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Proc. nº 514/96 Cons. Messias Bento
(Cons. Luís Nunes de Almeida)
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. SOCIEDADE P...,LDA, intentou no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, contra o ESTADO PORTUGUÊS, pelo Ministério da Defesa, acção de despejo relativamente ao prédio urbano sito na Rua E..., nºs..., em Lisboa, com fundamento no uso do mesmo prédio para fim diverso daquele para que fora previsto, pois que o arrendamento se destinara à instalação dos Serviços Cartográficos do Exército e o Estado aí instalou o Departamento de Logística - Centro de Gestão Financeira e a Direcção do Serviço de Justiça e Disciplina, ambos do Ministério da Defesa Nacional.
Na sua contestação, o Estado, representado pelo Ministério Público, requereu a absolvição da instância, invocando a incompetência do tribunal por, tratando-se de um contrato de arrendamento celebrado com o Estado, possuir o mesmo contrato natureza administrativa, cabendo a competência para conhecer da acção ao tribunal administrativo de círculo, e solicitou a absolvição do pedido, com fundamento na caducidade do direito, por aquele se fundar em factos ocorridos mais de um ano antes da propositura da acção, e também por a mesma acção ser improcedente. Deduziu ainda reconvenção, na qual, em caso de procedência da acção, reclamou o pagamento da quantia de 12.951.065$00, relativa às obras de conservação e melhoramento realizadas no local arrendado.
Por sentença de 7 de Fevereiro de 1994, o Mmo Juiz do 7º Juízo Cível da comarca de Lisboa considerou a acção procedente e decretou a resolução do contrato de arrendamento em causa, condenando o Estado a despejar o local arrendado; por outro lado, declarou também a reconvenção parcialmente provada e procedente, condenando a autora a pagar ao Estado a quantia de 8.259.319$99, correspondente
às importâncias dispendidas pelo Estado em obras necessárias e/ou úteis no locado e não susceptíveis de serem retiradas.
2. Desta decisão recorreu o Ministério Público, em representação do Estado, com ela não se conformando, para o Tribunal da Relação de Lisboa. Também aquela sociedade interpôs recurso para a Relação na parte em que a sentença atendeu o pedido reconvencional. Com estes, foi também admitido recurso de agravo anteriormente interposto pelo Ministério Público do despacho saneador que lhe julgara improcedentes as excepções de incompetência e de caducidade invocadas na contestação.
Por acórdão de 30 de Março de 1995, a Relação de Lisboa negou provimento ao agravo, confirmando o despacho recorrido, e concedeu provimento à apelação interposta pelo Mº Pº, revogando a sentença recorrida na parte em que decretara a resolução do contrato de arrendamento e consequente despejo; quanto à apelação interposta pela sociedade autora, não tomou conhecimento da mesma.
3. Inconformada, a sociedade recorrente interpôs recurso de revista desse acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça.
Por acórdão de 16 de Janeiro de 1996, o STJ decidiu não tomar conhecimento do recurso, nos termos dos artigos 678º, nº 1, do CPC e 20º, nº 1, da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, pois a revista fora interposta apenas em relação à acção, e não à reconvenção, sendo o valor daquela apenas de 619.092$00.
4. Desta decisão veio a recorrente interpor novo recurso, desta vez para o Tribunal Pleno, invocando a contradição entre aquele acórdão e outro do STJ de
30 de Novembro de 1994.
Por despacho de 28 de Fevereiro de 1996, o relator do processo rejeitou a pretendida interposição de recurso, considerando que «conforme o que, explicitamente, determina o art. 17º, nº 1 do DL 329-A/95, de 12.12, estão revogados os arts. 763 a 770 do CPC, abrangendo, assim, o normativo com base no qual 'Sociedade P...,Lda' interpôs o recurso de fls. 317» e ainda que «é incontroverso que o nº 3 daquele art. 17 só ressalvando os recursos 'já intentados' à data do início da vigência da referida norma revogatória
'imediatamente aplicável' (citado nº 1 do mesmo art. 17), a contrario sensu afastou qualquer subsequente viabilidade de interposição de recurso como este.»
A recorrente veio requerer que sobre esse despacho recaísse acórdão, em conferência, suscitando nesse requerimento a questão da inconstitucionalidade dos nºs 1 e 3 do artigo 17º, conjugado com o nº 2 do artigo 16º, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro.
5. Por acórdão de 16 de Abril de 1996, o STJ confirmou o despacho do relator. Nessa decisão pode ler-se: O que o DL 329-A/95 determina, no seu artº 17º, é a revogação imediata de todo o mecanismo processual que permitia recursos para o Pleno do STJ. E ressalvou, expressamente e apenas, os recursos já intentados, o que não é o caso (nº 3 desse artº 17º). Aliás, o DL 329-A/95, se vier a entrar em vigor, não prevê recursos para o Pleno como antes, mas sim, a intervenção das Secções cíveis no julgamento conjunto dos recursos normais para o STJ quando seja caso disso. Embora se trate, como já se disse, de legislação controversa, não existe ofensa do princípio da igualdade porque não se desigualam tratamentos de situações abrangentes de todas as pessoas no mesmo tempo e nas mesmas circuns-tâncias; nem vem ao caso pretensa ofensa do princípio da confiança, exactamente porque se ressalvam recursos já intentados.
É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, para apreciação da questão de constitucionalidade das normas constantes dos nºs 1 e 3 do artigo 17º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, conjugadas com o disposto no artigo
16º do mesmo diploma, na redacção constante do Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro.
6. Nas suas alegações neste Tribunal a recorrente apresentou as seguintes conclusões:
4º ... o nº 3 do artº 17º do D.L.329-A/95 tem de considerar-se aplicável aos casos em que como no vertente, não é já possível aplicar ao julgamento o regime previsto nos artºs 732-A e 732-B do CPC seja por interpretação extensiva, seja por analogia.
5º Ao interpretar tal preceito doutro modo, como o fez o STJ - ou seja concluindo que os recursos ainda não intentados ficavam excluidos quer do regime de subida até ao Pleno quer do regime do julgamento ampliado - incorreu-se em inconstitucionalidade material, quer por violação do princípio da igualdade propriamente dito, quer por violação do princípio da confiança ínsito na noção de Estado de Direito.
7. Por seu turno, o Ministério Público, nas suas contra-alegações, formulou as seguintes conclusões:
1º Não está incluída no direito de acesso aos tribunais a expectativa das partes, em acções cíveis, de acederem ao Plenário do Supremo Tribunal de Justiça, em consequência da instituição de um verdadeiro e autónomo quarto grau de jurisdição, destinado a sanar pretensos conflitos entre acórdãos proferidos por aquele Supremo Tribunal no domínio da mesma legislação.
2º Nascendo o direito ao recurso apenas quando é proferida a decisão judicial a impugnar, não constitui solução legislativa arbitrária, violadora do princípio da igualdade, a que se traduz em regular os pressupostos de admissibilidade do recurso pela lei em vigor na data da prolação da decisão de que se pretende recorrer.
3º Não implica violação do princípio da confiança, ínsito no do Estado de direito democrático, a preclusão, nas acções pendentes, da possibilidade de interposição de recursos para o Plenário do Supremo Tribunal de Justiça, em consequência da reformulação legislativa global do figurino da uniformização da jurisprudência na área cível, consequente ao decretamento da inconstitucionalidade do instituto dos assentos, na precisa configuração que lhes dava o artigo 2º do Código Civil.
4º Permanecendo em vigor a norma constante do nº 3 do artigo 728º do Código de Processo Civil - até ao momento em que inicie a sua vigência o novo regime de
'revista ampliada', decorrente dos artigos 732º-A e 732º-B do Código de Processo Civil - não ocorre nenhum hiato temporal durante o qual o Supremo Tribunal de Justiça esteja absolutamente impedido de realizar as tarefas de uniformização da jurisprudência cível que lhe competem, segundo modelo inteiramente conforme ao preceituado na Lei Fundamental.
Cumpre decidir.
II. FUNDAMENTOS:
4. A norma sub iudicio:
4.1. Este Tribunal, pelo seu acórdão n.º 743/96 (publicado no Diário da República, I série-A, de 18 de Julho de 1996), declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 2º do Código Civil, 'na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115º, n.º 5, da Constituição'. Esta declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, veio na sequência de anteriores pronúncias do Tribunal nesse sentido, iniciadas com o acórdão n.º 810/93, publicado no Diário da República, II série, de 2 de Fevereiro de 1994. Na sequência desta jurisprudência, o legislador veio, no artigo 3º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, revogar os artigos que regulavam o recurso para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça (a saber: os artigos 763º a
770º do Código de Processo Civil). Concomitantemente, regulou, nos novos artigos
732º-A e 732º-B do mesmo Código, o 'julgamento ampliado da revista', com o objectivo de 'assegurar a uniformidade da jurisprudência'. A revogação daqueles artigos 763º a 770º do Código de Processo Civil ocorreu em paralelo com a revogação do artigo 2º do Código Civil, que o artigo 4º, n.º 2, do mesmo Decreto-Lei n.º 329-A/95 determinou. Ou seja: ocorreu a par da revogação dos assentos enquanto instrumentos dotados de força vinculativa. De uma força vinculativa que, após a prolação do citado acórdão n.º 743/96, obrigava apenas os tribunais judiciais de 1ª e de 2ª instância, enquanto tribunais que se integram numa hierarquia que tem na cúpula o Supremo Tribunal de Justiça. Tais assentos, com efeito, já então não constituíam 'doutrina com força obrigatória geral'; ou seja, já não eram fontes de direito, mas apenas directivas interpretativas genéricas, embora dotadas de força vinculativa interna. A revogação dos artigos 763º a 770º aplicou-se imediatamente. Diferentemente, o novo mecanismo processual de uniformização da jurisprudência só passou a ser aplicado a partir do momento em que entraram em vigor as alterações introduzidas no mencionado Código de Processo Civil. E essa entrada em vigor, que esteve, inicialmente, prevista para 1 de Março de 1996 (cf. artigo 16º, n.º 1, do citado Decreto-Lei n.º 329-A/95, na redacção inicial), veio a ser adiada para 15 de Setembro de 1996, num primeiro momento (artigo 9º da Lei nº 6/96, de 29 de Fevereiro), e, depois, para 1 de Janeiro de 1997 (cf. o mesmo artigo 16º, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro).
4.2. O artigo 17º, cujo n.º 1 aqui está sub iudicio, dispõe como segue:
1. É imediatamente aplicável a revogação dos artigos 763º a 770º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2. Os assentos já proferidos têm o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B.
3. Relativamente aos recursos para o tribunal pleno já intentados, o seu objecto circunscreve-se à resolução em concreto do conflito, com os efeitos decorrentes das disposições legais citadas nos números anteriores. Deste preceito legal, tal como foi interpretado pelo acórdão recorrido, resulta o seguinte:
(a). A revogação dos artigos 763º a 770º, que regulavam o recurso para o Tribunal Pleno, determinada pelo artigo 3º do mesmo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de
12 de Dezembro, era imediatamente aplicável às acções pendentes (n.º 1);
(b). Os assentos em vigor no ordenamento jurídico passaram a ter o valor dos acórdãos previstos nos novos artigos 732º-A e 732º-B, ou seja, dos acórdãos com que se visa a uniformidade da jurisprudência (n.º 2);
(c). Os recursos para o Tribunal Pleno que já se achavam interpostos prosseguiram seus termos, para eventual prolação de 'assento' que resolvesse o conflito jurisprudencial acaso existente - 'assento' que, no entanto, terá o valor dos assentos de pretérito (n.º 3). A revogação dos artigos 763º a 770º do Código de Processo Civil, que regulavam o recurso para o Pleno, embora fosse de aplicação imediata nas acções pendentes, fez-se sem prejuízo de uma aplicação transitória de tais normas. De facto, tendo os recursos para o Tribunal Pleno já interpostos prosseguido seus termos, com vista à 'resolução em concreto do conflito' (cf. n.º 3 do transcrito artigo
17º), não podiam esses termos deixar de ser regulados pelas regras processuais constantes dos mencionados artigos 763º a 770º. Esse era o sentido da ressalva final do n.º 1 do dito artigo 17º ('sem prejuízo do disposto nos números seguintes').
4.3. Os acórdãos previstos nos novos artigos 732º-A e 732º-B, que visam a uniformidade da jurisprudência, passaram a ser obrigatórios apenas nos processos em que são tirados. Fora dos respectivos processos, têm a autoridade e a força persuasiva que lhes advém do facto de serem decisões do Supremo Tribunal de Justiça, tiradas num julgamento ampliado de revista, isto é, feito pelo plenário das secções cíveis. Constituem, por isso, meros precedentes judiciais qualificados. Nos dizeres de CARLOS LOPES DO REGO (cf. A Uniformização da Jurisprudência no Novo Direito Processual Civil, Lex, Lisboa, 1997, página 19), o seu valor persuasório para a comunidade jurídica 'radica na especial autoridade do órgão de que dimana - análogo ao que, entre nós, vem sendo até hoje representado, com resultados perfeitamente satisfatórios no plano prático, pelos acórdãos das secções reunidas do Supremo Tribunal de Justiça, previstos no n.º 3 do artigo 728º do Código de Processo Civil' (vide, no entanto, ANTÓNIO PAIS DE SOUSA e J. O. CARDONA FERREIRA, in Processo Civil, Lisboa, s/d, página
100 e 150, para quem tais acórdãos são obrigatórios, embora 'só na ordem judicial').
É apenas também esta autoridade e força persuasiva de precedentes judiciais qualificados que, por força do que dispõe o nº 2 do referido artigo 17º, passaram a ter os assentos de pretérito, ou seja, aqueles assentos que foram sendo tirados ao longo dos anos e que se mantinham em vigor no ordenamento jurídico, designadamente por não terem sido revogados, nem declarados inconstitucionais, com força obrigatória geral (Uma apreciação crítica desta solução fê-la ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, in 'Da inconstitucionalidade da revogação dos assentos', publicado em Perspectivas Constitucionais. Nos 20 anos da Constituição de 1976, Coimbra, 1996, páginas 800 e seguintes). Esta convolação dos assentos de pretérito para meros precedentes judiciais qualificados - lembra CARLOS LOPES DO REGO (ob. cit., página 23) - não implica irrelevância da doutrina constante desses assentos, pois que o respeito por ela
'será normalmente assegurado pela iniciativa das partes - que não deixarão seguramente de impugnar, por via de recurso, quaisquer decisões que se não conformem com a jurisprudência precedentemente uniformizada - procurando articular e conciliar a previsibilidade do Direito (expressa na uniformização da jurisprudência) com as exigências de uma interpretação actualista, que obste à indefinida cristalização das correntes jurisprudenciais'. Os 'assentos' que, nos termos do n.º 3 do citado artigo 17º, viessem a ser tirados nos recursos para o Pleno já interpostos, teriam, de igual modo, apenas o valor de precedentes judiciais qualificados: teriam - diz o n.º 3 do artigo
17º - 'os efeitos das disposições legais citadas nos números anteriores' (ou seja: os efeitos previstos nos novos artigos 732º-A e 732º-B).
4.4. Como resulta do que se disse atrás (cf. supra, I, 2), os recorrentes não questionam, sub specie constitutionis, todo o regime constante do artigo 17º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro. Questionam este artigo 17º apenas na interpretação adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual, no período que decorre entre a revogação dos artigos 763º a 770º do Código de Processo Civil - revogação que entrou em vigor imediatamente, ou seja, na data em que foi distribuído o suplemento do jornal oficial onde foi publicado o Decreto-Lei n.º 329-A/95 (4 de Janeiro de 1996) - e o dia 1 de Janeiro de 1997 - data em que passaram a vigorar as alterações introduzidas no Código -, deixou de haver recurso para o Pleno para efeitos de uniformização de jurisprudência, com excepção apenas dos recursos que já estavam pendentes à data daquela revogação. Não cabe, aqui, obviamente, averiguar se o mencionado artigo 17º comporta outra
- e, quiçá, melhor - interpretação. Neste recurso, há tão-só que ajuizar da constitucionalidade de um tal entendimento da lei.
5. A questão da constitucionalidade da norma sub iudicio:
5.1. A posição dos recorrentes: Dizem os recorrentes que 'o princípio da igualdade (...), na sua complexa perspectiva de protecção jurídica e de defesa de direitos em tribunal fica postergada, se a uniformização de jurisprudência for recusada aos que se encontram no domínio temporal em cujo plano [eles] procederam, depois de perderem uma revista e em face duma oposição de julgados'. Ou seja: ainda segundo os recorrentes, é inconstitucional, por violação dos mencionados princípios constitucionais, o artigo 17º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de
12 de Dezembro, interpretado em termos de tornar impossível a interposição de recurso para o Tribunal Pleno, com vista à uniformização da jurisprudência, das decisões proferidas num 'tempo posterior ao dos 'assentos já proferidos' e ao dos 'recursos para o tribunal pleno já intentados', mas ainda 'anterior ao do início da vigência dos [novos] artigos 732º-A e 732º-B'. Significa isto que os recorrentes o que questionam é a eliminação, nas acções pendentes à data da entrada em vigor do artigo 17º, n.º 1, do recurso para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça, com vista à uniformização de jurisprudência. Ora 'isto - dizem eles -, uma vez que se não quis acabar de vez e de todo com os assentos, sem deixarem rasto e sem se lhe arranjar substitutivo, traz, a todas as luzes, desigualdade e desfavor a débito dos que naquele tempo misto previam e queriam aproveitar-se duma qualquer oposição de julgados'.
5.2. A norma sub iudicio e o princípio da igualdade: Antes de mais, há que observar que só se verifica desigualdade de tratamento relativamente àqueles que ainda puderam interpor recurso para o Pleno. De facto, todos os que viram a revista julgada depois da entrada em vigor do mencionado artigo 17º, n.º 1, ficaram na mesmíssima situação: todos eles ficaram impedidos de fazer intervir o Pleno para solucionar uma divergência jurisprudencial que, acaso, existisse entre a decisão proferida e outra anterior tirada no domínio da mesma legislação sobre a mesma questão fundamental de direito. A desigualdade de tratamento assinalada verifica-se, pois, entre decisões proferidas em estádios diferentes do ordenamento jurídico: umas - as que puderam ser impugnadas perante o Pleno - foram tiradas num momento em que o ordenamento jurídico ainda previa um recurso com vista à prolação de um assento; as outras - as que o não puderam ser - são decisões proferidas num tempo em que o ordenamento jurídico já tinha deixado de admitir esse tipo de recurso. Acontece, no entanto, que as acções, em que foram proferidas as decisões de que não pôde recorrer-se para o Pleno, podem, até, ter sido propostas na mesma data ou, mesmo, em data anterior àquela em que o foram as acções cujas decisões ainda puderam ser objecto desse recurso. E mais: pode, inclusive, ter acontecido que as partes não tenham tido qualquer parcela de responsabilidade no facto de aquelas acções terem sido julgadas depois de outras que foram propostas em data posterior. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição de arbítrio (cf. acórdão n.º 186/90, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º volume, página 383). O que ele proíbe ao legislador não é que estabeleça distinções: proíbe-lhe, isso sim, que estabeleça distinções de tratamento materialmente infundadas, irrazoáveis ou sem justificação objectiva e razoável. No caso, porém, a sujeição a um regime diferente, no que concerne ao recurso para o Pleno, das decisões proferidas em momentos diferentes, ainda que em acções propostas na mesma altura, não se mostra irrazoável, sem justificação objectiva ou fundamento material. O desfavor apontado não tem a sua raiz em qualquer arbítrio legislativo. Na verdade, a justificação para a diversidade de regimes pode, desde logo, encontrar-se no facto de o direito ao recurso apenas nascer com a decisão que se pretende impugnar. Antes de proferida a decisão - nos dizeres do acórdão n.º
287/90 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, página
159 e seguintes) -, apenas 'se foram reunindo outros pressupostos desse direito', já que 'a própria instauração da acção e a fixação do respectivo valor condicionam, de modo óbvio, a existência do direito de recurso'. 'Porém - acentuou-se nesse aresto - seria excessivo conceber este direito como um direito subjectivo incluído na esfera jurídica da parte a partir da instauração desse processo ou da fixação do seu valor e sujeito a uma condição suspensiva: a emissão de uma decisão judicial adversa'. Isto que é assim em geral, era ainda mais evidente no recurso para o Tribunal Pleno.
É que, o fundamento deste recurso era a existência de contradição de julgados. Ele pressupunha, na verdade, que houvesse uma decisão anterior, proferida no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, que tivesse assentado sobre solução oposta à que foi adoptada na decisão de que cabia o recurso. E, como a contradição de julgados só passava a existir com a prolação da última decisão, o direito a recorrer para o Pleno também só podia nascer com ela. Mas, sendo isto assim, as situações que o legislador sujeitou a regimes diferentes - a saber: aos regimes que se deixaram apontados - são também diferentes entre si, como já se acentuou: num caso - recorda-se -, no momento em que foi proferida a decisão, o ordenamento jurídico previa o direito de recurso para o Pleno, uma vez verificada a existência de contradição de julgados; no outro caso, já as leis não previam esse tipo de recurso. Acresce ainda que, não estando em vigor os novos artigos 732º-A e 732º-B - que prevêem que, com o objectivo de prevenir eventuais conflitos jurisprudenciais, a revista seja submetida a julgamento do plenário das secções cíveis (revista alargada) -, não faria sentido manter aberta a via do recurso para o Tribunal Pleno, nos processos decididos já após a abolição desse recurso como instrumento de resolução de conflitos de jurisprudência consumados.
É que, a manutenção desse tipo de recurso só faria sentido, se a decisão a proferir nele houvesse de culminar com a emissão de um 'assento' que fosse vinculativo, ao menos para os tribunais judiciais. Ora, acontece que os assentos, todos eles, deixaram (por força do que se dispõe no n.º 2 do mencionado artigo 17º) de ter qualquer força vinculativa, passando a ser meros precedentes judiciais qualificados. O legislador só estaria, pois, obrigado a dispensar às acções que foram julgadas depois da entrada em vigor dos mencionados artigos 3º e 17º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, o mesmo tratamento que dispensou
àquelas que o foram antes dessa data, admitindo também, quanto a elas, o recurso para o Pleno, se o princípio da igualdade houvesse de operar diacronicamente. Simplesmente, tal princípio não opera diacronicamente, pois, como este Tribunal teve ocasião de sublinhar no acórdão n.º 352/91, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 19º, páginas 549 e seguintes, 'o legislador não está, em regra, obrigado a manter as soluções jurídicas que alguma vez adoptou. Notas típicas da função legislativa são, justamente, entre outras, a liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade. Por isso, salvo nos casos em que o legislador tenha que deixar intocados direitos entretanto adquiridos, não está ele obrigado a manter as soluções consagradas pela lei a cuja revisão procede'. Quando se revê uma lei, em regra, é porque se pretende alterar o regime até então vigente. [cf., identicamente, ANTÓNIO BARBOSA DE MELO (Sobre o problema da competência para 'assentar', Coimbra, 1988, policopiado, páginas 32 e seguintes). Cf. também os acórdãos nºs 309/93 e 563/96 (publicados no Diário da República, II e I-A séries, de 5 de Junho de 1993 e de 16 de Maio de 1996, respectivamente)].
Concluindo este ponto: O princípio da igualdade vincula todas as funções do Estado, jurisdição incluída, pois que o direito ao tribunal se traduz, antes de mais, na garantia que todos hão-de ter de poder aceder aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses protegidos por lei, em condições de igualdade. A norma sub iudicio não viola, porém, como se viu, o princípio da igualdade, encarado nas suas relações com a jurisdição.
5.3. A norma sub iudicio e o direito de aceso aos tribunais: O direito de acesso aos tribunais pode, no entanto, ser encarado numa outra perspectiva, que é a do direito ao recurso. O direito ao tribunal - dizendo agora de outro modo - traduz-se, essencialmente, na efectiva possibilidade de obter uma decisão jurídica sobre toda e qualquer questão juridicamente relevante, proferida por um tribunal independente e imparcial, em tempo razoável, mediante um processo equitativo e um julgamento justo e leal. Este direito compreende, obviamente, também um direito de defesa contra actos jurisdicionais injustos - direito que se exerce pela via do recurso. Mas, mesmo examinada a norma sob esta perspectiva, ela não é inconstitucional. Na verdade, quando se fala em direito ao recurso, alude-se à garantia de um duplo grau de jurisdição, com o que se visa assegurar a possibilidade de fazer examinar as causas com maior dignidade por uma instância de grau superior, na esperança de, por essa via, se obter uma decisão mais justa ou, ao menos, de se corrigirem eventuais erros de julgamento. Simplesmente, fora do domínio penal, em que, quando estejam em causa sentenças condenatórias, o direito ao recurso constitui uma garantia de defesa inafastável
(cf., entre outros, os acórdãos nºs 202/86 e 8/87 (publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 7º, tomo II, páginas 947 e seguintes, e 9º, páginas 229 e seguintes, respectivamente), tem este Tribunal entendido que não existe um genérico e ilimitado direito de recorrer de todos os actos jurisdicionais, e extensivo a todas e quaisquer matérias. O legislador ordinário goza de uma razoável margem de liberdade na definição dos casos em que o recurso
é admissível e dos termos em que tal direito há-de ser exercido. Ele apenas não pode abolir totalmente o sistema de recursos, nem afectar, de forma substancial, o exercício do respectivo direito, em termos de tornar esse exercício particularmente oneroso. Assim, no acórdão n.º 163/90 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 16º, páginas 301 e seguintes), depois de se recordar esta doutrina, acentuou-se que, no processo civil, o que o legislador tem de assegurar sempre a todos, sem discriminações, é o acesso a um grau de jurisdição. E, se a lei previr que o acesso à via judiciária se faça em mais que um grau, tem ele de abrir a todos essas várias vias judiciárias, garantindo que o acesso a elas se faça sem discriminação alguma, maxime para os economicamente desfavorecidos. E acrescentou-se que, embora os recursos se destinem ao reexame das decisões judiciais e, desse modo, a corrigir eventuais erros de julgamento, 'o recurso aos tribunais, ainda que em uma única instância, continua a ser o meio de defesa por excelência dos 'direitos e interesses' legalmente protegidos - um meio de defesa que responde minimamente às exigências de justiça que vão implicadas na ideia de Estado de Direito'. Mais recentemente, o Tribunal, no seu acórdão n.º 259/97 (publicado no Diário da República, II série, de 30 de Junho de 1997), recordou que, 'se o texto constitucional é omisso quanto ao limite máximo dos graus de jurisdição, também o é quanto ao mínimo', não sendo, porém, 'desejável a banalização do acesso à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça'. E concluiu que a inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça - que, no tocante ao montante da indemnização devida por expropriação por utilidade pública, decorre de uma certa interpretação conjugada dos artigos 37º, 51º, n.º 1, e 64º, n.º 2, do Código das Expropriações - não é inconstitucional.
5.4. A norma sub judicio e o princípio da confiança: A norma sub iudicio (artigo 17º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro) não extinguiu, retroactivamente, qualquer direito a recorrer para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça. Na verdade, como se viu, o direito de recorrer para o Pleno apenas nascia com a prolação da decisão judicial que se pretendesse impugnar, e, no caso, quando esta decisão foi proferida, já esse direito de recorrer não existia no ordenamento jurídico. E, quanto às decisões que, tendo sido proferidas antes da entrada em vigor dessa norma, foram impugnados perante o Pleno, os respectivos recursos prosseguiram seus termos (cf. o citado artigo 17º, n.º 3). A norma sub iudicio, não é, pois, retroactiva. É, no entanto, retrospectiva, pois que se aplica para futuro a situações de facto e a relações jurídicas ainda não terminadas: aplica-se às acções pendentes ainda não decididas, à data da sua entrada em vigor. Ora, as partes nessas acções, antes de proferida a decisão, não tendo, embora, um direito, tinham, contudo, a expectativa de poder recorrer para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça, se ela assentasse sobre solução oposta à adoptada por um aresto anterior, proferido 'no domínio da mesma legislação' sobre a mesma
'questão fundamental de direito'. E essa expectativa era, como se sublinhou no citado acórdão n.º 287/90, verdadeiramente jurídica, e não puramente fáctica. Acontece, porém, que, fora do domínio penal, em que a retroactividade in peius é constitucionalmente inadmissível (cf. artigo 29º, nºs 1,3 e 4, da Constituição); do domínio fiscal, em que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroactiva (cf. artigo 103º, n.º 3, da Constituição); e, bem assim, do domínio das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, em que a lei não pode ser retroactiva (cf. artigo 18º, n.º 3, da Constituição); este Tribunal tem sempre entendido que uma lei retroactiva não é, em si mesma, inconstitucional [cf. acordão n.º 95/92 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 21º, página 341 e seguintes)]. Fora dos domínios apontados, uma lei retroactiva só será, por isso, inconstitucional, se violar princípios ou disposições constitucionais autónomos. Será o que sucede, quando a lei afecta, de forma 'inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa' expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos. Num tal caso, com efeito, a lei viola aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito. A este impõe-se, de facto, que organize a 'protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida' [cf. acórdão n.º 330/90 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, páginas 277 e seguintes). Por conseguinte, apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático [cf., entre outros, o acórdão n.º 11/83 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 1º, páginas 11 e seguintes), o citado acórdão n.º 287/90 e o acórdão n.º 486/96 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Outubro de 1997)]. Pois bem: in casu, não pode dizer-se que a afectação das expectativas das partes de recorrer para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça tenha sido arbitrária ou deva considerar-se demasiado onerosa. Por isso, não é ela intolerável. E, não o sendo, não é constitucionalmente inadmissível. Ela seria tal, se não houvesse fundamento material (um interesse público) capaz de justificar a mutação operada na ordem jurídica - uma mutação que, então, se apresentaria como imprevisível e injustificada, não podendo os cidadãos contar com ela. Não é isso, porém, o que acontece. De facto, julgados inconstitucionais os assentos - que a ordem jurídica concebia como actos normativos -, está perfeitamente justificada e era por demais previsível a eliminação do recurso para o Pleno: este era, na verdade, um instrumento processual que se achava, exclusivamente, ao serviço daquele tipo de actos jurisdicionais com alcance normativo. Vistas as coisas de outro ângulo: a expectativa de recorrer para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça - para além de dizer respeito a um meio extraordinário de defesa que, para ser usado, não bastava que a decisão fosse desfavorável, pois era ainda necessária a preexistência de um aresto, proferido no domínio da mesma legislação, que tivesse dado solução jurídica oposta à mesma questão fundamental de direito -, após o julgamento de inconstitucionalidade que atingiu os assentos, ficou demasiado enfraquecida e inconsistente, como que pressentindo a aproximação do fim. Os particulares podiam - e, mesmo, deviam -, razoavelmente, contar com a eliminação do recurso para o Pleno, tal como ele se achava disciplinado nos artigos 763º a 770º do Código de Processo Civil. A sua eliminação para as acções pendentes à data da entrada em vigor do artigo 17º, n.º 1, aqui sub iudicio, não
é, pois, extraordinariamente onerosa ou excessiva. A norma sub iudicio não viola, pois, o princípio da confiança que vai implicado no princípio do Estado de Direito, entendido aquele princípio como garantia de um direito dos cidadãos à segurança jurídica - da segurança que assenta no facto de os cidadãos poderem confiar na ordem jurídica para, nos limites dela, ordenarem e programarem as suas vidas.
5. 5. Conclusão: a norma sub iudicio não é, pois, inconstitucional. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade que nele se contém.
Lisboa, 14 de Outubro de 1998 Messias Bento Bravo Serra José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Beleza Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos e com fundamentos constantes da declaração de voto junta) Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) Guilherme da Fonseca (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmº Cons. Luis Nunes de Almeida) José Manuel Cardoso da Costa Declaração de Voto Votei vencido, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. O artigo 17º do Decreto-Lei nº 329-A/95 dispõe o seguinte: já intentados, o seu objecto circunscreve-se à resolução em concreto do conflito, com os efeitos decorrentes das disposições legais citadas no número a
1 - É imediatamente aplicável a revogação dos artigos 763º a 770º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - Os assentos já proferidos têm o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B.
3 - Relativamente aos recursos para o tribunal pleno nterior. Por sua vez, o artigo 16º, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 180/96, determina: Sem prejuízo do disposto no artigo 17º, o Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as modificações decorrentes do presente diploma, entra em vigor em
1 de Janeiro de 1997 e só se aplica aos processos iniciados após esta data, salvo o estipulado no artigo 13º e nos artigos seguintes.
2. Suscitam-se duas questões de incons-titucionalidade da norma resultante da conjugação destas disposições legais, interpretadas com o sentido de que os recursos ainda não intentados, à data da entrada em vigor daquele artigo 17º, ficam excluídos do regime dos recursos para o pleno, bem como do de julgamento ampliado:
- por violação do princípio da igualdade, pois poderiam surgir situações de desigualdade decorrentes da celeridade processual, em casos que tivessem sido submetidos aos tribunais ao mesmo tempo e em idênticas circunstâncias;
- por ofensa do princípio constitucional da confiança, ínsito no do Estado de direito, por afectar de modo ilegítimo e desproporcionado as legítimas expectativas das partes quanto àquela hipótese de recurso, na medida em que se estabelece a supressão imediata do recurso para o pleno, nos processos pendentes, mas em que tal recurso ainda não tenha sido intentado. Estas, pois, as questões fundmaentais a apreciar.
3. A apontada violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º, nº
1, da Constituição, decorreria, desde logo, da imediata eliminação do recurso para o pleno nos processos em curso, desde que tal recurso ainda não tivesse sido intentado. Com efeito, o legislador optou por, intencionalmente, «antecipar» a entrada em vigor da revogação daquele específico tipo de recurso, que visava a uniformização de jurisprudência; e isto, mesmo em relação à entrada em vigor da reforma global do processo civil. Aquela revogação operou, com efeito, antes e sem dependência da entrada em vigor do diploma que globalmente reviu e reformou o processo civil. E, assim sendo, aqueles que viram tal faculdade coarctada também lhes viram negada a possibilidade de recorrerem ao novo regime de julgamento ampliado, que apenas viria a entrar em vigor aquando daquela reforma. Assim, conforme a duração real de diferentes processos iniciados no mesmo momento, enquanto nuns poderia ter havido lugar àquele recurso para o tribunal pleno, noutros, apenas por a sua tramitação ter sido mais longa, aquela alteração legislativa veio coarctar tal possibilidade de recurso, com base apenas no critério de o mesmo ainda não ter sido interposto à data da entrada em vigor daquela revogação. Como o legislador não optou por, simultaneamente, antecipar a entrada em vigor do novo regime de revista ampliada, ficaram as partes impedidas de qualquer recurso a um ou outro mecanismo de uniformização de jurisprudência.
4. O princípio da igualdade traduz-se numa exigência de tratamento igual do que
é igual e diferente do que é diferente, proibindo nomeadamente discriminações intoleráveis ou não justificadas racionalmente. O que aqui se discute é a questão de saber, reportando-se ao princípio da igualdade, se é legítimo que, em processos semelhantes, à data da revogação em causa, consoante já tivesse ou não sido interposto o recurso, o mesmo fosse admitido ou não (ainda que, na primeira hipótese, com os efeitos
'mitigados'). Ou seja, questiona-se a aparente «desigualdade» resultante da sujeição a regimes diferentes de decisões que, embora se incluam em acções propostas na mesma altura, vieram a ser proferidas em momentos diferentes. Com efeito, ainda que intentadas na mesma ocasião (ou até em momento anterior), conforme o respectivo
«andamento» ou vicissitudes processuais, ou até em virtude de motivos inerentes ao próprio funcionamento do órgão judicial em causa, algumas acções foram objecto de decisões num momento em que a ordem jurídica previa ainda o tipo de recurso para uniformização de jurisprudência para o Pleno do STJ, enquanto outras já só vieram a obter tais decisões ( as passíveis desse específico tipo de recurso) em momento posterior, no qual tal tipo de recurso deixara de ser admitido; e isso sem que, simultaneamente, se previsse um outro tipo de mecanismo processual com vista à uniformização de jurisprudência.
5. Constata-se assim, efectivamente, um tratamento diferenciado, eventualmente desfavorável, porquanto certas acções se arrastaram no tempo sem qualquer culpa ou responsabilidade das partes. Mas essa diferenciação não se revela arbitrária ou infundada. O legislador não está, em regra, obrigado a manter as soluções jurídicas que anteriormente adoptou, sendo característica essencial da função legislativa a auto-revisibilidade, para além da própria liberdade constitutiva. Seria impensável 'prender' o legislador às soluções consagradas, inviabilizando qualquer evolução ou adaptação do sistema (cfr., nomeadamente, Acórdão nº
352/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., pág. 549). Claro está que sempre se verificarão situações em que haverá que deixar intocados direitos adquiridos entretanto consubstanciados, mas fora desses casos é a própria necessidade de evolução do sistema e das soluções nele consagradas que impõem a revisão das soluções jurídicas anteriormente adoptadas. Por outro lado, o princípio da igualdade não opera diacronicamente, como este Tribunal vem sucessivamente afirmando (cfr., nomeadamente, o citado Acórdão nº
352/91), sendo certo que o direito ao recurso só surge, na verdade, com a prolação da decisão desfavorável. Consequentemente, não existe, no caso, qualquer arbitrariedade na escolha do momento a partir do qual se operam os efeitos da nova solução jurídica adoptada, pelo que se não mostra, assim, violado o princípio da igualdade. Neste ponto, portanto, acompanhei a tese maioritária.
6. Quanto à apreciação da questão de uma eventual violação do princípio da confiança, há que sublinhar que não estamos, in casu, perante uma situação de verdadeira rectroactividade, ou em que a lei viesse retirar um direito já exercido, situação que seria manifestamente intolerável. Estamos, sim, perante uma rectroactividade inautêntica, ou retrospecti-vidade. Todavia, como este tribunal tem de forma constante afirmado (cfr., por todos, o Acórdão nº 303/90 deste Tribunal, publicado no Diário da República, I Série, nº
296, pág.s 5212), o princípio da confiança traduz uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas (cit. Acórdão nº
303/90). Assim, perante uma afectação concreta de legítimas expectativas dos cidadãos, haverá que averiguar se tal afectação é inadmissível, por arbitrária ou demasiado onerosa. O que sucederá, nomeadamente, quando essa afectação constitua uma alteração da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários de tal normação não pudessem contar, ou ainda, quando se não verificar a existência de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que, ditando essa alteração, devam ser considerados prevalecentes sobre tais expectativas.
7. A existência de um recurso para o Tribunal Pleno, e a tradição jurídica daí decorrente no nosso regime processualista, ainda que se trate de um recurso específico orientado para a resolução de conflitos através da uniformização de jurisprudência, criou expectativas legítimas e fundadas em todos aqueles que recorrem aos tribunais, escudados em anterior jurisprudência do STJ favorável às respectivas pretensões, expectativas que resultaram necessariamente frustradas com a sua eliminação de forma imediata nos processos em curso. Seria razoável, porém, contar com essa eliminação, dada a função dos assentos e a orientação constitucional que sobre esta matéria veio a vingar, resultando no julgamento de inconstitucionalidade feito no Acórdão nº 810/93 deste Tribunal
(Diário da República, II Série, de 2 de Março de 1994) da norma constante do artigo 2º do Código Civil e posterior declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, constante do Acórdão nº 743/96 (Diário da República, I Série-A, de 18 de Julho de 1996)? Justificou a Comissão Revisora do Processo Civil esta sua opção relativamente ao referido artigo 17º do Decreto- -Lei nº 329-A/95
(cfr. Carlos Lopes do Rego, A Uniformização da Jurisprudência no Novo Direito Processual Civil, Lex, pág. 8 e segs.), nas 'dificuldades de ordem prática sentidas na aplicação da jurisprudência constitucional contida no acórdão nº
810/93 e nos vários que se lhe seguiram, de idêntico conteúdo, por inexistirem manifestamente mecanismos processuais susceptíveis de permitir o preenchimento das 'condições' estabelecidas pelo Tribunal Constitucional para a legitimação constitucional dos assentos'. Entendeu, assim, a Comissão que 'a revogação imediata, mesmo nas acções pendentes, do recurso para o Tribunal Pleno - com ressalva naturalmente dos recursos já interpostos - radicou na ideia de que se não justificava a manutenção de quarto grau de jurisdição em processo civil, que, ademais, passaria a ser insusceptível de conduzir e culminar num acto normativo de interpretação autêntica da lei, dotado de força vinculativa genérica' (ob. cit., pág. 24). Ou seja, encarado este tipo de recurso, no seu núcleo essencial, como um
'instrumento adjectivo ao serviço do instituto dos assentos', e postos estes irremediavelmente em causa, nomeadamente como fontes de direito, resultaria o mesmo despojado de função e objectivo. Atentas as consequências e as necessidades de revisão do sistema, optou, pois, o legislador por proceder à supressão imediata deste recurso.
É verdade que o legislador consagrou, na revisão do processo civil, um outro mecanismo de uniformização de jurisprudência - o julgamento ampliado de revista, previsto nos actuais artigos 732º-A e 732º-B do CPC -, mas optou, todavia, por não o aplicar de imediato às acções pendentes, ou seja, não antecipou a entrada em vigor deste regime face à revisão do processo civil, embora tenha optado por aquela eliminação imediata do anterior recurso para o Pleno. O que se consubstancia assim num 'vazio' temporal em que as partes se viram desprovidas de qualquer tipo de mecanismo tendente à uniformização de jurisprudência, e não na eliminação pura e simples de todo e qualquer tipo de mecanismo processual para esse fim específico.
8. O direito ao recurso não constitui um direito ilimitado e absoluto, podendo o seu concreto conteúdo ser definido pelo legislador ordinário. Assim, a existência de limitações aos recursos - nomeadamente através do estabelecimento de alçadas - é uma prática necessária para a racionalização e bom funcionamento do próprio sistema judicial (cfr., por todos, Acórdão nº 287/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol, págs. 159). Por outro lado, não está constitucionalmente vedado ao legislador eliminar vias de recurso. Assim, neste caso, em que se visou uma instância de recurso que correspondia a um quarto grau de jurisdição, e que se inseria num específico mecanismo de uniformização da jurisprudência - os assentos -, já declarado inconstitucional, uma tal eliminação, na lógica de uma mais ampla reforma do processo civil, pareceria fundamentada. Só que, a sua aplicação imediata aos processos pendentes, mesmo quando as partes, no momento da respectiva introdução em juízo, confiavam, de forma legítima e fundada - por existir anterior jurisprudência do STJ favorável aos respectivos interesses - que, em caso de insucesso, poderiam ainda socorrer-se de tal via de recurso, vem afectar de forma inadmissível as expectativas dos cidadãos. E isto, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque tal eliminação, ao contrário do que se tem afirmado, não foi «ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes» (cfr. cit. Acórdão nº 287/90), pois que, e desde logo, a eliminação dos assentos não impunha, obrigatoriamente, a eliminação do recurso para o Pleno, tal como, aliás, decorre do regime previsto para os recursos já pendentes para o Pleno no artigo 17º, nº 3, do Decreto-Lei nº
329-A/95. E, ainda, porque sempre seria possível encontrar um sucedâneo para aquele recurso, nos casos de alteração de jurisprudência do STJ, como veio a ser consignado para o futuro, através do julgamento ampliado. Em segundo lugar, porque não estavam os cidadãos perante uma alteração com que razoavelmente pudessem contar, dada a grande tradição de que, na nossa ordem jurídica, gozava a garantia da existência de um específico meio processual para uniformização de jurisprudência. Assim sendo, a norma impugnada vem frustrar, de forma excessiva e demasiadamente onerosa, as fundadas expectativas daqueles que, confiados na existência de anterior jurisprudência favorável do STJ, intentaram acções judiciais, na convicção de que uma alteração dessa mesma jurisprudência só poderia vir a ocorrer através de um específico mecanismo processual, assegurando a intervenção de um número qualificado de juízes do mesmo STJ. Luís Nunes de Almeida Declaração de voto Votei vencido pelo essencial das razões explanadas na declaração de voto do Sr. Conselheiro Luís Nunes de Almeida. Considero que as normas dos artigos 16º e 17º, nº 1 do Decreto-Lei n.º 329-A/95, interpretadas no sentido de entrar em vigor imediatamente a revogação dos artigos 763º a 770º do Código de Processo Civil (e não apenas no de ela ser imediatamente aplicável aos processos pendentes, logo que entrasse em vigor a reforma do processo civil nos termos do artigo 16º desse decreto-lei), ao eliminarem, no hiato entre essa revogação e a entrada em vigor da possibilidade de julgamento ampliado da revista, a possibilidade de intentar recurso para o Tribunal Pleno, violaram o princípio da confiança sem que isso fosse necessário para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. A existência de um recurso, com longa tradição no nosso direito, que tinha como fundamento específico a existência de certa jurisprudência de um Tribunal superior, e com a finalidade de a uniformizar, permitia a quem foi levado a intentar uma acção (ou a interpor recurso) com base em tal jurisprudência fundar a legítima expectativa de apenas não obter ganho de causa se ela viesse a ser alterada num recurso especificamente a isso dirigido, a decidir pelo Plenário do Supremo Tribunal de Justiça - expectativa, esta, que é frustrada pelas normas em apreço sem que com isso se pudesse razoavelmente contar (e relembre-se que a declaração de inconstitucionalidade dos assentos não tinha esse alcance) e sem que se tenha mostrado que a eliminação imediata de tal possibilidade de recurso (para mais, subsistente apenas num 'intervalo', cujo fundamento se não descortina, até à entrada em vigor das normas que vieram a introduzir o julgamento ampliado da revista) era necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Paulo Mota Pinto