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Processo n.º 835/98 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. F. interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão da Relação de Lisboa, de 7 de Julho de 1998, para apreciação da constitucionalidade do artigo 59º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que este aresto aplicou ?com o sentido da não necessidade da existência prévia de inquérito a decorrer para efeitos da actuação do agente infiltrado?.
O referido acórdão negou provimento ao recurso interposto do despacho do Juiz do 4º Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, que indeferiu a arguição de nulidade ?agente infiltrado ? formulada pela recorrente.
Alegou a recorrente, que formulou as seguintes conclusões:
1 ? Nos presentes autos não se discute a distinção entre as figuras do agente infiltrado e do agente provocador.
2 ? A questão que se coloca é a de saber se o agente infiltrado pode actuar sem a existência prévia de inquérito e a respectiva autorização do Magistrado que o dirige.
3 ? A diligência levada a cabo nos presentes autos foi devidamente planeada pelo que, desde logo, se arreda a possibilidade de invocar o carácter urgente na sua actuação.
4 ? A actuação do agente infiltrado traduz-se na invasão da esfera dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
5 ? Como ensina Luderssem: ?Há, por isso, aqui um atentado à liberdade de formação e realização da vontade?.
6 ? Ora, a invasão da esfera dos direitos, liberdades e garantias não pode ser levado a cabo pela Polícia Judiciária sem autorização e controlo da autoridade judiciária.
7 ? E o garante dos cidadãos será sempre o Magistrado ? maxime juiz.
8 ? Também no caso concreto não há motivos para se invocar o princípio da proporcionalidade meio-fim. Ou seja, a necessidade de uma actuação urgente logo sem a autorização e a existência de inquérito. Tal não foi invocado nem, aliás, objectivamente o poderia ser.
9 ? Foi assim que se decidiu no douto aresto proferido pelo Tribunal Constitucional ? acórdão nº 456/93, de 12 de Agosto de 1993.
10 ? Sendo certo que no caso do acórdão citado a invasão dos direitos, liberdades e garantias não se mostrava tão afrontosa como a que o caso concreto evidencia.
11 ? Talvez, na sequência do douto acórdão supra mencionado o legislador entendeu alterar o artigo 59º do DL 15/93, conforme Lei nº 45/96, de 3 de Setembro.
12 ? Este diploma obriga a existência de inquérito e a autorização prévia do MP para a actuação do agente infiltrado, exceptuando casos de urgência.
13 ? Prova cabal do reconhecimento, pelo legislador, da desconformidade da antiga redacção do artigo 59º com a Constituição.
14 ? Padece pois de inconstitucionalidade a interpretação dada, pelo douto Tribunal da Relação, ao artigo 59º do DL 15/93, por violação do estatuído, designadamente nos artigos 18º, 32º e 272º da CRP. Violaram-se assim os artigos 18º, 32º e 272º da CRP. Nestes termos e demais de direito deverá ser concedido provimento ao presente recurso declarando-se inconstitucional o artigo 59º do DL 15/93.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal formulou as seguintes conclusões nas suas alegações:
1º - Em termos jurídico-constitucionais, o que importa saber é se a conduta do agente infiltrado depende ou não de autorização prévia, ou, em certos casos, de regularização posterior. Desde que obtidas, é irrelevante haver ou não inquérito prévio, inquérito esse, aliás, a que a lei, na redacção introduzida em 1996 (Lei nº 45/96, de 3 de Setembro), nem se refere.
2º - O artigo 59º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, interpretado com o sentido da não necessidade da existência prévia de inquérito a decorrer para efeitos da actuação do agente infiltrado, não viola o estatuído nos artigos 18º,
32º e 272º da Constituição da República Portuguesa.
2. Cumpre decidir se a norma constante do artigo 59º do Decreto-Lei n.º
15/93, de 22 de Janeiro, ?com o sentido da não necessidade da existência prévia de inquérito a decorrer para efeitos da actuação do agente infiltrado? é ou não inconstitucional.
II. Fundamentos:
3. A norma sub iudicio:
O Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro (alterado pelo Decreto-Lei nº
81/95, de 22 de Abril, e pela Lei nº 45/96, de 3 de Setembro) contém o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.
O capítulo I (artigos 1º a 3º) contém disposições gerais. O capítulo II
(artigos 4º a 20º) versa sobre autorizações, fiscalização e prescrições médicas. O capítulo III (artigos 21º a 39º) refere-se às infracções criminais (tráfico, branqueamento, associação criminosa e outras). O capítulo IV (artigos 40º a 47º) dispõe sobre o consumo de drogas e tratamento dos consumidores. O capítulo V
(artigos 48º a 56º) está subordinado ao título de ?legislação subsidiária?. O capítulo VI (artigos 57º a 64º) contém regras especiais. O capítulo VII (artigos
65º a 68º) versa sobre as contraordenações e respectivas coimas. O capítulo VIII
(artigos 69º a 76º) contém as disposições finais.
O artigo 59º, na sua versão original, dispõe como segue: Artigo 59º (Conduta não punível)
1 ? Não é punível a conduta do funcionário de investigação criminal que, para fins de inquérito e sem revelação da qualidade e identidade, aceitar directamente ou por intermédio de um terceiro a entrega de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.
2- O relato de tais factos é junto ao processo no prazo máximo de vinte e quatro horas.
Este artigo 59º tem como antecedente o artigo 52º do Decreto-Lei nº
430/83, de 13 de Dezembro, de teor idêntico.
Situações semelhantes a esta encontram-se na lei suíça e na lei francesa sobre a droga (Lei nº 91 du 19 Décembre 1991), relative ao renforcement de la lutte contre le trafic des stupéfiants, que aditou um novo artigo ao Code de Santé Publique.
Ao referido artigo 59º foi dada nova redacção pela Lei nº 45/96, de 3 de Setembro, que é a seguinte:
Artigo 59º (Condutas não puníveis)
1 ? Não é punível a conduta de funcionário de investigação criminal ou de terceiro actuando sob controlo da Polícia Judiciária que, para fins de prevenção ou repressão criminal, com ocultação da sua qualidade e identidade, aceitar, detiver, guardar, transportar ou, em sequência e a solicitação de quem se dedique a essas actividades, entregar estupefacientes, substâncias psicotrópicas, precursores e outros produtos químicos susceptíveis de desvio para o fabrico ilícito de droga ou precursor.
2 ? A actuação referida no nº 1 depende de prévia autorização da autoridade judiciária competente, a proferir no prazo máximo de cinco dias e a conceder por período determinado.
3 ? Se, por razões de urgência, não for possível obter a autorização referida no número anterior, deve a intervenção ser validada no primeiro dia útil posterior, fundamentando-se as razões da urgência.
4 ? A Polícia Judiciária fará o relato da intervenção do funcionário ou do terceiro à autoridade judiciária competente no prazo máximo de quarenta e oito horas após o termo daquela.
O acórdão recorrido aplicou a versão inicial deste artigo 59º, sendo ela, por isso, a única que aqui está sub iudicio.
Este normativo prescreve que a conduta do funcionário de investigação criminal que aceitar a entrega de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, se levada a cabo para ?fins de inquérito?, não é punível.
Tal funcionário tem, porém, que elaborar um relato do sucedido, devendo esse relato ser junto ao processo no prazo máximo de 24 horas.
O acórdão recorrido interpretou a norma sub iudicio no sentido de que ela não impunha a prévia existência de inquérito para a conduta aí descrita do funcionário de investigação criminal não ser punível; bastava, para tanto, que essa conduta tivesse o inquérito por finalidade.
Escreveu-se no aresto recorrido: Quando, na redacção inicial, a lei mencionava que a actuação do agente era impunível quando agia ?para fins de inquérito?, não implicava a prévia existência de inquérito, impondo tão-só que a conduta o tivesse por fim, como claramente advém do texto actual e da possibilidade, presente em ambas as redacções, de regularização ?a posteriori?.
É a conformidade à Constituição desta interpretação que a recorrente questiona, sustentando que a actuação do agente infiltrado só é constitucionalmente admissível, havendo um inquérito em curso.
4. A questão de constitucionalidade:
4. 1. Começa por sublinhar-se que o artigo 59º, aqui em apreciação, não versa sobre a admissibilidade da prova feita por agente infiltrado. Ele dispõe, isso sim, sobre as condições em que tem de desenvolver-se a conduta do agente infiltrado, para que, preenchendo embora determinado tipo legal de crime, ela não seja punível.
Saber em que condições a prova por agente infiltrado é admissível é questão que há-de decidir-se à luz do que preceituam os artigos 125º e 126º do Código de Processo Penal: o primeiro, dispondo que ?são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei? (princípio da liberdade e da legalidade da prova); o segundo, preceituando que ?são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa à integridade física ou moral das pessoas? (nº 1).
Pois bem: são ofensivas da integridade física ou moral das pessoas ? dispõe o nº 2 deste artigo 126º - ?as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a). perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b). perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c). utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d). ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e). promessa de vantagem legalmente inadmissível?.
E o nº 3 do mesmo artigo 126º acrescenta que, ?ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular?.
Convém recordar também que ? conforme dispõe o nº 4 do mesmo artigo 126º
- ?se o uso dos métodos de obtenção de provas previsto neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo?.
A questão de constitucionalidade colocada pela recorrente, tendo por objecto o artigo 59º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro (interpretado no sentido ?da não necessidade da existência prévia de inquérito a decorrer para efeitos da actuação do agente infiltrado?), só, pois, indirectamente, tem a ver com a questão da admissibilidade da prova por agente infiltrado.
Foi, porém, a validade desta prova ? e não o facto de não ser punível a conduta que o agente infiltrado desenvolveu ? que a recorrente questionou perante a Relação.
4. 2. Isto dito, lembra-se que, no processo penal, vigora o princípio da liberdade da prova, no sentido de que, em regra, todos os meios de prova são igualmente aptos e admissíveis para o apuramento da verdade material, pois nenhum facto tem a sua prova ligada à utilização de um certo meio de prova pré-estabelecido pela lei. E recorda-se também que a busca da verdade material
é, no processo penal, um dever ético e jurídico.
É que, o Estado, como titular que é do ius puniendi, está interessado em que os culpados de actos criminosos sejam punidos; só tem, porém, interesse em punir os verdadeiros culpados: satius esse nocentem absolvi innocentem damnari ? sentenciavam os latinos.
O Estado está, por isso, igualmente interessado em garantir aos indivíduos a sua liberdade contra os perigos de injustiças. Está interessado, desde logo, em defendê-los ?contra agressões excessivas da actividade encarregada de realizar a justiça penal? [cf. EDUARDO CORREIA, Les preuves en droit pénal portugais, in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XIV, 1967, página 8).
Existe um dever ético e jurídico de procurar a verdade material. Mas existe também um outro dever ético e jurídico que leva a excluir a possibilidade de empregar certos meios na investigação criminal.
A verdade material não pode conseguir-se a qualquer preço: há limites decorrentes do dever de respeito pela integridade moral e física das pessoas; há limites impostos pela inviolabilidade da vida privada, do domicílio, da correspondência e das telecomunicações, que só nas condições previstas na lei podem ser transpostos. E existem também regras de lealdade que têm que ser observadas.
Dispõe, a propósito, o artigo 32º, nº 8, da Constituição que ?são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações?. E o artigo 34º, nº 4, da mesma Lei Fundamental precisa que ?é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os caso previstos na lei em matéria de processo penal?.
Numa síntese aproximativa, pode dizer-se, com EDUARDO CORREIA, que determinada prova é inadmissível, ?quando a violação das formas da sua obtenção ou da sua produção entra em conflito com os princípios cuja importância ultrapassa o valor da prova livre? (cf. ob. cit., página 40); numa palavra: quando aqueles valores e princípios são lesados ?a um ponto tal que as razões
éticas que impõem precisamente a verdade material não podem deixar de a proibir?
(ob. cit., página 35).
4. 3. Pergunta-se então: o artigo 59º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, interpretado no sentido de não ser necessária a existência de um inquérito para permitir a actuação de um agente infiltrado, bastando que este actue em vista de um inquérito a instaurar, será inconstitucional?
Há que dizer, antes de mais nada, que a verdadeira questão de constitucionalidade a coloca a própria utilização de agentes infiltrados na investigação criminal, pois tem que reconhecer-se que o recurso a uma tal técnica de investigação representa sempre o emprego de alguma deslealdade. E isso leva certa doutrina a apodar de imoral e desonesto o comportamento das instâncias da justiça criminal que lançam mão desse método oculto de investigação, sublinhando que ele é capaz de ?pôr em causa a dignidade, a cultura jurídica e a legitimação do processo penal?.
No entanto, há também que reconhecer que essa deslealdade não é superior
àquela que vai implicada, por exemplo, no emprego de escutas telefónicas como processo de investigação criminal.
A técnica do agente infiltrado comporta, contudo, perigos vários: desde logo, se o funcionário de investigação criminal encarregado dessa missão não for pessoa de sólida formação moral e firmeza de carácter, pode facilmente deixar-se envolver nas actividades criminosas que investiga; depois, entre a actividade do agente infiltrado, que, disfarçadamente, procura ganhar a confiança dos suspeitos, para melhor os observar e obter informações sobre a sua actividade delituosa, e a do agente provocador, que induz à prática do crime, a diferença
é, por vezes, bem ténue. Ora, é inquestionável a inadmissibilidade da prova obtida por agente provocador, pois seria imoral que, num Estado de Direito, se fosse punir aquele que um agente estadual induziu ou instigou a delinquir. Uma tal desonestidade seria de todo incompatível com o que, num Estado de Direito, se espera que seja o comportamento das autoridades e agentes da justiça penal, que deve pautar-se pelas regras gerais da ética. [Sobre a distinção entre agente infiltrado e agente provocador, vide LOURENÇO MARTINS (Droga. Prevenção e Tratamento. Combate ao Tráfico, Coimbra,1984, página 154)].
Não obstante os perigos que comporta a utilização de agentes infiltrados, e a dose de deslealdade que nela vai implicada, considera-se hoje que, estando em causa certo tipo de criminalidade grave (terrorismo, tráfico de droga, criminalidade violenta ou organizada), é impossível renunciar ao serviço do undercover agent. Está--se em domínios em que os interesses que se entrecruzam são de tal ordem, e os meios, de que os criminosos dispõem, tantos e tão sofisticados, que a sociedade quase se sente impotente para dar combate a tal criminalidade. E, por isso, aceita-se aqui alguma excepcionalidade no modo de obter as provas.
A este propósito, MANUEL DA COSTA ANDRADE (Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, 1992, páginas 229 e 230), depois de referir que estão hoje ?em minoria as vozes que propendem para a afirmação generalizada da proibição de prova?, anota que ?a generalidade dos autores e, sobretudo, a jurisprudência continuam a encarar o Polizeispitzel como expediente indispensável duma resposta eficaz às manifestações mais ameaçadoras da criminalidade?; e, ?de forma mais ou menos explícita e assumida, vão considerando a sua legitimidade de princípio como aproblemática?.
Escreve ainda o mesmo autor (páginas 232 e 233): Cremos, por exemplo, ser de sustentar a inadmissibilidade e, por isso, a coberto de estrita proibição de prova, da intervenção do homem de confiança que se limita a provocar uma pessoa ao consumo, v.g., de estupefacientes com o fim exclusivo de, como tal ? só como mero consumidor ? o perseguir penalmente. O mesmo tenderá a valer, em geral, para os demais casos de intervenção de homens de confiança com propósitos e para fins unicamente repressivos: isto é, exclusivamente preordenada à repressão de crimes já consumados, em homenagem nomeadamente à ideia duma administração eficaz da justiça penal. O tratamento já poderá ser diverso sempre que o homem de confiança prossiga finalidades exclusiva ou predominantemente preventivas. ?Pelo menos em relação a perigos concretos e imediatos de atentado contra a vida ou a perigo correspondente de sacrifício grave da integridade física de terceiros?. Será concretamente assim, sempre que a perseguição de eventuais agentes, lograda através do homem de confiança, se integre em programas de repressão e desmantelamento do terrorismo, da criminalidade violenta ou altamente organizada. Doutra forma, deixar-se-ia a sociedade desarmada face a manifestações tão drásticas e intoleráveis de criminalidade. Ou, em alternativa
? risco não menos sério e de consequências não menos perversas e indesejáveis ? induzir-se-ia o recurso a formas incontroláveis de resposta.
Convém, no entanto, advertir que a utilização de métodos encobertos de investigação (maxime, o recurso ao agente infiltrado) há-de fazer-se sempre sem ultrapassar os limites do consentido pela ideia de Estado de Direito.
De facto, na ânsia de dar combate ao crime grave, que mina as bases da sociedade, não podem legitimar-se comportamentos que atinjam intoleravelmente a liberdade de vontade ou de decisão das pessoas. E isso, mesmo que tal se faça no propósito de desmascarar o criminoso, de pôr a descoberto a sua actividade delituosa. Quando se afecta intoleravelmente a liberdade de vontade ou de decisão da pessoa, a deslealdade atinge um tal grau de insuportabilidade que é a integridade moral do sujeito que, então, é violada ? e, com ela, o artigo 25º, n.º 1, da Constituição.
É que, não há-de ser a utilização de um qualquer engano que deve induzir uma proibição de prova: há uma dose de engano na indagação criminal, que é tolerável. Como escreve COSTA ANDRADE (ob. cit., página 236), ?por princípio, apenas deverão ter-se por proibidos os meios enganosos ?susceptíveis de colocar o arguido numa situação de coacção idêntica à dos demais? métodos proibidos de prova?.
Do ponto de vista da legitimidade constitucional da intervenção do agente infiltrado, é, assim, relativamente indiferente que, contra determinado sujeito, esteja ou não a correr termos um inquérito. O que verdadeiramente importa, para assegurar essa legitimidade, é que o funcionário de investigação criminal não induza ou instigue o sujeito à prática de um crime que de outro modo não praticaria ou que não estivesse já disposto a praticar, antes se limite a ganhar a sua confiança para melhor o observar, e a colher informações a respeito das actividades criminosas de que ele é suspeito. E, bem assim, que a intervenção do agente infiltrado seja autorizada previamente ou posteriormente ratificada pela competente autoridade judiciária.
No caso dos autos, a agente da Polícia Judiciária ? como se lê no auto de notícia ? ?infiltrou-se no bairro? e foi, aí ?abordada por dois indivíduos que lhe perguntavam se queria droga? e ?lhe indicaram a arguida [...] como possuidora de ?panfletos??.
A recorrente reconhece, de resto, ter sido assim que as coisas se passaram, quando, na conclusão 6ª da motivação do recurso para a Relação, afirma: ?resulta claro desse auto [de notícia] tratar-se da recolha de indícios genéricos sem os mesmos terem como alvo determinado suspeito?; e quando, nas alegações para este Tribunal, diz: ?resulta, pois, a inexistência de um alvo em concreto?.
Tendo sido neste quadro que a agente actuou ? ou seja: num quadro em que, como se escreveu no acórdão recorrido, ?actuou em reacção, perante condutas desviantes, com o fim de, por iniciativa própria, descobrir agentes de crimes, levando a cabo os actos necessários para tal? -, é manifesto que, no caso, a agente não procedeu a qualquer investigação dirigida contra uma pessoa determinada - uma investigação integrada num inquérito em curso ou a instaurar
-, antes se limitou a desenvolver uma actividade de pura prevenção da criminalidade.
Tratando-se de uma actividade que se inscreve no âmbito da prevenção da criminalidade, claro é que o presente caso não coloca uma questão de constitucionalidade do tipo daquela que se suscitou a propósito do denominado pré-inquérito, que este Tribunal decidiu no acórdão nº 456/93 (publicado no Diário da República, I série A, de 9 de Setembro de 1993).
Acresce que o descrito comportamento da agente não pode considerar-se desnecessário, irrazoável ou excessivo, em termos de se poder afirmar que, com ele, foi violada a integridade moral da pessoa investigada.
A norma do artigo 59º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, interpretado no sentido de, no âmbito da prevenção criminal, não haver
?necessidade da existência prévia de inquérito a decorrer para efeitos da actuação do agente infiltrado? ? interpretação que é feita num quadro legal em que o funcionário que assim actua tem que elaborar relato dos factos, que é junto ao processo no prazo máximo de 24 horas (cf. o nº 2 do mesmo artigo 59º) ? não é, assim, inconstitucional. Este controlo da actuação dos funcionários de investigação criminal, embora feito a posteriori, é suficiente para evitar abusos.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). negar provimento ao recurso;
(b). em consequência, confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade;
(c). e condenar a recorrente das custas, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta.
Lisboa, 14 de Outubro de 1998 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Beleza Luis Nunes de Almeida