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Proc. nº 1056/98
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. O Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Ponte da Barca deduziu acusação contra J...., M.... e V..., imputando-lhes a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível nos termos do artigo
21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com a redacção da Lei nº
55/95, de 3 de Setembro. O primeiro e o terceiro arguidos foram ainda acusados da prática de um crime de consumo de estupefacientes, previsto e punível nos termos do artigo 40º do citado Decreto-Lei nº 15/93.
A fls. 223 verso, foi proferido despacho de manutenção da medida de coacção prisão preventiva aplicada no processo ao arguido J....
O Tribunal Judicial de Ponte da Barca, por acórdão de 12 de Fevereiro de 1998, julgou a acusação parcialmente procedente, condenando os arguidos J... e M... como co-autores de um crime de tráfico de estupefacientes. O tribunal condenou ainda os arguidos J... e V..., singularmente, como autores de crimes de consumo de estupefacientes.
O colectivo de juízes que proferiu o acórdão condenatório integrou o juiz que proferiu o despacho de manutenção da medida de coacção prisão preventiva.
2. J... e M... interpuseram recurso do acórdão de 12 de Fevereiro de 1998 para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 40º do Código de Processo Penal interpretado no sentido de permitir a participação no julgamento do juiz que proferiu o despacho de manutenção de prisão preventiva, por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição.
O Supremo Tribunal de Justiça , por acórdão de 24 de Setembro de
1998, negou provimento ao recurso. Relativamente à questão de constitucionalidade suscitada, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que a situação dos autos é diferente da situação julgada pelo Tribunal Constitucional nos Acórdãos nºs 935/96 (D.R., II Série, de 11 de Dezembro de 1996) e 186/98
(D.R., I Série, de 20 de Março e 1998). No caso em apreciação, o juiz que interveio no julgamento apenas manteve a prisão preventiva no cumprimento da exigência do reexame trimestral dos pressupostos da medida de coacção (artigo
213º do Código de Processo Penal); o Tribunal Constitucional, nos acórdãos referidos, julgou inconstitucional a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal interpretado no sentido de permitir a intervenção no julgamento do juiz que na fase do inquérito decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva. Com esse fundamento, o Supremo Tribunal de Justiça não julgou inconstitucional a norma tal como foi aplicada nos autos.
3. J... e M... interpuseram recurso de constitucionalidade do acórdão de 24 de Setembro de 1998, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 40º do Código de Processo Penal, tal como foi aplicada pela decisão recorrida. Os recorrentes afirmam que essa norma viola os artigos 32º, nºs 1, 2, 4 e 5, e 13º da Constituição.
Junto do Tribunal Constitucional, os recorrentes apresentaram alegações que concluíram do seguinte modo:
1. A norma constante do artigo 40º do Código de Processo Penal na parte que permite a intervenção no julgamento do juiz que na fase de inquérito decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido é inconstitucional por violação do artigo 32º, nº 5 da CRP;
2. O processo lógico de cognição dos pressuposto de facto e de direito , que conduz ao decretamento da prisão preventiva é o mesmo que permite o reexame dos pressupostos da prisão preventiva;
3. Tal reexame e manutenção da prisão preventiva por parte do juiz julgador vincula-o e influencia a genuidade dos suas decisões;
4. A norma do artigo 40º do CPP, considerada a alteração introduzida pela Lei nº
59/98 de 25 de Agosto, na parte que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, manteve a prisão preventiva do arguido em segundo reexame trimestral, é inconstitucional por violação do artigo 32º, nº 5 da CRP;
5. O douto acórdão recorrido violou por errada interpretação os artigos 40º do CPP e o art. 32º, nº 5 da CRP.
Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, tendo tirado as seguintes conclusões:
1º - A doutrina emergente do decidido no acórdão nº 186/98 deste Tribunal não deve conduzir à conclusão de que qualquer intervenção pontual do juiz. em fases anteriores ao julgamento, apreciando nomeadamente a subsistência de medidas de coacção aplicadas ao arguido, determina o seu impedimento para integrar o órgão colegial competente para a audiência final. com base em suspeição acerca da imparcialidade do julgador.
2º - Na verdade, tal juízo de suspeição pressupõe que as intervenções do juiz. pela sua frequência, intensidade e relevância, determinem, em termos de plausibilidade, o surgimento de uma dúvida séria e razoável sobre a isenção e imparcialidade do julgador na valoração dos factos e da culpa do arguido.
3º - Não justifica tal suspeição o facto de o juiz que integrou o colectivo se ter limitado, aquando da reapreciação trimestral da situação de prisão preventiva do arguido, em fase ulterior ao encerramento do inquérito e à dedução da acusação pública, ter considerado que inexistiam factos novos ou supervenientes em que se pudesse fundar a modificação da medida de coacção anteriormente imposta ao arguido, por outro juiz.
4. Tudo visto, cumpre decidir.
II Fundamentação A A questão de constitucionalidade suscitada
5. A situação processual que suscitou nestes autos o recurso de constitucio-nalidade foi a prolação, por um dos juízes do julgamento (que viria a integrar o Tribunal Colectivo), de um despacho de manutenção da prisão preventiva do arguido, no contexto do reexame trimestral dos pressupostos daquela medida de coacção, nos termos do artigo 213º do Código de Processo Penal.
A questão de constitucionalidade que importa resolver é a de saber se uma intervenção desta espécie numa fase anterior à da audiência de julgamento, fundamentada no conteúdo normativo do artigo 40º do Código de Processo Penal de 1987 na sua versão originária (anterior à entrada em vigor da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto), prejudicará as garantias de isenção e imparcialidade do julgador inerentes à estrutura acusatória do Processo Penal
(artigo 32º, nº 5, da Constituição), violará, de um modo geral, as garantias de defesa do arguido (artigo 32º, nºs 1 e 2, da Constituição) e contenderá com a distinção constitucionalmente pressuposta entre o juiz de instrução e o juiz de julgamento (artigo 32º, nº 4, da Constituição). A estas questões acresce como objecto da questão de constitucionalidade uma eventual violação do artigo 13º da Constituição, tendo em conta que o artigo 40º do Código de Processo Penal foi julgado inconstitucional por anteriores Acórdãos do Tribunal Constitucional e viria a ser declarado inconstitucional com força obrigatória geral pelo Acórdão nº 186/98, ao abrigo dos artigos 281º, nº 3, da Constituição e 82º da Lei do Tribunal Constitucional.
6. O juízo de constitucionalidade pressupõe, por um lado, o confronto entre o preceito do artigo 40º do Código de Processo Penal, na interpretação acolhida pelo tribunal a quo, e as normas constitucionais referentes às garantias do Processo Penal, e por outro, o cotejo daquela interpretação normativa com as razões que levaram à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral constante do Acórdão nº
186/98.
A segunda questão será dilucidada previamente, visto que, a verificar-se uma identidade plena entre a dimensão normativa do artigo 40º considerada inconstitucional e a que foi adoptada pelo acórdão recorrido, se estará ainda no campo de uma pura aplicação da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Ora, quanto a este ponto, o Tribunal entende que a concreta dimensão normativa declarada inconstitucional pelo Acórdão nº 186/98 não se verifica no caso concreto.
Com efeito, nos outros processos, esteve sempre em causa a decretação e posterior manutenção da prisão preventiva pelo juiz que viria a tomar parte no julgamento, num contexto de delimitação entre uma intervenção esporádica e isolada e uma intervenção reiterada, conducente, tanto no plano das condições de formação da convicção subjectiva como no plano das representações do arguido e da sociedade, a que a imparcialidade e a isenção do juiz no julgamento sejam prejudicadas. Assim, nos acórdãos em que se fundamentou o Acórdão nº 186/98, foi invocada, explicitamente, a reiteração da actividade instrutória, pela reapreciação da medida de coacção por quem a decretou, e a existência de circunstâncias especiais reveladoras de uma firme convicção da culpabilidade do arguido pelo juiz que realizou os actos instrutórios (cf. Acórdão nº 935/96, precedentemente citado) tendo sido integralmente acolhida pelo Acórdão nº 186/98 essa fundamentação.
Por outro lado, rejeita-se, claramente, no Acórdão nº 186/98, que a simples decretação da prisão preventiva consubstancie uma violação da Constituição. E, nesse sentido, se exprimiu o Acórdão nº 186/98 invocando o Acórdão nº 114/95, da 1ª Secção (D.R., II Série, nº 95, de 22 de Abril de 1995) que não considerou inconstitucional o artigo 40º do Código de Processo Penal, na medida em que não obsta a que participe no julgamento o juiz que praticou actos esporádicos na fase instrutória. Está, assim, fora de causa que a situação retratada nos autos corresponda exactamente à dimensão normativa declarada inconstitucional pelo Acórdão nº 186/98. O Acórdão nº 186/98 sustentou uma lógica de reiteração e de verificação de circunstâncias especiais que afectam a imparcialidade e a isenção do juiz que não se verificam neste caso. Restará, todavia, a questão de saber se a manutenção da prisão preventiva numa fase posterior à formulação da acusação e anterior à audiência de julgamento consubstanciará, ainda, uma situação análoga ou, pelo menos, em que os elementos que justificam a analogia com o versado no Acórdão nº 186/98 são predominantes relativamente aos que possibilitam a diferenciação de tratamento das duas situações.
Assim, a hipotética extensão do juízo de inconstitucionalidade pressupõe, obviamente, que as razões que sustentaram, jurídico-constitucionalmente, a violação do artigo 32º, nºs 1, 2 e 5, da Constituição também se verifiquem relativamente à dimensão normativa sub judicio. Tal questão, todavia, não chega a ter verdadeira autonomia relativamente à análise directa da relação entre a dimensão normativa do artigo
40º do Código de Processo Penal que é questionada e aqueles preceitos constitucionais. Deste modo, o Tribunal enfrentará desde já tal análise. A efectiva analogia entre as duas situações dependerá do respectivo resultado.
B A questão da eventual violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição
7. O sentido e a função das garantias de imparcialidade e isenção do julgador estão constitucionalmente associados à estrutura acusatória do Processo Penal. Porém, não basta esta estrutura para que aquelas garantias sejam asseguradas, nem tem que existir um sistema único e rígido de satisfação de tais garantias.
Assim, a par de uma distinção entre as autoridades judiciais competentes para a instrução e para o julgamento, pode e deve existir um mecanismo processual de recusa do juiz que realiza o julgamento (conforme o previsto genericamente no artigo 43º, nº 1, da versão original do Código de Processo Penal de 1987, abrangendo especificamente a intervenção noutros processos ou em fases anteriores do mesmo processo, ou no artigo 43º, nº 2, da nova versão, aprovada pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto). Este mecanismo visa, em face de circunstâncias graves, assegurar a imparcialidade e a isenção de quem julga.
Mas será igualmente possível que o legislador integre na configuração concreta da estrutura acusatória do Processo Penal uma rígida separação entre os intervenientes na fase de inquérito de instrução e as entidades que julguem, ou até mesmo que retire ao juiz de julgamento toda e qualquer possibilidade de decretar uma medida de coacção ao mesmo tempo que julga. Uma tal rigidez na configuração da estrutura acusatória do Processo Penal não é, todavia, decorrência necessária da configuração constitucional do Processo Penal. O Processo Penal de estrutura acusatória está fundamentalmente associado à garantia do princípio do contraditório na instrução e no julgamento
(artigo 32º, nº 5, da Constituição).
A estrutura acusatória destina-se a assegurar o exercício do contraditório, possibilitando que a acusação se confronte com o arguido, num debate de argumentos e razões sobre o qual se irá pronunciar a entidade que julga. É, assim, essencial para que não seja violado o princípio do acusatório que estejam asseguradas as condições para que quem deduz a acusação ou decida a sua pertinência no debate instrutório não tenha competência para julgar, não se envolvendo como parte interessada no apuramento da verdade e na decisão final do processo.
8. Como já foi referido, o Tribunal Constitucional tem considerado que a violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição só se verifica quando haja uma intensa participação no inquérito ou na instrução do processo, como manifestação de circunstâncias especiais que revelem a possibilidade de ter sido formada uma intensa convicção de culpabilidade pelo futuro juiz de julgamento. Delimitou, assim, em razão da intensidade da participação nas fases preliminares e das respectivas condições, os factores que afectam uma garantia substancial da estrutura acusatória, permitindo a plena satisfação do contraditório e da imparcialidade e da isenção do juiz do julgamento.
Com efeito, num plano garantístico não excessivamente formalizado, uma intervenção esporádica antes do julgamento, na fase final do inquérito e posterior à dedução da acusação, apenas para manter a prisão preventiva já decretada por um outro juiz, por não se terem alterado os respectivos pressupostos de facto e de direito e sem que tenham sido suscitados ou apreciados fundamentos novos, não é, por si só, uma condição que, em abstracto, propicie a parcialidade do juiz do julgamento (que estimule o juiz do julgamento a sustentar a condenação do arguido). Por outro lado, não se pode afirmar que aquela intervenção esporádica gere uma desconfiança geral sobre a imparcialidade do julgamento (suscitando representações sociais negativas sobre a imparcialidade e a isenção do juiz).
Aliás, também está inerente ao saneamento do processo pelo juiz de julgamento um juízo de aceitação da acusação, considerada não 'manifestamente infundada' [artigo 311º, nº 2, alínea a), da versão originária e artigo 311º, nºs 2, alínea a), e 3, alínea d), da nova versão do Código de Processo Penal]. E, para além disso, durante a fase da audiência do julgamento, o juiz tem o poder de aplicar ou manter medidas de coacção e de garantia patrimonial, uma vez que assume o senhorio do processo. Ora, ao emitir os inerentes despachos antes de proferir a decisão final, não deixa de apreciar a intensidade dos indícios que foram carreados contra o arguido.
A mera manutenção da prisão preventiva, já decretada por um outro juiz, por aquele que virá a ser o juiz de julgamento situa-se num plano de confirmação da decisão anterior, na ausência de factos novos, não arrastando consigo uma alteração, configurável em abstracto, das condições em que a estrutura acusatória se efectiva. Tal alteração só ocorrerá se tiver havido uma reiterada participação na instrução e um intenso envolvimento do futuro juiz de julgamento nessa fase.
9. Não tem igualmente procedência, desde logo no plano do juízo de constitucionalidade, por se situar ao nível da interpretação da lei ordinária, uma argumentação, como a sustentada pelos recorrentes nas suas alegações para o Tribunal Constitucional, segundo a qual a própria evolução legislativa do Processo Penal português se tem orientado para uma equiparação valorativa das situações da espécie sub judicio com as que foram declaradas inconstitucionais. Pelo contrário, é óbvio que a nova redacção do artigo 40º do Código de Processo Penal exclui a simples decretação ou a mera manutenção da prisão preventiva como fundamento de impedimento, quando reduz expressamente o impedimento de participação no julgamento ao juiz que tiver presidido ao debate instrutório (o que já acontecia na anterior versão) e àquele 'que tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido'. Também o facto de o artigo 43º, nº 2, ter consagrado como fundamento de recusa do juiz a intervenção do mesmo noutro processo ou em fases anteriores do processo fora dos casos do artigo 40º não prova, diferentemente do que pretendem os recorrentes, que estas situações tenham sido equiparadas às do artigo 40º, mas apenas que o legislador quis remeter para um plano de análise concreta das condições de imparcialidade e isenção situações que não atingem, por si mesmas, em abstracto, a intensidade da situação desenhada no artigo 40º. Com efeito, não só o artigo 43º, nº 2, apenas prevê a possibilidade da recusa do juiz, não sendo portanto automática nem obrigatória para o juiz a não participação na audiência de julgamento (diferentemente do funcionamento do impedimento no processo, artigo 41º, nº 1), como também se verifica uma diferença substancial no valor dos actos praticados, que no caso do artigo 40º são nulos (artigo 41º, nº 3) e no caso do artigo 43º só são anulados quando se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo (artigo 43º, nº 5).
Por outro lado, a própria versão originária do Código de Processo Penal de 1987 não excluía que, em concreto, a participação do juiz de julgamento em fase preliminar do processo pudesse ser fundamento de recusa, se o caso concreto fosse subsumível na previsão do artigo 43º, nº 1, isto é, suscitasse
'risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade'.
Por todas estas razões, não se poderá atribuir à evolução legislativa qualquer equiparação valorativa da generalidade de situações de participação do juiz do julgamento em fases anteriores do processo com as situações de decretação e cumulativa manutenção da prisão preventiva que fundamentam um impedimento do juiz do julgamento (artigo 40º do Código de Processo Penal).
C A questão da eventual violação do artigo 32º, nºs 1 e 2, da Constituição
10. A possibilidade de uma violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição pela dimensão normativa sub judicio do artigo 40º do Código de Processo Penal pressupõe a afectação da independência e da imparcialidade do juízo por quem tenha adquirido, anteriormente, através dos actos instrutórios praticados, a convicção de que foi praticado um crime. Por seu turno, uma eventual violação do artigo 32º, nº 2, da Constituição fundamentar-se-á no argumento de que a manutenção da prisão preventiva prejudica, necessária e automaticamente, as condições de efectivação da presunção de inocência, no decurso da fase da audiência de julgamento.
O sistema do Código de Processo Penal na sua versão originária já admitia, no entanto, como se referiu, a possibilidade de recusa do juiz por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade e isenção. Tal sistema previa, assim, uma garantia contra as situações mais plausíveis de afectação das condições da imparcialidade e isenção, mesmo que estas só atingissem a imagem objectiva de imparcialidade e isenção do juiz.
Assim, não estava ausente da versão originária do Código de Processo Penal de 1987, aqui considerada, a promoção da independência dos juízes (sobre essa independência do juiz, cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 135/88, D.R., II Série, de 8 de Setembro de 1988). Sendo discutível que este sistema fosse o mais adequado para a prossecução dos fins em vista, não se pode concluir que ele não tinha eficácia normativa. O que ele propunha era um certo equilíbrio entre a presunção de responsabilidade do juiz e as garantias da sua imparcialidade, através da exigência de invocação de factos concretos adequados a revelar desconfiança relativamente à imparcialidade e à isenção.
11. O Acórdão nº 186/98 do Tribunal Constitucional (à imagem da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em sede de violação do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) não acentuaria a violação das garantias de defesa e de presunção de inocência, mesmo nas situações violadoras da estrutura acusatória do Processo Penal. Antes, foi sempre focada a violação de uma confiança objectiva na imparcialidade e na isenção do juiz. A possibilidade de pré-juízos impeditivos de um imparcial e isento esclarecimento dos factos pelo juiz do julgamento que interveio em fases anteriores do processo não deixa, no entanto, de estar associada à dimensão normativa considerada inconstitucional do artigo 40º do Código de Processo Penal. E, por isso, o sistema garantístico da versão original do Código não era constitucionalmente isento.
Todavia, se o respeito pelas garantias de defesa e pela presunção de inocência também impõe condições objectivas em abstracto adequadas a impedir um juízo parcial e comprometido do julgador relativamente aos factos, tais condições não estão necessariamente afectadas pela mera verificação de indícios da prática do crime nas circunstâncias concretas de manutenção da prisão preventiva (que o juiz do julgamento poderá adquirir igualmente no despacho de saneamento do processo). Apenas a convicção intensa de que o crime teria sido praticado, inerente à prática reiterada de actos instrutórios reveladores dessa mesma convicção, afecta, seguramente, as garantias de defesa e, especificamente, a presunção de inocência.
A simples manutenção da prisão preventiva, no segundo reexame trimestral, após a dedução da acusação na fase final do inquérito, não conduz, por si só, a essa intensa convicção de que o crime foi praticado nem exige, constitucionalmente, pelo seu grau, a criação de obstáculos formais a que, por essa via, se produzam pré-juízos relativamente à culpabilidade do arguido.
III Decisão
12. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide: a. Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 40º do Código de Processo Penal, na versão dada pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, quando interpretado no sentido de não prescrever sempre o impedimento de intervenção no julgamento do juiz que determinou, anteriormente, a manutenção da prisão preventiva aplicada ao arguido, ao abrigo do disposto no artigo 213º do mesmo Código; b. Negar provimento ao presente recurso de constitucionalidade; c. Confirmar o acórdão recorrido, na parte respeitante à questão de constitucionalidade suscitada.
Custas pelos recorrentes, sendo a taxa de justiça fixada em 15 UCs. para cada um deles Lisboa, 13 de Janeiro de 1999 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto (vencido quanto à fundamentação, nos termos da declaração de voto que junta)
Declaração de voto Votei vencido quanto à fundamentação uma vez que, a meu ver, não pode extrair-se da Constituição uma proibição de intervenção no julgamento do juiz que haja praticado actos isolados durante a instrução ou o inquérito, mas, apenas, do juiz cuja intervenção processual anterior ao julgamento contenda directamente com o objecto do processo – isto é, do juiz que tenha presidido ao debate instrutório, como preceituava o artigo 40º do Código de Processo Penal de 1987, na sua redacção originária. Para a primeira hipótese – sejam tais actos, alternativa ou cumulativamente, o decretamento de medida de coacção (prisão preventiva ou outra), a sua manutenção, a ordem de busca domiciliária, o interrogatório judicial de arguido, ou outros –, as garantias do artigo 32º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição, estão, a meu ver, suficientemente acauteladas com a possibilidade de o arguido requerer a recusa do juiz com esse fundamento
(cfr., aliás, a explicitação introduzida pela revisão de 1998 no artigo 43º, n.º
2, do Código de Processo Penal). Ao facto de a prática de actos isolados pelo juiz durante a instrução ou o inquérito não ser abrangida pelo referido critério material que justifica o impedimento, vem juntar-se, aliás, a meu ver, a desadequação do mecanismo do impedimento automático (ao contrário do da recusa) para, naquela situação, se proceder à necessária avaliação, em concreto, dos termos e das circunstâncias da intervenção do juiz, ou seja, justamente da
'lógica de reiteração e de verificação de circunstâncias especiais' referida no presente Acórdão (neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, 'Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 19987 do Código de Processo Penal', na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8, 1998, 2º, pág. 209; cfr., todavia, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 935/96 e 186/98, e a redacção introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, no artigo 40º do Código de Processo Penal). Não pude, pois, concordar com a fundamentação da decisão de não inconstitucionalidade que assenta na distinção entre, por um lado, uma intervenção 'reiterada' ou 'intensa' do juiz, em termos e circunstâncias especiais, e, por outro lado, a prática de um acto isolado durante a instrução ou o inquérito. Essa distinção, para além de implicar sempre uma ponderação das circunstâncias de cada caso (por exemplo, com a avaliação dos termos do despacho pelo qual foi mantida a prisão preventiva) para fundamentar o impedimento, não se funda num critério material claro (como o da decisão anterior relativa ao objecto do processo), nem se me afigura clara e segura (ou, sequer, em muitos casos, plausível), como é seguramente de exigir em matéria de proibição da intervenção do juiz no julgamento. Creio, aliás, que a falta de tal critério material e a remissão para as circunstâncias especiais de cada caso (para além da formulação empregue no artigo 40º do Código de Processo Penal, versão de 1998), poderão mesmo inculcar
– como inculca também o paralelo efectuado no presente Acórdão - a necessidade de, em certas circunstâncias, tais impedimentos se aplicarem ao próprio juiz do julgamento - o que, a meu ver, seria excessivo (neste sentido, a nova redacção deste artigo 40º, que resultará do artigo 134º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, pela qual foi aprovada a nova Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais). Assim, embora não discordando da decisão, com a fundamentação que expus teria alargado o juízo de não inconstitucionalidade ao artigo 40º do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual nesta norma não se prescreve nunca (e não apenas sempre, como se decidiu) o impedimento de intervenção no julgamento do juiz que determinou, anteriormente, a manutenção da prisão preventiva (excepto no caso de presidência do debate instrutório também por esse juiz), deixando cobertos pela possibilidade de recusa do juiz os casos em que a prática de actos durante a instrução ou o inquérito justifique suspeita grave e séria sobre a sua imparcialidade. Luis Nunes de Almeida