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Processo nº 632/96
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Vem questionado nos autos pela recorrente A., condenada no tribunal de comarca 'pela prática de um crime de condução de veiculo em estado de embriaguez p. e p. pelo artº 292º, do Cód. Penal', a aplicação- e só
- 'da sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir com a qual se fez,
(...) errada aplicação da lei, porque a lei penal não a prevê para a hipótese vertente', e, na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto concluiu, a propósito, que a 'sujeição do caso à regra do artº 69º nº 1 a) do Código Penal, ou se fez aplicando esta regra por analogia, o que constitui violação da normaº 3 do artº 1º do Código Penal, ou se fez aplicando-a directamente e nesse caso sem lei que a previna e puna, com violação do nº 1 do artº 1º do Código Penal, sendo em qualquer dos casos, essa interpretação da lei manifestamente inconstitucional por violação do artº 29º nº 1 da CRP'.
Ao que aquele Tribunal da Relação, no acórdão de 22 de Maio de 1996, respondeu do modo que se segue:
'Deste modo se constata que, no caso presente, não é possível arredar a imposição da falada sanção acessória. E se quisermos indagar as razões que levaram o legislador a tomar tal atitude, vamos encontra-las nas Actas da Comissão de Revisão do Código Penal onde, por consagração dos ensinamentos do Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 500 e segs.), se assentou que 'não sendo caso de aplicação de qualquer medida de segurança, será 'sempre' de aplicar a pena acessória', pena essa que, no entender do mesmo Professor (loc. cit., pág. 165) 'só não teria lugar quando o agente tivesse de sofrer, pelo mesmo facto, uma medida de segurança de interdição da faculdade de conduzir, sob a forma de cassação da licença de condução ou de interdição da sua concessão.' Para além disso, sempre se reconhecerá que a conduta da arguida é merecedora de acentuada censura por potenciadora dos constantes e graves acidentes que ocorrem nas nossas estradas. Estão, pois, verificadas as condições previstas no artº. 69º, nº 1, al. a), do Cód. Penal para aplicação da questionada pena acessória, sem que, por evidente, se possam considerar violados os preceitos indicados pela recorrente, nomeadamente o disposto no artº. 29º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.'
É deste acórdão, que confirmou a sentença condenatória, que a recorrente veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, 'nos termos dos artºs 69, 70 nº 1 b) e 3 e 76º nº 1 da Lei nº 28/2, de 15 de Novembro' e acrescentando:
'Sucede que se mostras esgotados os recursos ordinários (cfr. o artº 400º nº 1, alínea d) do Código de Processo Penal) e o tribunal recorrido aplicou ao feito submetido a julgamento a regra do artº 69º nº 1, alínea a) do Código Penal, cuja inconstitucionalidade, na interpretação que lhe foi dada, foi arguida no processo por violação do artº 29º da Constituição'.
2. Nas suas alegações concluiu assim a recorrente:
'1. A arguida, ao ser submetida a exame de pesquisa de álcool no sangue no dia
12 de Dezembro de 1995, pelas 17h45 horas, na estrada nacional 101 de freguesia de S. João de Ponte, concelho de Guimarães, apresentou uma taxa de alcoolémia de
2,70g/l.
2. Fora mandada parar por um agente da autoridade que não lhe imputou a violação de qualquer regra de segurança na condução ou de trânsito, por 'não se ter apercebido' (sic) de qualquer violação nesse domínio.
3. Submetida a julgamento a arguida foi condenada como autora material de um crime previsto e punido pelo artº 292º do Código Penal, em 60 dias de multa à taxa diária de 400$00, ou seja, na multa global de 24 000$00, e bem assim, por aplicação do artº 69º nº 1 a) do Código Penal, com referência ao artº 149º i) do Código da Estrada na sanção da inibição da faculdade de conduzir pelo período de
3 meses.
4. Embora seja aceitável e legal a aplicação da referida pena de multa, já o não é a sanção acessória da inibição da faculdade de conduzir, visto esta jamais se poder aplicar numa situação estática como a descrita, mas somente em situações dinâmicas visto a lei se referir apenas aos crimes cometidos no exercício da condução e com violação das 'regras de trânsito', ou seja, daquelas regras que disciplinam a marcha nas vias (v.g. prioridade, velocidade, ultrapassagem) e não aos casos em que de nenhuma censura, em termos de violação das regras de trânsito, é passível o agente.
5. As instâncias, ao sujeitarem o caso à regra do artº 69º nº 1 a) do Código Penal, embora não expliquem a sua concreta motivação, ou o fizeram por aplicarem a regra por interpretação extensiva, em violação da norma nº 3º do artº 1º do Código Penal ou por aplicação directa e nesse caso sem lei que a previna e puna, com violação do nº 1 e do artº 1º do Código Penal, sendo em qualquer dos casos, essa interpretação da lei manifestamente inconstitucional por violação do artº 29º nº 1 da CRP.
Nestes termos e nos melhores de direito deve dar-se provimento ao recurso e, em consequência, julgar-se manifestamente inconstitucional a aplicação do artº 89º nº 1 a) do Código da Estrada a situações, como a vertente, em que embora se verifique condução com álcool, todavia não ocorre violação de regras do trânsito rodoviário'.
3. Contra-alegou o Ministério Público, formulando duas conclusões:
'1º - Não constitui 'interpretação extensiva' da norma incriminadora a que se traduz em considerar que constitui 'grave violação das regras de trânsito rodoviário' a condução de veículos com taxa de alcoolémia superior a 0,8 g/
/litro, de modo a cominar ao arguido a pena acessória de inibição da faculdade de condução, nos termos do artigo 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal
2º - Termos em que deverá ser julgado manifestamente improcedente o presente recurso'.
4. Vistos os autos, cumpre decidir.
A questionada norma do artigo 69º, nº 1, a), do Código Penal vigente, prevê a sanção acessória da 'proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre 1 mês e 1 ano', a aplicar a quem for punido:
'a) Por crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras de trânsito rodoviário'.
É, como já ficou dito, a aplicação - e só - dessa sanção acessória que a recorrente discute no presente recurso, porque, no seu discurso,
'a lei penal não a prevê para a hipótese vertente'. Isto porque, e retomando esse discurso, 'não se provou ter a arguida violado qualquer regra de trânsito rodoviário e, não se tendo provado tal facto, não lhe era aplicável qualquer medida de inibição da faculdade de conduzir' ('A sentença recorrida - e o Acórdão que a confirmou - ao aplicar à hipótese vertente o disposto na alínea a) do nº 1 do artº 69º do Código Penal ou o fez sem tomar verdadeiramente consciência de que a hipótese não era essa, ou o fez aplicando analogicamente essa norma à situação descrita, o que lhe era expressamente vedado pelo nº 3 do artº 1º do Código Penal' - acrescenta a seguir a recorrente).
Ora, não se pode colher desse aprumo da recorrente a arguição de uma questão de inconstitucionalidade normativa, tendo por objecto a dita norma do Código Penal, não obstante a referência a uma 'interpretação da lei manifestamente inconstitucional por violação do artº 29º, 1, da CRP', do qual decorre a consagração do princípio da tipicidade em matéria de punição criminal e de aplicação de medidas de segurança, com duas dimensões: '(a) uma dimensão subjectiva, conferindo aos cidadãos um direito subjectivo de não serem criminalmente punidos (ou sofrerem medida de segurança) à margem deles (isto é, designadamente, sem que uma lei anterior qualifique como crime o acto que lhes
é imputado e que a pena esteja igualmente prevista em lei anterior para esse crime), conferindo assim aos cidadãos um direito de defesa, imediatamente vinculante (cfr. art. 18º-1) contra as autoridades públicas; (b) uma dimensão objectiva, impondo ao Estado uma obrigação de conformação legislativa do direito e do processo penal de acordo com aqueles princípios' (Constituição anotada, 3ª ed., págs. 193/194, de Gomes Canotilho e Vital Moreira).
Na verdade, não imputa a recorrente à norma do artigo 69º, nº 1, a), em bom rigor, nenhum juízo de inconstitucionalidade por violação daquele princípio de tipicidade, por, numa ou noutra das apontadas dimensões, ser ela ofensiva da Constituição.
A titulo de 'interpretação da lei', o que a recorrente pretende é escapar à aplicação da sanção acessória em causa, mas como diz o Ministério Público, trata-se 'de interpretação da exclusiva responsabilidade da recorrente que, como é óbvio, carece totalmente de sentido e razoabilidade, pretendendo-se, de forma artificiosa, restringir o campo de aplicação de uma norma incriminadora, com vista a subtrair-se à sanção que, em termos perfeitamente razoáveis, adequados e proporcionais, lhe corresponde'.
O que significa que a pretensa arguição de inconstitucionalidade de que a recorrente se serve não se caracteriza verdadeiramente como uma arguição de inconstitucionalidade normativa, dirigida ao citado artigo 69º, nº 1, a).
Com efeito, e não repetindo o que já ficou transcrito, o que a recorrente censura é a utilização no seu caso da dita sanção acessória, tal como nas instâncias se fez a interpretação e aplicação da norma em causa, porque, na sua óptica, estaria vedado aplicar essa sanção acessória.
Mas isso nada mais é do que o uso pelas instâncias dos poderes de cognição decorrentes do questionado artigo 69º, nº 1, a), para desencadear a aplicação à recorrente da sanção aí prevista.
Faltando, assim, uma arguição de inconstitucionalidade normativa, e reduzindo-se a impugnação da recorrente ao desacerto do julgamento, quanto ao uso daquela norma do Código Penal, não se pode tomar conhecimento do recurso (cfr. o acórdão deste Tribunal Constitucional nº 1198/96, inédito).
5. Termos em que, DECIDINDO, não se toma conhecimento do recurso e condena-se a recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em cinco unidades de conta. Lisboa, 18 de Março de 1997 Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida