos recursos intentados para o Tribunal Constitucional destinam-se a verificar a eventual preterição da devida reapreciação, pelo Tribunal Constitucional, de uma questão de constitucionalidade. Assim, importa apreciar o preenchimento dos requisitos do recurso de constitucionalidade que os ora reclamantes pretenderam interpor.
5. Começando pelo grupo de normas (identificadas na referida alínea 2)) que, segundo o despacho reclamado, 'não foram aplicadas (...) como decorre da leitura da sentença', é fácil de ver, como opina o Ministério Público, que não se verifica o requisito da aplicação de tais normas como critério da decisão da qual foi interposto o recurso de constitucionalidade. Efectivamente essa aplicação não ocorreu, e na própria sentença isso mesmo ficou dito na parte final:
'A Ré invocou diversas normas dos seus Estatutos. E nessa sequência os AA. vieram alegar a sua inconstitucionalidade. No entanto e uma vez que não há lugar à aplicação de tais normas, não há que proceder à apreciação da sua inconstitucionalidade'. Se é certo que a C... reclamada, ao contestar a acção, veio, por impugnação, dizer, 'que se está perante um depósito obrigatório e como tal e na sequência dos despachos – do Ministério das Finanças – os depósitos de consignação de rendas de habitação deixaram de vencer juros desde 01.01.45', e que, notificados os reclamantes da contestação, vieram arguir, em requerimento autónomo, a inconstitucionalidade das apontadas normas, identificadas na referida alínea 2) do despacho reclamado, a verdade é que na sentença, se trata a pretensa relação jurídica estabelecida entre as partes como 'não tendo havido qualquer ajuste entre os AA. e a Ré relativamente a tal capital' [isto é, o 'capital relativamente ao qual se peticionam juros não ter sido depositado pelos AA. nem ter sido entregue para a conta de que são titulares']. E esta qualificação, envolvendo o direito infraconstitucional e envolvendo ainda o juízo de que 'não há lugar à aplicação de tais normas', não pode ser censurada por este Tribunal Constitucional, por escapar aos seus poderes de cognição, sendo certo que é apenas com tal qualificação que se prende a dita arguição de inconstitucionalidade. Portanto, nesta parte (alínea 2), citada), não merece censura o despacho reclamado, não podendo acompanhar-se os reclamantes na afirmação de que houve uma aplicação implícita das normas em causa, só porque se analisou na sentença,
à luz do artigo 473º do Código Civil, a 'obrigação de restituição com base no enriquecimento sem causa', apontando-se, a tal propósito, os requisitos de que depende.
6. Passando, depois, ao grupo de normas para a quais se entendeu, na alínea 1) do despacho reclamado, que 'a sua inconstitucionalidade nunca foi suscitada durante o processo', também não se pode entender que a razão está do lado dos reclamantes, já por tais normas não terem sido aplicadas na sentença recorrida, na interpretação cuja constitucionalidade foi contestada, já por os reclamantes não se deverem 'ser considerados dispensados, em relação àquelas, da suscitação', conforme defendem. Assim, na alínea A) do requerimento de reclamação referem-se as normas dos artigos 664º e 514º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
É patente, todavia, que este artigo 664º do Código de Processo Civil não foi aplicado, como ratio decidendi, na sentença de que se pretendeu recorrer, nem na interpretação segundo a qual o tribunal estaria vinculado à qualificação jurídica efectuada pelas partes (alínea A) do requerimento de reclamação), nem naquela segundo a qual o juiz estaria autorizado a servir-se de factos não alegados (referida na alínea D)). Assim, na referida sentença não se encontra, desde logo, qualquer referência a uma vinculação do juiz à qualificação jurídica. A aplicação do artigo 664º do Código Civil com tal sentido só poderia ser, portanto, implícita. Todavia, na sentença não se entendeu que não existia um contrato a favor de terceiro, resultante do depósito das rendas, por se 'ter interpretado o referido preceito no sentido de o Juiz estar limitado pela qualificação jurídica das partes e proibir diferente qualificação'. O Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, na verdade, não fez qualquer referência a uma limitação do tribunal pela qualificação jurídica das partes, justamente por tratar expressamente da questão da existência de um contrato de depósito, referindo que 'não tem qualquer fundamento tal invocação [de um contrato de depósito] pelo simples facto de o capital relativamente ao qual se peticionam juros não ter sido depositado pelos A.A. nem ter sido entregue para a conta de que são titulares, não tendo havendo qualquer ajuste entre os AA. e a Ré relativamente a tal capital' (itálico nosso), dizendo-se que 'o contrário sucede nos depósitos voluntários'. A sentença exclui, portanto, qualquer contrato em que os autores sejam partes ou beneficiários. Nada permite concluir que a exclusão de uma qualificação para a situação jurídica analisada na sentença do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa tenha ocorrido como consequência da aplicação do artigo 664º do Código de Processo Civil, na interpretação cuja constitucionalidade foi impugnada, mas sim antes como consequência da matéria de facto provada. Impugnam ainda os reclamantes uma outra dimensão interpretativa deste artigo
664º, que teria sido aplicada como critério de decisão da referida sentença: a sua interpretação no sentido de autorizar que o juiz se sirva de factos não alegados (Alínea D do requerimento), designadamente, o facto de o autor ter recusado receber as rendas – o tribunal teria dado 'como provado um facto que nem sequer foi alegado pelas partes'. Ora, na sentença pode ler-se efectivamente que, 'como resulta de fls. 18, o senhorio recusou receber as rendas'. Todavia, esta afirmação não implica que o tribunal tenha interpretado esse artigo 664º, no sentido de o tribunal se poder servir de factos não alegados, desde logo porque esse artigo remete para o artigo 264º do mesmo Código de Processo Civil, o qual permite que o juiz se funde na 'consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa'. A ter sido aplicado algum artigo com o sentido impugnado, teria sido, portanto, este artigo 264º, n.º 2, do Código de Processo Civil. De todo o modo, mesmo a ter a norma impugnada sido aplicada na decisão recorrida com o sentido atacado pelos reclamantes, é certo, todavia, não ter ela constituído a sua ratio decidendi. A sentença recorrida começou, por, a propósito do enriquecimento sem causa, verificar que os autores não provaram nem alegaram a ausência de causa. Além disso, salientou que, 'a haver um enriquecimento e um empobrecimento, ele não teria sido obtido imediatamente à custa dos AA'. Neste contexto, a
'indivisibilidade' da recusa de receber as rendas, 'no sentido em que não é possível aceitar que produza uns efeitos e não aceitar que produza outros', e a ideia de que o senhorio terá com essa recusa aceitado 'que as mesmas ficassem fora da sua esfera jurídico patrimonial, da sua titularidade' constitui mero argumento adjuvante à conclusão a que chegou a sentença. Não pode duvidar-se, pois, que chegaria ao mesmo resultado, ainda que não tivesse considerado tal facto, desde logo por não se ter provado a ausência de causa do enriquecimento, e por este não ter sido obtido à custa dos autores senão mediatamente. Não pode, em suma, considerar-se que a aplicação do artigo 664º do Código de Processo Civil, com os sentidos interpretativos impugnados, tenha constituído ratio decidendi da sentença em causa, como sempre seria necessário para se poder conhecer do recurso.
7. Quanto ao artigo 514º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sustentam os reclamantes que, ao 'não se ter dado como provado que a ré deu ao dinheiro depositado uma aplicação que produziu rendimentos que aumentaram o seu património', sendo do conhecimento de todos que 'a ré aplica o dinheiro que recebe dos depositantes em diversas operações activas das quais obtém rendimentos, como a concessão de empréstimos e a compra de moeda estrangeira', a sentença em questão interpretou tal norma no sentido de os factos notórios não estarem dispensados de prova. Todavia, não se refere em passo algum dessa sentença que o facto em causa é um facto notório, não se podendo dizer que a sentença em causa, admitindo essa notoriedade, exigiu a prova dos factos em questão. Antes a leitura da sentença inculca que o tribunal recorrido não considerou tal facto notório, por isso mesmo exigindo que, na sequência da sua contestação pela ré, os autores fizessem a sua prova.
É o que resulta da afirmação, nessa sentença, que 'a Ré veio negar, no artº 26º da contestação, tal asserção [referida ao facto em causa], pelo que cabia aos AA. fazer essa demonstração, o que não aconteceu' (itálico aditado); e que 'na verdade, em sede de enriquecimento sem causa a lei não se basta com uma abstracção, carecendo, neste domínio, de concretização, de efectividade'. Também não se pode, pois, afirmar que o artigo 514º, n.º 1, do Código de Processo Civil tenha sido aplicado na sentença em questão com a interpretação impugnada no recurso de constitucionalidade. Quanto à parte do recurso de constitucionalidade que se referia às normas dos artigo 664º e 514º, n.º 1 do Código de Processo Civil nada há, em suma, a censurar ao despacho reclamado.
8. Vieram também os reclamantes arguir no requerimento de recurso a inconstitucionalidade das normas dos 'artºs 342º n.º 1, 473º, 1022º, 1038º alínea a) 1041º n.ºs 1,2,3 e 4 e 1042º n.ºs 1 e 2 do CC, artºs 20º, 22º, 25º,
27º e 28º do DI 321-B/90, de 15 de Outubro', com o sentido interpretativo com que foram aplicados nos seguintes termos que dele se extraem:
'C) Os autores não terem provado a falta de causa do enriquecimento alegado. A sentença interpretou os artºs. 342º, n.º 1. e 473º', ambos do CC no sentido de competir aos alegantes a prova de tal facto, o que é uma violência, já que se trata de um facto negativo, impossível de provar'
(...) E) Se ter considerado que as rendas só ingressaram na titularidade dos autores quando foi efectuado o levantamento das mesmas. Para assim julgar o tribunal interpretou os artºs. 1022º, 1038º, al. a), 1041º, n.ºs 1 e 2, 3 e 4, 1042º, n.ºs 1 e 2, todos do CC e 20º, 22º, 25º, 27º e 28º todos do Dec.-Lei n.º.
321-B/90, de 15 de Outubro, no sentido de que as rendas vencidas na pendência da acção de despejo não pertencem ao senhorio enquanto não for proferida decisão definitiva. Ora, uma tal interpretação, na medida em que despojou os autores daquilo que era seu, viola os princípios do Estado de Direito democrático, da justiça e da protecção da propriedade privada, plasmados nos artºs 2º, e 62º, n.º 1, ambos da Constituição.' Está, portanto, em questão, nestas alíneas C) e E) do requerimento da reclamação, o despacho reclamado enquanto não admitiu o recurso de constitucionalidade relativo às seguintes normas: o o artigos 342º, n.º 1. e 473º, ambos do Código Civil, na interpretação conjugada segundo a qual compete a quem alega o enriquecimento sem causa a prova da falta de causa do enriquecimento alegado; o o artigos 1022º, 1038º, al. a), 1041º, n.º.s 1 e 2, 3 e 4,
1042º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Civil, e artigos 20º, 22º, 25º, 27º e 28º, do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, na interpretação conjugada segundo a qual as rendas vencidas na pendência da acção de despejo e depositadas a favor do senhorio não pertencem a este enquanto não for proferida decisão definitiva. Ora, relativamente a estas normas, a verdade é que não pode considerar-se atempada e adequadamente cumprido o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade pelos ora reclamantes. Na verdade, suscitar a questão da inconstitucionalidade (normativa) durante o processo não é - como, aliás, unanimemente se entende - fazê-lo antes de terminado o processo, mas sim num momento em que a questão da constitucionalidade ainda possa ser conhecida, em termos de sobre ela o tribunal a quo se vir a pronunciar. Como se decidiu no Acórdão n.º 352/94 (publicado no Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994), deve entender-se a exigência de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, 'não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas 'num sentido funcional', de tal modo 'que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão', 'antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita'. É este o único sentido do dito requisito que corresponde à natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, para reapreciação, portanto, de uma questão suscitada antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-
-se sobre ela (ver também o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República, II série, de 20 de Junho de 1995). Esta orientação, como também se salientou nos Acórdãos citados, apenas em circunstâncias excepcionais, anómalas (cfr., v.g., os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 94/88, 51/90, e 61/92, publicados no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de 1988, 12 de Julho de 1990 e 18 de Agosto de 1992, respectivamente) conhece restrições, admitindo-se diferir para o momento da interposição do recurso de constitucionalidade a definição da questão de constitucionalidade que se quer ver apreciada, dada a inexigibilidade da suscitação, em momento anterior, da questão de constitucionalidade, nomeadamente considerando o carácter insólito ou absolutamente inesperado da aplicação da norma impugnada, ou de uma sua dada interpretação. Assim, é certo que os problemas a que se referem as normas indicadas nas citadas alíneas C) e E) estavam postos aos reclamantes desde o início da acção, referida esta, como era, tão-só aos juros dos depósitos – estes constituíam, pois, o objecto do pedido na acção interposta pelos ora reclamantes, sendo certo que, como é óbvio, o direito a esses juros dependia da titularidade dos montantes em causa. Tendo, designadamente, em consideração a circunstância de a acção ser dirigida à obtenção apenas dos juros, a posição acolhida na sentença quanto à questão do ingresso das rendas depositadas durante a pendência de acção de despejo na titularidade do senhorio não pode considerar-se insólita ou imprevista, de tal modo que os reclamantes pudessem considerar-se dispensados do ónus de suscitar a inconstitucionalidade de interpretação contrária. Na verdade, sendo o objecto da acção interposta pelos autores constituído pelos juros relativos às rendas, o ingresso destas na sua titularidade, enquanto senhorio, era um pressuposto do direito a esses juros. Tratava-se, pois, de um ponto do qual dependia o pedido principal feito na acção por eles intentada, pelo que os autores, se defendessem a inconstitucionalidade das normas referidas, na interpretação segundo a qual as rendas não ingressaram na sua titularidade, deveriam ter desde logo suscitado tal inconstitucionalidade, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, para obter deste uma pronúncia sobre tal questão de constitucionalidade. Não o fizeram, e não se pode considerar que a posição seguida pela sentença do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa constitua, quanto a este ponto, uma 'decisão-surpresa', no sentido de uma decisão que faz uma interpretação e aplicação insólita, que os ora reclamantes não pudessem e devessem prever. E a mesma inexistência de qualquer 'decisão-surpresa' deve afirmar-se quanto ao problema do ónus da prova da falta de causa do enriquecimento, que, respeitando a um facto constitutivo da pretensão dos autores, foi posto a cargo destes, de acordo com a regra geral do artigo 342º do Código Civil. A interpretação efectuada na sentença em relação ao ónus da prova da falta de causa do enriquecimento (posto a cargo dos autores), não se afigura, assim, imprevista ou de toda a forma insólita, de modo a constituir uma
'decisão-surpresa', que aplique as normas em questão numa dimensão interpretativa tal que não podia ser antecipada pelos ora reclamantes para efeito de suscitação da sua inconstitucionalidade. Antes pelo contrário, a decisão recorrida seguiu o entendimento maioritário na doutrina e na jurisprudência, segundo o qual 'a falta de causa terá de ser não só alegada como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no artigo 342º, por quem pede a restituição' (Antunes Varela/Pires de Lima, Código Civil anotado, vol. I,
4ª ed., com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, pág. 456, e, já no domínio do Código de 1867, Luiz da Cunha Gonçalves, Tratado de direito civil em comentário ao Código Civil Português, vol. IV, Coimbra, 1931, pág. 747; na jurisprudência, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Julho de
1970 e 14 de Janeiro de 1972 e do Tribunal da Relação do Porto de 7 de Maio de
1969, in Boletim do Ministério da Justiça, respectivamente nos n.ºs 199, págs.
190 e segs., 213, págs. 214 e segs. e 194, pág. 188). Assim, os ora reclamantes deveriam, caso sustentassem a inconstitucionalidade das normas referidas, numa das aludidas interpretações, ter aproveitado a petição inicial para logo suscitar tal inconstitucionalidade, uma vez que as questões de que tratavam se referiam a aspectos conexos com o objecto da acção que interpuseram e uma vez que a sentença recorrida não efectuou dessas normas qualquer interpretação ou aplicação insólita ou imprevisível.
10. Em suma: não podem considerar-se preenchidos os requisitos exigidos no n.º
1, alínea b), do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional para o recurso de constitucionalidade que os ora reclamantes pretenderam interpor, designadamente: o o o requisito da aplicação das normas como rationes decidendi na decisão recorrida (para as normas dos artigos 664º e 514º, n.º 1, do Código de Processo Civil); o o o requisito da suscitação atempada e de forma processualmente adequada da questão de constitucionalidade durante o processo (para as normas dos artigos 342º, n.º 1, 473º, 1022º, 1038º, al. a), 1041º, n.º.s 1 e 2, 3 e 4,
1042º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, e dos artigos 20º, 22º, 25º, 27º e 28º, do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro. Pelo que não pode a presente reclamação ser deferida, mantendo-se, embora por fundamentos parcialmente diversos, a decisão, decorrente do despacho reclamado, de não admissão do recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação e condenar os reclamantes em custas, fixando a taxa de justiça em 15 UC. Lisboa, 13 de Janeiro de 1999 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca (vencido, conforme declaração de voto junta) Declaração de voto
1- Votei vencido, por achar que, em parte, deveria ser atendida a reclamação, mais precisamente quanto às normas do Código Civil e do Decreto-Lei nº321-B/90, de 15 de Outubro, identificadas no ponto 8. do acórdão, com o sentido interpretativo com que foram aplicadas na sentença recorrida. Acompanhando, no mais, o acórdão, embora com algumas dúvidas relativamente à parte do recurso de constitucionalidade que se referia às normas dos artigos
664º e 514º, nº 1, do Código de Processo Civil (pontos 6. e 7. do acórdão), dele dissenti no ponto em causa, quando entende que 'não pode considerar-se atempada e adequadamente cumprido o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade pelos ora reclamantes', na linha da orientação jurisprudencial deste Tribunal Constitucional.
É que, tratando-se no caso de uma acção declarativa de condenação com processo sumaríssimo, decorre do ritualismo processual dos artigos 793º e seguintes do Código de Processo Civil – a versão actual e vigente e a anterior não diferem no que aqui interessa – que nesse tipo de acção só há dois articulados, sendo a contestação apenas 'notificada ao autor', e 'não há recurso' da sentença. Assim sendo, só após a sentença o autor poderá tomar posição quanto a eventuais questões de inconstitucionalidade com que se confronte face à decisão final que lhe for desfavorável, e o momento adequado será o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, não sendo exigível que antecipe possíveis juízos de inconstitucionalidade na petição inicial ou que o faça na 'breve alegação oral' que a lei prevê na audiência final, finda a produção de prova. E é o que acontece nos presentes autos, pois os reclamantes vieram arguir a inconstitucionalidade no referido requerimento das normas dos ' artºs 342º nº 1,
473º, 1022º, 1038º alínea a) 1041º nºs 1,2,3 e 4 e 1042º nºs 1 e 2 do CC, artºs
20º, 22º, 25º, 27º e 28º do DI 321-B/90, de 15 de Outubro', com o sentido interpretativo com que foram aplicados, nos seguintes termos que dele se extraem:
'C) Os autores não terem provado a falta de causa do enriquecimento alegado. A sentença interpretou os artºs. 342º, nº 1. e 473º', ambos do CC no sentido de competir aos alegantes a prova de tal facto, o que é uma violência, já que se trata de um facto negativo, impossível de provar' E) Se ter considerado que as rendas só ingressaram na titularidade dos autores quando foi efectuado o levantamento das mesmas. Para assim julgar o tribunal interpretou os artºs. 1022º, 1038º, al. a), 1041º, nºs 1 e 2, 3 e 4, 1042º, nºs
1 e 2, todos do CC e 20º, 22º, 25º, 27º e 28º todos do Dec.-Lei nº. 321-B/90, de
15 de Outubro, no sentido de que as rendas vencidas na pendência da acção de despejo não pertencem ao senhorio enquanto não for proferida decisão definitiva. Ora, uma tal interpretação, na medida em que despojou os autores daquilo que era seu, viola os princípios do Estado de Direito democrático, da justiça e da protecção da propriedade privada, plasmados nos artºs 2º, e 62º, nº 1, ambos da Constituição'
2- Exigir-se, como fez o acórdão, que os 'ora reclamantes deveriam, caso sustentassem a inconstitucionalidade das normas referidas, numa das aludidas interpretações, ter aproveitado a petição inicial para logo suscitar tal inconstitucionalidade', constitui uma posição restritiva e manipuladora dos direitos processuais das partes aqui os autores na acção, pois estes teriam de transformar o articulado – que é simples por natureza, como decorre do artigo
793º - numa peça de discussão jurídico-constitucional acerca da 'questão do ingresso das rendas depositadas durante a pendência de acção de despejo na titularidade do senhorio' e acerca do 'problema do ónus da prova da falta de causado enriquecimento', antecipando os virtuais juízos de
(in)constitucionalidade a que poderia chegar o julgador na sentença. Quando, como é típico de uma acção com processo sumaríssimo, estariam até os autores na expectativa de ganho fácil da causa, nomeadamente, se a acção não fosse contestada, sendo que a estratégia processual na petição inicial deve reduzir-se ao mínimo possível, para surpreender a parte contrária com a pretensão e os seus fundamentos. Portanto, nesse quadro, a sentença é sempre uma 'decisão-surpresa', com o sentido que nela se faz da interpretação e aplicação das normas jurídicas convocáveis no caso. Se se admitir, como diz o acórdão, que é de 'diferir para o momento da interposição do recurso de constitucionalidade a definição da questão de constitucionalidade que se quer ver apreciada' dada a inexigibilidade da suscitação, em momento anterior, da questão de constitucionalidade, este é um dos casos – face à sua tipologia processual – em que se deve também admitir tal diferimento, mesmo que não revista em rigor 'carácter insólito ou absolutamente inesperado' a aplicação da norma em causa, ou de uma sua dada interpretação. Luis Nunes de Almeida