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Processo nº 40/97
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - Na 2ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão de 12 de Janeiro de 1996, foi a arguida A., condenada como autora material de sete crimes de falsificação de documento autêntico, previstos e punidos nos artigos 255º, alínea a) e 256º, nºs 1, alínea a) e 3 do Código Penal, na pena de oito meses de prisão por cada um deles e, cumulando-se tais penas parcelares ao abrigo do disposto no artigo 77º do mesmo diploma legal, foi-lhe imposta a pena única de três anos de prisão, suspensa embora na sua execução pelo período de dois anos.
Não conformada com o assim decidido, levou a arguida recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, suscitando na respectiva motivação a inconstitucionalidade de diversas normas do Código de Processo Penal que, no seu entendimento, não asseguram o 'duplo grau de jurisdição'.
Por acórdão de 24 de Outubro de 1996, aquele Alto Tribunal negou provimento ao recurso e confirmou, por inteiro, a decisão impugnada.
E, no que à questão de constitucionalidade respeita, escreveu-se assim:
'De resto, a tese da recorrente é de todo contrária à jurisprudência deste Supremo e do Tribunal Constitucional (v. os acs. de 5/5/93, DR, II s, de
29/10/93, do T.C. e de 18/3/93, deste STJ, in BMJ nº 425 - 277, onde também se toma posição sobre o problema - posto pela recorrente - da documentação da prova, à luz do artº 363 CPP, em termos de que não divergimos, podendo ver-se a respectiva anotação para maiores desenvolvimentos).'
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2 - Dissentindo deste acórdão interpôs a arguida, sob invocação do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b) da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, recurso para o Tribunal Constitucional em ordem à apreciação da matéria de inconstitucionalidade suscitada.
O recurso veio a ser admitido por despacho de 29 de Novembro de
1996, que considerou seu objecto 'a apreciação da inconstitucionalidade dos artigos conjugados 61º, alínea b), 399º, 401º, nº 1, alínea b), 427º, 432º, alínea c) e 433º do Código de Processo Penal, na medida em que impedem a reapreciação da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça'.
Os autos foram remetidos a este Tribunal, fechando a recorrente, as alegações entretanto oferecidas do modo seguinte:
'PEDE-SE: que o julgamento do Tribunal Constitucional vá no sentido da inconstitucionalidade da norma jurídica do artº 432º c) C.P. Penal e de todas as que, conjugadas, vedam o duplo grau de jurisdição (em matéria de facto e em matéria de direito) para o efeito da não-aplicação da norma em causa.
que o Tribunal Constitucional, em consequência, conceda todos os legais efeitos daí decorrentes, sendo que à recorrente lhe parecem de atender: a) a repetição do julgamento, em 1ª instância, com registo da prova; artº 363º do C.P. Penal; b) que o recurso ao Tribunal Superior se encaminhe para a Relação de Lisboa, e não, 'per saltum', para o Supremo Tribunal de Justiça, porque o Tribunal da Relação pode reapreciar a causa mais amplamente (de facto e de direito); artº
428º 1, C.P. Penal. c) que se proceda à reforma da decisão do Tribunal recorrido, de molde a conformá-la com o juízo de inconstitucionalidade.'
Por seu turno, o senhor Procurador-Geral Adjunto, em contralegação sustentou que o recurso se circunscreve à apreciação da norma do artigo 432º, alínea c) do Código de Processo Penal, e quando muito à do artigo
433º do mesmo diploma, pois que, ponderou, 'não se vê em que termos poderiam os preceitos constantes dos artigos 61º, alínea h), 399º e 401º, nº 1, alínea b) colidir com qualquer princípio ou preceito da Lei Fundamental, nenhuma conexão apresentando sequer com a temática da garantia do segundo grau de jurisdição em sede de matéria da facto'.
E concluiu assim:
'1º - O sistema de recursos e os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo penal em vigor, emergentes do estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 410º, 432º e 433º do Código de Processo Penal, não violam quaisquer princípios ou preceitos constitucionais.
2º - Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso.'
Dada a existência de uma jurisprudência reiterada e uniforme
(embora não unânime) deste Tribunal sobre a matéria da causa, foram dispensados os vistos.
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II - A fundamentação
1 - Como bem se assinala na contralegação do senhor Procurador-Geral da República, o objecto do presente recurso centra-se em apreciação da legitimidade constitucional das normas dos artigos 432º, alínea c) e 433º do Código de Processo Penal enquanto regem sobre a competência do Supremo Tribunal de Justiça para julgar os acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo e no âmbito dos poderes de cognição que, para tal efeito, lhe são atribuídos por lei (nomeadamente nas normas dos nºs 2 e 3 do artigo 410º daquele Código, normas estas a que se faz referência no artigo 433º).
Ora, sobre esta matéria existe uma muito vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido da não inconstitucionalidade do sistema de recursos instituído naquelas normas pelo Código de Processo Penal de 1987 (cfr. por todos, o acórdão nº 172/94, Diário da República, II Série, de 19 de Julho de
1994).
Ora, porque se tem por desnecessário ajuntar uma qualquer acrescida argumentação aos fundamentos que suportaram tal jurisprudência - que aqui por inteiro se acolhe - seguir-se-á nos desenvolvimentos antecedentes o essencial das razões sustentadas naquele aresto em defesa da tese da não inconstitucionalidade.
Vejamos então.
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2 - O Tribunal Constitucional no acórdão nº 401/91, Diário da República, I série-A, de 8 de Janeiro de 1992, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, por violação do disposto no artigo 32º, nº 1, da Constituição.
Este aresto, inscrito numa linha de entendimento jurisprudencial prevalecente no Tribunal (cfr. por todos os acórdãos nºs 219/89 e 340/90, Diário da República, II série, de, respectivamente, 30 de Junho de
1989 e 19 de Março de 1991), ponderou que 'no plano garantístico, e no rigor dos princípios, tão importante é reconhecer-se ao arguido o direito de recorrer da solução que tenha sido encontrada para a questão de facto como da solução que haja sido dada à questão de direito'.
Assim sendo, entendeu-se ali ser forçoso concluir que, 'num sistema complexo como o que consta do Código de Processo Penal de 1929, em que a prova produzida perante o tribunal colectivo não é reduzida a escrito (por força do artigo 466º) e em que as respostas aos quesitos não são fundamentadas
(em virtude do disposto no artigo 469º), então o artigo 665º, entendido com o alcance do assento em causa, ou seja, o de que as relações só podem `alterar as decisões dos tribunais colectivos de 1ª instância em face de elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada no julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos', não representa uma garantia suficiente para o arguido e consequentemente viola o disposto no nº 1 do artigo
32º da Constituição'.
E, depois de se acrescentar que 'só excepcionalmente e em casos contados constarão dos processos elementos susceptíveis de levar as relações a alterar a decisão do colectivo, e, por outro lado, a faculdade de anulação dessa decisão com base em vícios dos quesitos ou das respostas - ao abrigo do nº 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil -, em bem pouco alargará, no domínio fáctico, o poder cognitivo das relações' logo se esclarecia que a declaração de inconstitucionalidade ali decretada não poderá ser entendida como 'significando que outra solução que não seja a repetição da prova em audiência pública perante as relações está em conflito com a Constituição. É que, entre o sistema em questão, que, na prática, e na grande maioria das situações, reduz a zero os poderes das relações nos recursos penais em matéria de facto, e o que ordenasse a repetição da prova em audiência pública perante o tribunal de recurso, outros há certamente - não competindo a este Tribunal indicá-los - que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, por força do citado preceito constitucional'.
Este entendimento jurisprudencial havia sido já pre--anunciado, de algum modo, em diversos estudos doutrinais publicados após o início da vigência da Constituição de 1976.
Assim, Figueiredo Dias, em conferência que proferiu em 1983, subordinada ao título 'Para uma reforma global do processo penal português - Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais', in, Para uma Nova Justiça Penal, 1983, p. 189, afirmou, nomeadamente:
'Por outro lado, o sistema português de recursos penais é notoriamente, de uma parte insuficiente - pois que não possui qualquer recurso de facto minimamente digno de um tal nome -, de outra, excessivo - por isso que submete a mesma questão de direito a dois graus de recurso. O que vale por dizer que cria um duplo grau de recurso da mesma questão de direito, enquanto de igual passo, relativamente à questão de facto, viola sem remissão o princípio (em que, aqui sim, se tem visto uma espécie de garantia legal dos cidadãos) do duplo grau da jurisdição de mérito! Digamos, pois, sem eufemismos: o nosso actual sistema de recursos de duplo grau, que começou por ser liberalmente cabido em princípio a toda e qualquer decisão judicial, mas onde as relações e o Supremo acabam por exercer a mesma função e dispôr praticamente das mesmas possibilidades de cognição, esse sistema é um logro e um rematado absurdo, que não serve os direitos das pessoas nem os interesses comunitários'.
E o mesmo Autor, na 'Lição magistral sobre processo penal' proferida em 18 de Maio de 1985, numa sessão de estudo sobre 'Reformas dos processos penal e civil' promovida pela Associação Sindical dos Magistrados Judiciais Portugueses (conforme o relato constante da revista Tribuna da Justiça, nº 6, Junho de 1985), pronunciou-se assim:
'Aquilo a que se chama recursos, vão-me permitir, é uma macaqueação de recurso, perfeitamente inconstitucional, não é recurso nenhum, não é a reapreciação da causa, é um travesti'.
Também Cunha Rodrigues, em exposição que fez sobre 'Recursos', nas Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal,
1988, p. 379, teve ocasião de afirmar:
'E nem vale a pena ignorar, sob pena de fariseísmo, o que hoje se passa entre nós. Não só o recurso do tribunal de júri é interposto directamente para o Supremo Tribunal de Justiça como do tribunal colectivo não há, em rigor, recurso da matéria de facto. O que existem são dois recursos de revista, mais alargada,
é certo relativamente ao Tribunal da Relação'.
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3 - O Código de Processo Penal em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, não podia deixar de reflectir o debate doutrinal travado à volta deste específico tema, logo revelando na sua exposição preambular o propósito de se pretender 'emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico', instituindo-se para tanto 'um regime aparentado com a ideia do recurso unitário, em princípio idêntico para a Relação e para o Supremo e abarcando, na medida possível e conveniente, tanto a questão de direito como a questão de facto'.
Assim, e relativamente aos recursos ordinários, foi previsto um primeiro quadro normativo, de conteúdo genérico, respeitante à sua tramitação unitária (artigos 410º a 426º), para depois, se estabelecerem regras próprias do recurso perante as Relações (artigos 427º a 431º) e perante o Supremo Tribunal de Justiça (artigos 432º a 436º).
Muito embora a norma cuja legitimidade constitucional cumpre averiguar seja a que se contém nos artigos 410º, nºs 1 e
2, e 433º do Código de Processo Penal, por força da remissão que nelas se operam e do contexto sistemático que as influenciam, importa reter aqui a formulação de diversos outros preceitos, concretamente dos seguintes:
Artigo 410º
(Fundamento do recurso)
1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso, pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.
Artigo 433º
(Poderes de cognição)
Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nº 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.
Artigo 426º
(Reenvio do processo para novo julgamento)
Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artigo
410º, não for possível decidir da causa, o tribunal do recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
Artigo 436º
(Reenvio)
Se o Supremo Tribunal de Justiça decretar o reenvio do processo, o novo julgamento compete ao tribunal, de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão recorrida, que se encontrar mais próximo.
Desprende-se desta estatuição que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de recurso, só conhece, em regra de matéria de direito; no âmbito das questões de facto, os seus poderes de cognição, restringem-se a verificar, 'desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum', sobre:
(a) suficiência ou insuficiência para a decisão da matéria de facto provado;
(b) a existência de eventual contradição insanável da fundamentação; (c) a possível comissão de erro notório na apreciação da prova.
O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pode também ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.
Nestas situações, face à impossibilidade de decidir a causa, determina o reenvio do processo para se proceder a novo julgamento a efectuar por outro tribunal colectivo.
O recurso penal, interposto do acórdão final do tribunal colectivo para o Supremo Tribunal de Justiça, apresenta-se assim como um recurso de revista ampliada, em que este último é chamado a reapreciar a decisão da 1ª instância, em regra, apenas no tocante a matéria de direito, podendo porém intervir, dentro de um determinado condicionalismo, quanto à matéria de facto, naqueles casos em que se desenham fortemente situações indiciadoras de potencial erro judiciário.
Mas, será que semelhante sistema talqualmente sustenta o recorrente, colide com as garantias de defesa asseguradas pelo artigo 32º, nº 1, da Constituição?
Pode, desde já antecipar-se uma resposta negativa.
Vejamos porquê.
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3 - É sabido que aquele preceito constitucional não consagra expressamente, entre as garantias de defesa, o princípio do duplo grau de jurisdição, como aliás acontece também com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Apenas no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (aprovado para ratificação, pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho) se consagra, em matéria penal, essa garantia nos termos seguintes: 'qualquer pessoas declarada culpada de crimes terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei' (cfr. artigo 14º, nº 5).
Mas, aquele princípio tem sido afirmado pela doutrina (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., 1991, p. 769; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p.
164; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional - Direitos Fundamentais,
1988, p. 261) e, como já se observou, constitui jurisprudência firme deste Tribunal, que uma das garantias de defesa a que se reporta o artigo 32º, nº 1, da Constituição, é, justamente, o direito ao recurso contra sentenças penais condenatórias, o que vale por reconhecer, no domínio processual penal, como princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição.
Simplesmente, como tal jurisprudência tem acentuado,
'tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras
(decorrentes da exigência de imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito; basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal colectivo'.
E com base nesta ponderação, no já citado acórdão nº 401/91, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo
665º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, deixou-se expressamente consignado que a inconstitucionalização daquele regime não podia ser entendida 'como significando que outra solução que não seja a repetição da prova em audiência perante as relações está em conflito com a Constituição'. E logo se acrescentava: 'É que, entre o sistema em questão [...], e o que ordenasse a repetição da prova em audiência perante o tribunal de recurso, outros há certamente [...] que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, por força do citado preceito constitucional'.
Ora, o sistema de revista ampliada previsto no Código de 1987, deve considerar-se como um desses sistemas constitucionalmente compatíveis, pois que protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente, de erro grosseiro na decisão da matéria de facto), e, em concomitância, defende-o do risco da uma sentença injusta.
Estando em causa o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos acórdãos finais dos tribunais colectivos, há-de desde logo assinalar-se que o tribunal colectivo (tendo em conta as regras do seu próprio modo de funcionamento e as que presidem à audiência de julgamento) constitui, ele próprio, uma primeira garantia no julgamento da matéria de facto.
Acompanhando Cunha Rodrigues, ob. cit., p. 393, pode dizer-se, a respeito da garantia resultante da estrutura dos tribunais colectivos, que
'assegurada a efectiva colegialidade do tribunal, garantido o contraditório e obtida uma tanto quanto possível imediação, o recurso do tribunal colectivo tem características particularmente nítidas de remédio jurídico. A previsão de um mecanismo de reapreciação dos factos não pode - não deve - ser senão uma válvula de segurança'.
Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça poderá decretar a anulação da decisão recorrida ou determinar o reenvio do processo para novo julgamento, sempre que apurar a existência de insuficiência da matéria de facto, contradição insanável da fundamentação ou erro notório na apreciação da prova.
O quadro de garantias que derivam da conjugação destas duas vertentes de apreciação do processo criminal oferece aos cidadãos uma protecção constitucionalmente adequada e defende-os, tanto quanto é legítimo extrair dos princípios, da prolação de sentenças injustas.
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4 - Mas, poderá talvez argumentar-se contra o que vem de dizer-se, com o facto de que, tendo o vício (para reconduzir ao reenvio do processo para novo julgamento) que resultar do 'texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum', só muito dificilmente ele poderá ser despistado pelo Supremo Tribunal de Justiça, pois que, resumindo-se a fundamentação da sentença, muitas vezes, a uma remissão genérica para os diferentes meios de prova, aquele Tribunal, ver-se-á, na prática, impossibilitado de detectar as insuficiências, contradições ou erros que em matéria de facto ali se possam conter.
A isto opor-se-á que, em conformidade com o disposto no artigo
374º, nº 2, do Código de Processo Penal, a fundamentação da sentença, para além da 'enumeração dos factos provados e não provados' há-de conter uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentem a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal'.
E assim sendo, a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório.
Não valerá também alegar-se que a recondução do fundamento do recurso a vício resultante 'do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum' será susceptível, em alguns casos, de impedir que o Supremo Tribunal de Justiça possa atender a factos constantes de documentos, nomeadamente documentos autênticos, porventura contendo prova decisiva, em termos de daí resultar uma decisão contrária à verdade material.
No acórdão do Tribunal Constitucional nº 322/93, Diário da República, II Série, de 29 de Outubro de 1993, para ilustrar esta situação formulou-se a hipótese de se encontrar junta aos autos certidão de uma escritura pública, sem que a sua autenticidade tenha sido posta em causa, da qual conste que o arguido, no dia a hora que foi cometido o crime por cuja autoria material o tribunal colectivo o condenou, se encontrava em local diverso daquele em que o delito foi praticado e, mesmo, muito distante dele.
Acompanha-se inteiramente a resposta que nesse aresto se opôs
àquela objecção, perfilhando-se os seus termos a seguir reproduzidos:
'Essa é, porém, uma hipótese que, a verificar-se, não teria a consequência apontada, pois que não impediria o Supremo Tribunal de Justiça de, no julgamento do recurso, tomar em consideração o facto documentado pela escritura pública, junta por certidão aos autos.
É que, ela legitimaria um recurso (a interpor ao abrigo do nº 3 do artigo
410º sub iudicio), que se saldaria pela anulação do acórdão do tribunal colectivo, a fim de que fosse elaborado um outro acórdão pelos mesmos juízes, do qual constasse aquele facto. Ou seja: anulado o acórdão recorrido, em virtude de não constar dele aquele facto (ou, sendo o caso, a razão por que o mesmo se houve por não provado), o tribunal colectivo havia de elaborar um outro acórdão, de cujo relatório constaria que o arguido negava a autoria material do crime, defendendo-se com a alegação de que, no dia e hora em que o mesmo fora perpetrado, ele se encontrava noutro local (quiçá, muito distante do locus delicti), e de cuja fundamentação constaria se esse facto sim ou não se provou e a razão por que se decidiu num ou noutro sentido (cf. artigo 374º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal).
O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pode, na verdade, ter por fundamento `a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada' (cf. nº 3 do artigo 410º citado). Pois, um desses requisitos é, justamente, que a sentença contenha `a enumeração dos factos provados e não provados' e `uma exposição [...] ainda que concisa, dos motivos
[...] que fundamentam essa decisão' [cf. artigo 374º, nº 2, conjugado com o artigo 379º, alínea a) do Código de Processo Penal]. E, para fazer essa enumeração, tem o tribunal colectivo que atender - a mais que à acusação ou pronúncia - às `conclusões contidas na contestação' [cf. alínea d), conjugada com a alínea c), do nº 1 do artigo 374º citado].
Significa isto que, se o tribunal colectivo, com base na certidão da escritura, houvesse dado como provado que o arguido, no dia e hora do crime, se encontrava em local diverso e distante do local em que o mesmo fora perpetrado, não poderia condená-lo por autoria material do mesmo, sob pena de `contradição insanável' entre os fundamentos e a decisão (cf. artigo 410º, nº 2, alínea b)] - vício que resultava do `texto da decisão, por si só'. Se, ao invés, o tribunal colectivo houvesse esse facto por não provado, resultava do `texto da decisão recorrida [...], conjugada com as regras da experiência comum', que tinha havido
`erro notório na apreciação da prova' [cf. artigo 410º, nº 2, alínea c)]: [cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Novembro de 1991, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano VI (1991), V, páginas 12 e seguintes]. Em qualquer destes casos, sempre o Supremo Tribunal de Justiça, ao julgar, tomava em consideração a escritura pública, de que se juntara certidão aos autos.
Mas se, acaso - como atrás se figurou -, o tribunal colectivo omitisse esse facto no relatório ou na fundamentação do acórdão, este seria nulo [cf. artigo
374º, nº 1, alínea d), e nº 2, conjugado com o artigo 379º, alínea a), já citados] - nulidade que o Supremo Tribunal de Justiça havia de decretar, a fim de que, como se disse, o tribunal colectivo elaborasse outro acórdão, no qual se relatasse esse aspecto da defesa do arguido e em cuja fundamentação se tomasse posição sobre ele (dando-o como provado ou como não provado, fundamentando a decisão tomada) e extraindo, dessa decisão, as necessárias consequências jurídicas'.
De tudo o exposto pode concluir-se, como já se assinalou, na esteira de uma jurisprudência uniforme deste Tribunal (cfr., para além dos já citados, os acórdãos nºs 345/92 e 234/93, Diário da República, II série, de, respectivamente, 16 de Março e 2 de Junho de 1993), que o recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça a que se reportam as normas dos artigos 410º, nºs 1 e 2, 433º do Código de Processo Penal, se traduz numa solução compatível com a exigência constitucional consagrada no artigo 32º, nº 1, já que preserva o núcleo essencial do direito ao recurso em matéria de facto.
O quadro garantístico que ali se contém, radica-se, além do mais, no facto de o Supremo Tribunal de Justiça não se achar rigidamente adstrito ao texto da decisão recorrida, pois que, esta há-de ser avaliada, nas suas diversas implicações, em conjugação com as regras da experiência comum.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, na parte impugnada, o acórdão recorrido.
Lisboa, 23 de Abril de 1997 Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa