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Procº nº 531/98.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 6 de Julho de 1998 foi, nos presentes autos, lavrada pelo relator decisão sumária com o seguinte teor:-
'1. J. C. foi pronunciado como autor material de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punível pelos artigos 25º e 24º, nº 1, do Decreto nº
13.004, de 12 de Janeiro de 1927, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, 'ou p. e p. pelas disposições combinadas dos arts. 11º, nº 1, al. a) do DL nº 454/91 de 2/12, consoante em concreto um dos regimes se mostre mais favorável'. A denunciante, T...,S.A, deduziu pedido de indemnização civil, sendo tal pedido contestado pelo arguido, o qual, na peça processual consubstanciadora da contestação, requereu o chamamento à autoria do Banco F.... Por despacho de 10 de Outubro de 1995, proferido pelo Juiz do 5º Juízo Criminal de Lisboa foi indeferido o chamamento, o que levou o arguido a do assim decidido recorrer para o Tribunal da Relação de Lisboa. Na alegação que, então produziu, o arguido limitou-se a dizer, na «conclusão»
5ª, que 'Ao negar o chamamento à autoria do B.F...., o douto despacho recorrido fez aplicação implícita do artº 4º do C.P.P., numa interpretação muito restritiva, que violou o disposto no artº 32º da C.R.P. e o artº 325º e seguintes do C.P.Civil, aplicável nos termos do disposto no artº 4º do C.P.Penal' Por sentença de 29 de Novembro de 1996, foi o arguido condenado na pena de 90 dias de multa à taxa de Esc. 1.000$00, a que corresponderam, em alternativa, 60 dias de prisão, tendo sido declaradas perdoadas metade daquela pena e a prisão alternativa, além de a restante pena de multa ter igualmente sido declarada perdoada sob a condição resolutiva de o mesmo arguido não praticar ou não ter praticado infracção dolosa nos três anos subsequentes à data da entrada em vigor da Lei nº 15/94, de 11 de Maio. Nessa sentença ainda foi o arguido condenado a pagar à denunciante a quantia de Esc. 49.700$00, inserta no cheque em causa, além dos juros de mora, à taxa legal, contados desde a verificação da falta de provisão e até integral pagamento. Da sentença condenatória recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa o arguido. Na motivação que apresentou, escreveu, no que ora releva:-
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É tempo de assentar em que o cheque não é uma vulgar dação pro solvendo. Ele tem uma feição muito particular dentro deste instituto, tanta que chega a merecer tratamento especial por parte da ordem jurídica que, por considerar que aquele título de crédito tem quase natureza pecuniária, pune como crime autónomo de burla (artigo 11.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 454/91 de 2 de Dezembro) aquele que saca um cheque sem provisão. Se assim é, parece ao arguido que o artigo 40.º da L.U.C. conjugado com o art.º
11.º do Decreto-Lei n.º 454/91 de 28 de Dezembro, padece de uma inconstitucionalidade superveniente. Com efeito, o cheque nasce em resultado duma convenção celebrada entre o banco e os seus clientes. Se um destes, ao sacar um cheque sem provisão, fica (e muito bem) sujeito a responsabilidade criminal e civil perante o tomador desse cheque, não faz sentido (por uma questão de simetria) que a outra parte da convenção ? o banco ? não seja sob pena de sanções igualmente severas, obrigada a pagar um cheque validamente sacado. Dentro da filosofia jurídico-constitucional imperante, afigura-se ao arguido que a solução mais equilibrada será esta: Obrigação conjunta para sacador e sacado de modo que, recusado o pagamento de um cheque, surgiria para o tomador o direito de intentar acção contra aqueles dois, em litisconsórcio passivo e necessário. Se se apurar que não há provisão, sai condenado o sacador e absolvido o sacado; caso contrário, as situações invertem-se. Com isto, se observará o princípio constitucional da igualdade (art.º 13.º da Lei Fundamental) e, simultaneamente, sairão reforçados o prestígio e a segurança do cheque.
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......................................... ................................' Por acórdão de 7 de Outubro de 1997, a Relação de Lisboa negou provimento ao recurso. Inter alia, discreteou-se nesse aresto:-
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4.9. Aduz o recorrente que não devia ser condenado no pedido cível por a norma do art. 40º, da LUCH (implicitamente aplicada), violar o nº 1, do art. 13º da Constituição, devendo o pedido cível ser também deduzido contra o sacado. Estando, neste processo-crime, exclusivamente em jogo o relacionamento entre o arguido e a empresa ofendida, e sendo montante do cheque superior ao quantitativo de pagamento obrigatório estabelecido no nº 1 do art. 8º da Lei nº
454/91, de 28-12, não pode deixar de afirmar-se como peregrina a ideia veiculada pelo recorrente de que a ofendida teria de accionar também o Banco sacado, por este não ter satisfeito o pagamento do cheque. Dispõe o art. 40º da LICH, que «o portador pode exercer os seus direitos de acção contra os endossantes, sacador, e outros co-obrigados, se o cheque, apresentado a pagamento em tempo útil, não for pago e se a recusa de pagamento for verificada:
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........................................... ........................» Determinando o art. 13.º nº 1, da Constituição que «todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei», não se vislumbra em que como este normativo pode ser afectado pela garantia concedida pelo referido dispositivo da Lei Uniforme que concede ao portador do cheque o exercício dos seus direitos de acção contra os obrigados cambiários, direitos que têm à partida a possibilidade legal de exercício do contraditório pelos accionados. Aliás, não especifica o Recorrente a natureza, o conteúdo ou o alcance da dita inconstitucionalidade. Se com o seu falar, pretende dizer que o vício resulta da falta de referência á possibilidade de accionar o banco sacado, esquece um dos princípios básicos da Lei Uniforme, constitutiva de uma Convenção internacional, segundo o qual o sacado não se obriga perante o tomador do cheque, princípio emergente designadamente do preceituado nos art.s 4º, 25º ou 32º, que estabelecem a proibição de o sacado aceitar ou avalizar o cheque e estatuem a possibilidade de o sacador revogar o cheque, como é, aliás, entendimento uniforme tradicional, jurisprudencial como doutrinário (...).
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........................................... .........................' Do acórdão de que parte se encontra efectuada transcrição arguiu o recorrente nulidades, o que veio a ser indeferido por aresto de 10 de Fevereiro de 1998. Veio então o arguido requerer a aclaração deste acórdão, pretendendo que fosse esclarecido se se assistiu 'à aplicação implícita' da norma ínsita no nº 3 do artº 40 da Lei Uniforme sobre Cheques, 'como contendo uma presunção de culpa juris et de jure', ou se se achava que 'a norma não é sequer aplicada'. Por intermédio de acórdão tirado em 17 de Março seguinte, disse-se que se reiterava 'que não se assiste à aplicação implícita daquela norma como contendo uma presunção de culpa juris et de jure'. Juntou o arguido aos autos requerimento por meio do qual veio manifestar a sua vontade de interpor recurso para o Tribunal Constitucional, fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Nesse requerimento, discreteou do seguinte modo:-
'3.º Na decisão em apreço foi feita aplicação do art.º 40.º da Lei Uniforme do Cheque, em conjugação com o art.º 11.º do D.L. n.º 454/91, de 28 de Dezembro.
4.º No seu requerimento de chamamento à autoria do Banco F... o ora recorrente suscitou a inconstitucionalidade desta norma.
5.º Ela viola o disposto no n.º 1 do art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa.
6.º Por outro lado, no caso, foi punida a emissão de um cheque como meio de pagamento abstracto, o que faz com que a alínea b) do artigo 11.º do D.L. n.º
454/91 constitua a criação de 'prisão por dívidas', em clara violação das normas do art.º 8.º, n.º 1 e 27.º, n.º 1 e 2 da C.R.P.
7.º Embora não arguida nas instâncias, esta inconstitucionalidade veio a tornar-se manifesta com a publicação do D.L. n.º 319/97 de 19 de Novembro, já depois das decisões impugnadas, a qual deu nova redacção aquele normativo'. Em requerimento posteriormente apresentado, veio o arguido dizer que 'por lapso, não indicou explicitamente, a inconstitucionalidade do n.º 3 do art.º 40.º da Lei Uniforme do Cheque, por violação dos n.ºs 1 e 5 do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, embora a mesma já estivesse implícita naquele requerimento'. O recurso foi admitido por despacho proferido pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa em 2 de Abril de 1998.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula este Tribunal (cfr. nº
3 do artº 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, efectua-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma Lei, a vertente exposição, na qual se decide não tomar conhecimento do objecto da presente impugnação. Na verdade, quanto à alegada inconstitucionalidade da norma ínsita na alínea b) do nº 1 do artº 11º do Decreto-Lei nº 454/91 que, aliás, serviu de base à pronúncia do ora recorrente, nunca a sua desconformidade com a Constituição foi algo de suscitado pelo mesmo antes da prolação do aresto intentado impugnar. Daí que, quanto a este particular, faleça um dos requisitos do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, justamente aquele que consiste na suscitação, «durante o processo», da norma cuja inconstitucionalidade se pretende que seja objecto de apreciação por banda deste Tribunal. E nem se argumente, como o recorrente parece querer fazer, que um tal vício só se deparou após 'a publicação do D.L. n.º 319/97 de 19 de Novembro' (deveria, porventura, querer dizer-se D.L. n.º 316/97).
É que, para além de ser, no mínimo, incompreensível uma tal asserção - com a qual, ao fim e ao resto, se pretende dizer que a publicação posterior de um diploma legislativo infra-constitucional, que conferiu nova redacção a normas constantes de anterior diploma, cuja inconstitucionalidade se não questiona, vaio tornar estas desconformes com o Diploma Básico, e isto sem se assacar tal vício ao novo diploma ? o que é certo é que, de todo o modo, no aresto desejado pôr sob sindicância não fez qualquer aplicação das normas contidas no D.L. nº
316/97 ou a nova redacção introduzida por ele a preceitos do D.L. nº 454/91, designadamente a alínea b) do nº 1 do seu artº 11º. Por estas avançadas razões se não tomará conhecimento do recurso no que tange à citada norma.
2.1. No tocante à norma que se extrai da conjugação do nº 3 do artº 40º da Lei Uniforme sobre o Cheque com a alínea b) do artº 11º do Decreto-Lei nº 454/91, resulta inequívoco da transcrição supra realizada que a mesma não foi, como tal, aplicada na decisão recorrida. Houve, é certo, um discretear sobre o normativo constante daquele artº 40º, mas nunca com conjugação com a dita alínea b) do artº 11º, o que, bem vistas as coisas, sempre se afiguraria de mui difícil realização, tendo em conta que esta
última versa sobre um dos requisitos da previsão de um ilícito criminal, tendo o acórdão impugnado sublinhado que no processo-crime estava 'exclusivamente em jogo o relacionamento entre o arguido e a empresa ofendida'. Ora, não tendo havido na decisão recorrida aplicação da norma que se extrai da conjugação do nº 3 do artº 40º da Lei Uniforme sobre o Cheque com a alínea b) do artº 11º do Decreto-Lei nº 454/91, falta, também aqui, um dos requisitos do recurso da mencionada alínea b) do nº 1 do aludido artº 70º, qual seja o da aplicação da norma cuja enfermidade constitucional se deseja que seja analisada pelo Tribunal Constitucional. Por último, e tendo por alvo tão só o nº 3 do artº 40º da Lei Uniforme sobre o Cheque, a matéria fáctica acima descrita é, por si só, suficiente para demonstrar que o acórdão em crise nunca a aplicou com o sentido de aí se conter uma presunção juris et de jure, razão pela qual, quanto a este ponto, igualmente se não verifica o requisito do recurso imediatamente acima apontado. Termos em que se não toma conhecimento do objecto do recurso. Notifique-se'.
2. É desta decisão que o recorrente vem reclamar para a conferência nos termos do nº 3 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, dizendo, em síntese, que '[d]esde a contestação do pedido cível (...), que ... vem invocando a inconstitucionalidade da alínea a) do nº 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º
454/91, de 28 de Dezembro', que foi manifesta a aplicação, do nº 3 do artº 40º da Lei Uniforme sobre o Cheque por parte do acórdão pretendido recorrer e que aquela primeira norma e esta segunda 'andam indissoluvelmente ligadas, no caso em apreço, pelo que não se pode falar em inconstitucionalidade de uma sem que lhe vá pegada a outra'. O Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da manifesta improcedência da presente reclamação. Cumpre decidir.
3. Entende este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa que a decisão ora impugnada é de manter. Na verdade, é por demais claro que o aresto intentado recorrer não fez, directa ou indirectamente, explícita ou implicitamente, aplicação da norma contida no nº
3 do artº 40º da Lei Uniforme sobre o Cheque ou da norma ínsita na alínea a) [ou da alínea b) ? e para o caso isso não releva -] do nº 1 do artº 11º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, conjugadas ou não uma com a outra, designadamente com o sentido de o sacado dever ser obrigado a pagar, sob pena de ser severamente sancionado, o montante inscrito no cheque devolvido por falta de provisão, sentido esse que o agora reclamante, antes daquele aresto, questionou como sendo infractor da Constituição.
É que, torna-se necessário realçar, o que foi decidido pelo aresto desejado recorrer liga-se, e tão só, à impugnação da sentença condenatória criminal proferida em 1ª instância e não ao recurso, que subiu em separado, por intermédio do qual se impugnou o despacho que não admitiu o chamamento à autoria do Banco F..., caso em que eventualmente poderia ser sustentado que, na hipótese de a esse recurso não ser dado provimento, houve aplicação da norma contida no nº 3 do artº 40º da Lei Uniforme sobre o Cheque e num sentido desconforme àquele que era o propugnado pelo ora reclamante. Ora, não tendo havido aplicação de tais normas, falta, indubitavelmente, um dos requisitos do recurso a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, pelo que não poderá tomar-se conhecimento do objecto do recurso. Termos em que se indefere a reclamação, condenando-se o reclamante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 21 de Outubro de 1998 Bravo Serra Maria Fernanda Dos Santos Martins da Palma Pereira José Manuel Cardoso da Costa