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Processo nº 516/96
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A questão de inconstitucionalidade posta pela recorrente A., com os sinais identificadores dos autos, é simples e concretamente respeita apenas à norma do artigo 437º, nº 2, do Código de Processo Penal que, disciplinando a matéria do recurso extraordinário da fixação de jurisprudência, não prevê aí como fundamento dele a oposição entre um acórdão de tribunal de relação e um outro anterior do Supremo Tribunal de Justiça, relativamente 'à mesma questão de direito' e 'no domínio da mesma legislação'.
Tal questão foi decidida no acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Fevereiro de 1996, no sentido da conformidade com a Constituição da norma do artigo 437º, nº 2, - e daí ter-se decidido 'rejeitar o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência' interposto pela recorrente - e vinha suscitada pela recorrente no próprio requerimento de interposição de 'recurso para plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça' e no articulado de resposta a um Parecer do Ministério Público no sentido da rejeição desse recurso.
Sustentava a recorrente naquele requerimento:
'Todavia, como na previsão do artº 437º do C.P.Penal, o recurso para fixação de Jurisprudência, apenas será fundamentado; em dois acórdãos, proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, em que relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, ou quando um Tribunal de Relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação e dele não for admissível recurso ordinário, deve ser feita no caso 'sub judice', uma interpretação extensiva da regra do artº 437º do C.P. Penal, sob pena daquela norma ofender os princípios da igualdade dos Cidadãos perante a Lei e das garantias de defesa do arguido, consagrados nos arts. 13º e 32º-1 da C.R.P.'
(posição repetida depois no aludido articulado de resposta).
A isso respondeu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, nestes termos mais relevantes:
'Nos nºs 1 e 2 do citado artº 437 estão, assim, previstas expressamente as seguintes oposições susceptíveis de originarem acórdãos de fixação de jurisprudência:
a) entre dois acórdãos proferidos no Supremo Tribunal de Justiça;
b) entre dois acórdãos da mesma relação;
c) entre dois acórdãos proferidos em relações diferentes.
A decisão que resolver o conflito emergente desses acórdãos tem eficácia no processo em que o recurso foi interposto (artº 445, nº 1, do CPP). Sendo procedente, anula então o caso julgado formado no acórdão recorrido, e derroga, consequentemente, o princípio da imodificabilidade das decisões transitadas, formando jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais.
Trata-se, portanto, de uma decisão excepcional que só pode ser proferida nos precisos termos em que a lei a admite.
E sendo assim, forçosamente se conclui que o legislador quis limitar a possibilidade das decisões eventualmente revogatórias do caso julgado à oposição verificada entre dois acórdãos do Supremo ou entre dois acórdãos da Relação, nos precisos termos dos nºs 1 e 2 do artº 437 do CPP, e sem a extensão agora defendida pela recorrente.
Estamos, assim, na presença de normas de carácter excepcional que não admitem outra interpretação que não seja a declarada expressamente na lei.
Esta orientação em nada colide com as garantias de defesa dos cidadãos em processo penal, e respeita, isso sim, o princípio da hierarquia dos tribunais consagrado no artº 212 da CRP.
A solução proposta pela recorrente forçaria a uma aplicação analógica - e, por isso, inadmissível - dos nºs 1 e 2 do artº 437 do CPP e levaria a um confronto absurdo entre decisões transitadas e proferidas em tribunais de hierarquias diferentes, com violação clara da noção de caso julgado que nos é dada pelo artº
677 do Código de Processo Civil, aplicável ao caso concreto por efeito do disposto no artº 4º do CPP'.
2. Nas suas alegações concluiu assim a recorrente:
'1º
O art. 437º do C.P.Penal, não permite a interposição de recurso para fixação de jurisprudência, entre um acórdão do S.T. de Justiça e um
Acórdão de uma Relação.
2º Ainda que apresentem soluções opostas quanto à mesma questão fundamental de direito, como 'in casu' se verifica.
3º Por aquela razão o art. 437º do C.P.Penal, viola grosseiramente os princípios de igualdade dos cidadãos perante a lei, e das garantias de defesa do arguido em processo penal, constitucionalmente consagrados nos arts. 132º e 32º do C.P.R., respectivamente.
4º De facto, aquele art. 437º do C.P.Penal, impede a interpretação uniforme da lei, numa perspectiva de conciliação entre o princípio de liberdade de interpretação da lei com o princípio de igualdade perante a lei de todos os cidadãos.
5º Ora o facto da lei processual penal, permitir o julgamento de certos casos em 1ª instância pelo Tribunal de Relação, ( arts.12º do C.P.Penal),
6º Enquanto noutros o mesmo crime é julgado em 1ª instância, no Tribunal da Comarca,
7º Torna possível que relativamente à mesma questão fundamental de direito, se formem conceitos opostos, como de resto se verifica relativamente ao conceito de dolo no crime de emissão de cheque sem provisão.
8 º E daí a possibilidade de terem soluções diversas, as acusações pelo mesmo crime, consoante venham a ser julgadas em ultima instância no S.T.J. ou numa Relação, dado a lei processual penal admitir apenas uma instância de recurso.
9º Com as consequentes, diminuições das garantias de defesa do arguido em processo penal, e,
10º Ofensa ao princípio de igualdade dos cidadãos perante a lei como se disse .
11º O Meritmo. Juiz 'a quo' violou as disposições legais indicadas nas anteriores conclusões.
Termos em que com o douto suprimento de V. Exas., deve ser revogada a sentença sob recurso, por inconstitucionalidade do art.437º do C.P.Penal e substituída por outra que admita o recurso interposto para fixação de jurisprudência'.
3. Contra-alegou o Ministério Público, formulando estas conclusões:
'1º
O princípio constitucional das garantias de defesa não implica para o arguido a faculdade de fazer reapreciar sistematicamente a decisão condenatória pelo Supremo Tribunal de Justiça, não havendo qualquer inconstitucionalidade em o sistema de recursos vigente em processo penal não prever um terceiro grau de jurisdição, perante o Supremo, relativamente às decisões condenatórias proferidas pelas relações.
2º
A função desempenhada pelos recursos de fixação ou uniformização de jurisprudência é a de obstar à sedimentação e cristalização de correntes jurisprudenciais contraditórias no âmbito dos tribunais a que compete dirimir, em última instância, certa questão de direito - e não criar uma nova via de recurso ordinário contra quaisquer decisões que se não conformem o precedente jurisprudencial contido em anteriores decisões de um tribunal hierarquicamente superior ao que proferiu a decisão de que se pretende recorrer.
3º
A norma constante do artigo 437º, nº 2, do Código de Processo Penal, ao não admitir, como fundamento do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, a contradição entre o acórdão recorrido, proferido pela Relação, e um precedente acórdão, proveniente do Supremo Tribunal de Justiça, não ofende qualquer princípio ou preceito da Lei Fundamental.
Termos em que deverá improceder o presente recurso'.
4. Vistos os autos, cumpre decidir.
É facto que a norma questionada do artigo 437º, nº 2 do Código de Processo Penal não inclui na sua previsão o caso de eventual oposição entre um acórdão de tribunal de relação e um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, sobre a mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação, mas isso - afirma-se já - não fere normas ou princípios constitucionais.
São dois os planos em que a recorrente pretende ver discutida a questão de inconstitucionalidade, não lhe assistindo, todavia, a mínima razão.
Começando pelo plano da pretensa violação do princípio constitucional das 'garantias de defesa do arguido em processo penal', consagrado em toda a sua extensão no artigo 32º da Lei Fundamental, não se vê como ele dê cobertura a um eventual direito do arguido a interpor e a 'esgotar sistematicamente todas as vias de recurso em abstracto existentes no ordenamento jurídico', incluindo a ora questionada e não prevista expressamente no Código de Processo Penal (na linguagem do Ministério Público).
Com efeito e de acordo com a jurisprudência reiteradamente afirmada por este Tribunal Constitucional, e no quadro das garantias de defesa do arguido, o que se vem afirmando é a garantia de um segundo grau de jurisdição relativamente a decisões condenatórias em pena privativa de liberdade, para que fique assegurado ao arguido o direito a uma reapreciação de tais decisões (cfr., v.g. os acórdãos nºs 31/87 e 265/94, publicados no Diário da República, II Série, nºs 76, de 1 de Abril de 1987, e
165, de 19 de Julho de 1994, respectivamente).
Só que isso não significa que seja necessariamente o Supremo Tribunal de Justiça, a assegurar essa reapreciação - no caso isso poderia ser conseguido através do recurso para fixação de jurisprudência -, podendo perfeitamente atingir-se esse objectivo com o tribunal de relação, como aqui, aliás, aconteceu (a decisão condenatória da arguida do tribunal de comarca foi objecto de censura no Tribunal da Relação de Coimbra).
5. Passando agora ao plano da ofensa do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, o que a recorrente pretende fazer vingar é o discurso da 'possibilidade de terem soluções diversas, as acusações pelo mesmo crime, consoante venham a ser julgadas em ultima instância no S.T.J. ou numa Relação, dado a lei processual penal admitir apenas uma instância de recurso.' ('Torna possível que relativamente à mesma questão fundamental de direito, se formem conceitos opostos, como de resto se verifica relativamente ao conceito de dolo no crime de emissão de cheque sem provisão' -
é outra afirmação da recorrente), mas também não se alcança como se possa ver aí uma solução materialmente infundada, porque baseada em motivos subjectivos ou arbitrários, sendo este aspecto o que releva para aferir a violação do princípio da igualdade, como é jurisprudência corrente deste Tribunal Constitucional. Enquanto princípio vinculativo da lei, traduzindo a ideia geral de proibição do arbítrio, não é o princípio da igualdade violado pela norma questionada do artigo 437º, nº 2, quando exclui da sua previsão certo fundamento possível do recurso extraordinário para fixação da jurisprudência.
Sem necessidade de entrar na caracterização teórica desse recurso - podendo dizer-se sempre que ele visa 'obstar à sedimentação e cristalização de correntes jurisprudenciais contraditórias no âmbito dos tribunais a que compete dirimir, em última instância, certa questão de direito', na linguagem do Ministério Público - e encurtando razões, tem de reconhecer-se em todo o caso que a tal possibilidade de que fala a recorrente de se formarem
'conceitos opostos', relativamente à mesma questão fundamental de direito, não
é motivo bastante para que se imponha ao legislador a previsão de um recurso extraordinário para a fixação da jurisprudência abrangendo todas as hipóteses possíveis, a nível de tribunais superiores, de oposição de decisões quanto à mesma questão fundamental de direito.
Na verdade, a oposição de decisões, em tais circunstâncias, é uma constante do mundo judiciário, seja em processo penal, seja em processo civil, para a qual a lei pode ou não prever modos de
'remediar', mas eles não têm necessariamente de passar pela última palavra de um recurso extraordinário, cabendo ao legislador, no quadro da discricionaridade legislativa, arrumar as hipóteses em que tem cabimento esse recurso, sem que se possa falar em violação do princípio da igualdade. Exactamente porque não se descortinam motivos subjectivos ou arbitrários na arrumação dessas hipóteses.
6. Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao recurso. Lisboa, 12 de Março de 1997 Guilherme da Fonseca Bravo Serra Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida