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Proc. nº 278/96
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., com sede em ----------, arguida em processo de transgressão que correu termos no 2 º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, foi condenada no pagamento de multa global no valor de 25.000$00 e na cessação da exploração da carreira de transporte público de passageiros através de veículos automóveis pesados de ....... - ............. de que era concessionária, em virtude do cancelamento da respectiva concessão, ao abrigo do disposto nos arts.
207º e 213º, alínea d), do Regulamento de Transportes em Automóveis (R.T.A.).
Os factos imputados à arguida, constantes do auto de notícia, traduziram-se em sucessivas interrupções, em diferentes dias, no percurso e no horário da carreira concessionada, que apenas era retomada com um atraso de cerca de uma hora, consubstanciando, assim, uma infracção ao disposto no art
207º do R.T.A.
Inconformada, a arguida interpôs recurso para a Relação de Coimbra, suscitando, desde logo, uma questão concreta de constitucionalidade, para além de levantar outras questões relativas à insuficiência de prova de factos e à desproporção das sanções aplicadas.
A questão de constitucionalidade levantada dizia respeito à alínea d) do art. 213º do R.T.A., norma sancionatória aplicada pela decisão recorrida, que, no entender da recorrente, por se tratar de uma norma penal em branco, violava o disposto no art. 29º da Constituição.
Através de acórdão da Relação de Coimbra, proferido em 8 de Fevereiro de 1995, foi negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença da 1ª instância.
Nesse acórdão tomou-se posição quanto à matéria de constitucionalidade nos seguintes termos:
' Alega também a recorrente que o art. 213º, alínea d) do R.T.A. é materialmente inconstitucional por violar o disposto no art. 29º nº 1 da Constituição. Cremos que também não lhe assiste razão nesta matéria.
Estabelece o art. 213º alínea d) do citado R.T.A. que «são punidas com multa de 1.000$00 a 5.000$00 as infracções ou qualquer infracção não expressamente previstas neste título» (Título III que se refere às «Penalidades»).
Ora a infracção por que foi condenada a arguida foi precisamente aquela que respeita à interrupção parcial da exploração da carreira ............-
..............., infracção esta a que se referiu já o ofício da Direcção-Geral de Viação de Transportes Terrestres (fls.5) no qual se dá conta de exposições que acusam a arguida de «persistir na exploração meramente parcial» da aludida carreira.
Como esta infracção ao R.T.A. não está «expressamente» apontada ou prevista no Título III do R.T.A., daí que a sua punição fosse estabelecida pelo legislador no art. 213º alínea d) daquele diploma legal, que pretendeu que tais infracções não deixassem de ser punidas por violarem ostensivamente o Regulamento de Transportes em Automóveis.
Aliás, o douto Acordão do Tribunal Constitucional de 18.01.84 (Acordão 6/84, Proc. 42/83 publicado no Diário da República, II série, nº 101 de
02.05.84) decidiu que a alínea d) do art. 213º do R.T.A. não é inconstitucional pelo que não houve violação do art. 29º da Constituição como assevera a recorrente'. (a fls. 55 e ss.)
De novo inconformada, intrepôs a recorrente recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Este recurso foi admitido por despacho de fls. 63.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Em alegações, a recorrente apresentou as seguintes conclusões:
' 1º. A norma sancionatória invocada é a alínea d) do art. 213º do Regulamento de Transportes em Automóveis (R.T.A.), aprovado pelo Decreto nº. 37 272, de 31 de Dezembro de 1948, que tem a seguinte redacção: «É punida com multa de
1.000$00 a 5.000$00 qualquer infracção não prevista neste título».
2º. O douto Acórdão recorrido reconhece que não há norma incriminadora que considere ilícitos os actos da recorrente.
3º. A Lei deve ser certa e precisa de modo a que seja claramente definida a esfera de livre actividade do homem, isto é, «nullum crimen sine lege certa».
4º. A norma penal incriminadora deve determinar com precisão o facto criminoso, acção ou omissão;
5º. O crime não pode consistir numa situação, numa qualidade ou atitude pessoal.
6º. Também o facto não pode ser inferido da lei, tem de ser definido na lei.
7º. Não é norma incriminadora constitucionalmente válida aquela cujo teor se apaga numa cláusula geral, que remete o seu preenchimento para o critério do julgador.
8º. Como reconhece o próprio Acórdão recorrido «Como esta infracção (exploração parcial) ao R.T.A. não esta expressamente apontada ou prevista no título III do R.T.A.», houve que recorrer à aplicabilidade da alínea d) do art. 213º do R.T.A.
9º. A referida alínea d) do art. 213º do R.T.A. é uma norma penal absolutamente em branco, sendo, pois, materialmente inconstitucional por violadora do art.
29º, nº. 1, da Constituição'.
O Ministério Público, por seu turno, concluiu do seguinte modo:
'O presente recurso funda-se num evidente equívoco da recorrente, que não teve na devida conta a distinção - essencial em todo o direito sancionatório - entre previsão e estatuição normativas, isto é, entre a norma (ou parte dela) que tipifica certo comportamento ilícito e culposo que se pretende sancionar e a que comina - verificado o mesmo - a aplicação ao infractor de certa espécie e medida de sanção - no caso, de natureza pecuniária [...]
O facto típico e ilícito consistiu na interrupção parcial da exploração de certa carreira de transporte público colectivo, traduzido na circunstância de ter ocorrido corte no respectivo percurso e horário, implicando espera e transbordo para os utentes e exploração com execução defeituosa do serviço público, fundamento da concessão.
A sanção pecuniária cominada resultou da aplicação da norma sancionatória residual - questionada no presente recurso - que, como é óbvio, não prevê, nem tinha que prever, quais os comportamentos a que é aplicável - e que serão naturalmente todas as infracções tipificadas no Regulamento de Transportes [em] Automóveis,para as quais não esteja específicamente cominada sanção diversa.
A norma sancionatória residual, constante do art. 213º, alínea d) do Regulamento de Transportes [em ]Automóveis, aprovado pelo Decreto nº. 37 272, de
31 de Dezembro de 1948, não infringe o disposto no nº. 1 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa, quando aplicado em consequência de se haver julgado que a infracção cometida resultava prevista e tipificada noutro preceito (o do art. 207º) daquele Regulamento, sem que para ela se cominasse sanção especial e diversa' (a fls.).
3. Foram corridos os vistos legais.
Cumpre decidir.
II
4. Não há razões que obstem ao conhecimento do mérito do recurso.
5. A questão de constitucionalidade levantada pela recorrente prende-se com a alegada inobservância do princípio da legalidade, em especial do princípio da tipicidade, em Direito Penal, princípio com assento constitucional no art.
29º, referindo-se à circunstância de a alínea d) do art. 213º do R.T.A. não caracterizar de forma típica as infracções a que se refere este acórdão recorrido.
Terá a recorrente razão?
Entende-se que não. Vejamos porquê.
A norma da alínea d) do art. 213º do R.T.A. é uma norma meramente sancionatória e, como tal, não descreve qualquer comportamento típico, que há-de estar previsto numa outra norma. O princípio da tipicidade em matéria de punição criminal postula que '... a lei deve especificar suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos da medida de segurança) bem como tipificar as penas (ou medidas de segurança) ' (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 1993).
Neste sentido, escreve também Sousa Brito:
'...E deve entender-se que este « princípio da conexão» entre as penas e as medidas de segurança, por um lado, e os respectivos pressupostos, por outro, está consagrado expressamente no art. 29º. da Constituição'(Estudos sobre a Constituição, vol. II, Lisboa, 1978, pág. 236).
Mas, ao contrário do que afirma a recorrente, a punição resultou da conjugação da norma do art. 213º., alínea d), do R.T.A., com a norma do artº.
207 do mesmo diploma, sendo certo que é esta que prevê o comportamento típico, como de resto foi já salientado nas alegações do Ministério Público:
'Na verdade - e desde a prolação da decisão da 1ª instância - sempre foi claro que o comportamento da recorrente foi subsumido a duas normas constantes do R.T.A.: a do artº. 207 (previsão da infracção) e a do artº. 213 alínea d)
(estatuição da correspondente sanção). '
Estabelece o art. 207º. do R.T.A.:
'Independentemente das demais sanções aplicáveis, são punidas com o cancelamento da concessão as infracções aos artigos 103º., & 1º., e 124º., o abandono ou interrupção, total ou parcial da exploração de carreiras, a recusa de aquisição do material necessário à exploração e, de uma forma geral, o não cumprimento das cláusulas de concessão que, pela sua frequência ou natureza, seja considerado incompatível com a qualidade de concessionário de um serviço público.
§ único (...)
E diz o artº. 213, alínea d), do R.T.A.:
'São punidas com multa de 1.000$00 a 5.000$00:
a) (...); b) (...); c) (...); d) qualquer infracção não expressamente prevista neste título'.
6. Como se pode observar, o próprio art. 207º do R.T.A. prevê o comportamento típico - interrupção, total ou parcial, da exploração de carreiras
- pelo qual a recorrente foi punida e uma sanção, qualificada como acessória pelo acórdão recorrido, ressalvando-se pela expressão inicial
('Independentemente das demais sanções aplicáveis') a sanção pecuniária prevista na alínea d) do art. 213º do R.T.A., sanção esta que é aplicável a toda e qualquer infracção, não prevista naquele título.
Os critérios do ilícito penal - desvalor da acção proibida, desvalor do resultado lesivo e identificação do bem juridico tutelado - encontram-se na norma do art. 207º do R.T.A., onde se prevê uma determinada sanção, sem prejuízo de outras que também caibam, sendo a norma da alínea d) do art. 213º do R.T.A. uma norma meramente sancionatória de carácter 'residual' que, como tal, tem de conjugar-se com outros preceitos do mesmo diploma legal, no caso o do indicado art. 207º.
7. Não merece, pois, censura o acórdão recorrido.
III
8. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, confirmando-se o Acordão recorrido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 19 de Março de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa