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Proc.º n.º 95/96.
2.ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de
28 de Setembro de 1995, confirmado o acórdão proferido em 25 de Janeiro de 1994 pelo Tribunal de Círculo das Caldas da Rainha, o qual condenou o arguido A. na pena de vinte meses de prisão, veio este atravessar nos autos requerimento com o seguinte teor:-
'A., recorrente nos autos supra mencionados, notificado do douto acórdão proferido vem respeitosamente, de acordo com o disposto no artº 669º e 670º do CPC, e artº 153º do CPC, aplicável, subsidiariamente ao caso dos autos, por força do disposto no artº 4º do C.P. Penal, requerer seja rectificada ou aclarada a douta sentença nos termos seguintes:
1º A moldura penal abstracta correspondente ao crime de que o arguido foi condenado é a constante do anterior Código Penal.
2º Após a prolação do douto acórdão, foi publicado o Novo Código Penal aprovado pelo DL 48/ /95 de 15 de Março;
3º De acordo com o disposto no artº 2º - 4 do Novo Código Penal aprovado pelo DL nº 49/95 de 15 de Março (e de acordo com o artº 13º que estabelece a sua entrada em vigor para 1 de Outubro de 1995), a infracção imputada ao ora recorrente encontra-se subsumida à previsão do artº 204º nº 1 alínea b) cuja moldura penal tipicizadora da mesma infracção oscila entre 1 mês e 5 anos de prisão.
4º- Uma vez que a decisão não transitou em julgado, requer-se que este Venerando Supremo Tribunal de Justiça, nos poderes de que se encontra investido, proceda à requerida alteração do 'quantum' da pena aplicada.
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Sobre um tal requerimento disse o Ministério Público:-
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Tem a jurisprudência entendido que o princípio da aplicação retroactiva da Lei penal mais favorável tem por limite o caso julgado (...).
Temos defendido, posição que mantemos, que o caso julgado não é limite à aplicação retroactiva da Lei penal mais favorável (...).
No caso concreto, a decisão proferida não transitou em julgado pelo que, o que o requerente pretende, substancialmente, é que se aplique a lei nova por mais favorável.
Afigura-se-nos que, inexistindo transito em julgado, e surgindo superveniente lei mais favorável, deve conhecer-se do requerido por não se mostrar esgotado o poder jurisdicional dada a inexistência de trânsito em julgado.
O entendimento contrário substituiria o limite 'constitucional' do caso julgado por outro limite, sem apoio legal, consubstanciado na prolação de decisão correcta ao tempo em que foi proferida, apesar de não ter transitado.
Termos em que, deve ser deferida a pretensão reapreciando-se a decisão à luz da nova lei penal, por mais favorável sob pena de inconstitucionalida- de do art. 2º, nº 4, do Código Penal
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2. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 23 de Novembro de 1995, decidiu indeferir 'a requerida rectificação ou aclaração do acórdão' de 28 de Setembro anterior, tendo, inter alia, referido:-
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Resta saber se, não obstante isso, a pretensão substancial que formula não deverá ser acolhida em face do disposto no artº 2º nº 4 do Código Penal.
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Mas, a aplicação concreta de um determinado regime mais favorável depende de haver um tribunal com poderes de jurisdição (ou ainda com poderes de jurisdição) sobre o caso, ou haver a possibilidade de, por via de recurso, se suscitar o poder de jurisdição de uma outra instância superior.
Ora isso não acontece no presente caso.
Dispõe o artº 667º do C.P.C. que a decisão considera-se passada em julgado, logo que não seja susceptível de recurso ordinário, ou de reclamação nos termos do artºs 668º e 669º»
Já vimos que não há, nem em rigor foi invocado qualquer fundamento para reclamação do acórdão nem para a sua reforma quanto a custas e multa.
E, no caso presente, encontram-se esgotados os recursos admissíveis porque o Supremo Tribunal de Justiça é órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais (...), competindo-lhe definir em última instância a situação dos agentes de infracções criminais.
A prolação de uma nova decisão, que equivale- ria a um novo julgamento e a uma nova decisão de fundo, iria esbarrar com a circunstância de se encontrar esgotado o poder jurisdicional do tribunal.
Nos termos do nº 1 do artº 666º do C.P.C. «proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa». Só é lícito ao julgador rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes na sentença e reformá-la quanto a custas e multa (...).
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A ressalva daquele final do nº 4 do artº 2 do Cód. Penal confrontada com o disposto no artº 666º nº 1 do C.P.C., deve ser entendida no sentido de não entrar em colisão com este.
E, assim, o que se quererá ressalvar serão, somente, as hipóteses em que a sentença ainda pode ser objecto, pela via de recurso, de apreciação em outra jurisdição, pois uma lei só pode ser aplicada por um tribunal que detenha jurisdição para isso, designadamente que não tenha esgotado o seu poder jurisdicional.
É, de resto, o que ocorre na lei italiana, que fala em aplicar-se a lei mais favorável ao réu «salvo que haja sido pronunciada sentença irrevogável»
(...).
Em conclusão:
A entrada em vigor, posteriormente à condenação, de uma nova lei penal, eventualmente mais favorável ao arguido, não pode provocar a revogabilidade ou a modificabilidade, de uma decisão anterior (ainda que não transitada) pelo próprio tribunal que proferiu essa decisão.
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3. Desta decisão interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, referindo que a mesma o surpreendeu 'com a invocação do art. 666º, nº 1, do Código de Processo Civil como limitador da aplicação do nº 4 do art. 2º do Código Penal por forma a que a decisão fez interpretação conjugado dos preceitos violadora do art. 29º, nº 4, da Constituição da República', e que a 'interpretação inconstitucional do art. 666º nº 1 do C.P. Civil surgiu de surpresa e de forma imprevisível'.
Após convite formulado pelo ora relator, o Ministério Público veio aos autos indicar que a dimensão normativa que concretamente desejava ver apreciada por este Tribunal era aquela que resultava das normas conjugadas dos artigos 666º, nº 1, do Código de Processo Civil e 2º, nº 4, do Código Penal, na interpretação segundo a qual a entrada em vigor, posteriormente
à condenação, de uma nova lei penal, eventualmente mais favorável ao arguido, não podia provocar a revogação ou a modificação de uma decisão anterior, ainda que não transitada, proferida pelo próprio tribunal que aquela decisão prolatou.
4. Na alegação que produziu, na qual propugna por se dever conceder provimento ao recurso, o Ex.mo Procurador Geral Adjunto em exercício neste Tribunal concluiu que '[a]s normas conjugadas dos artigos 666º, nº 1, do Código de Processo Civil, e 2º, nº 4, do Código Penal, na interpretação do acórdão recorrido, segundo a qual a entrada em vigor, posteriormente à condenação, de uma nova lei penal, eventualmente mais favorável ao arguido, não pode provocar a revogabilidade ou a modificabilidade de uma decisão anterior
(ainda que não transitada) pelo próprio tribunal que proferiu essa decisão viola o disposto no artigo 29º, nº 4, da Constituição da República'.
Cumpre decidir.
II
1. De acordo com o que se dispõe no nº 4 do artigo 29º da Constituição, '[n]inguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido'.
Comentando este preceito, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 193) referem que 'não estabelecendo a Constituição qualquer excepção, a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (despenalização, penalização menor, etc.) há-de valer, ao menos em princípio, mesmo para os casos julgados, com a consequente reapreciação, devendo notar-se que, quando a Constituição manda respeitar os casos julgados, admite uma excepção, exactamente para a lei penal
(ou equiparada) mais favorável...'.
E, no comentário efectuado a propósito do nº 3 do artigo
282º (ob. cit., 1041), é escrito pelos mencionados autores:-
'O preceito do nº 3 contém uma excepção à regra dos efeitos gerais retroactivos da declaração de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) e uma excepção da excepção. A excepção consiste em que o efeito retroactivo da declaração da inconstitucionalidade (ou da ilegalidade) não implica a revogação ou modificação das aplicações concretas que tiverem sido feitas da norma considerada inconstitucional (ou ilegal), desde que essas aplicações tenham ganho forma definitiva ou irretractável (caso julgado); em contrapartida, a excepção do caso julgado pode ser afastada pelo TC relativamente à declaração de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) de normas penais, disciplinares ou de ilícito de ordenação social, quando elas forem de conteúdo menos favorável ao arguido. O sentido da norma só pode ser este: (1) em princípio, a declaração de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) não implica «revisão» dos casos julgados em que se tenha aplicado a norma declarada inconstitucional (ou ilegal); (2) todavia, os casos julgados que incidam sobre matéria penal, disciplinar ou de mera ordenação social poderão ser revistos, se da decisão resultar (por efeito da desaplicação da norma considerada inconstitucional ou ilegal) uma decisão de conteúdo mais favorável ao arguido (cfr. art. 29º-4); (3) a possibilidade de revisão de sentenças constitutivas de caso julgado em matéria penal ou equiparada não é automática, pois tem de ser expressamente decidida pelo TC na sentença que declarar a inconstitucionalidade (ou ilegalidade), não podendo obstar a isso o preceito ( de resto, de constitu- cionalidade muito duvidosa) do art. 2º-4 do Cód. Penal. Em suma, estabelece-se aqui uma limitação automática dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou da ilegalidade, em homenagem ao princípio do caso julgado (...), limitado este pelo princípio da norma penal (ou equiparada) mais favorável'.
Torna-se claro, que, in casu, nos não postamos face à uma situação em que seja entendido que, tendo-se formado caso julgado a respeito de uma sentença condenatória penal baseada numa determinada norma penal incriminadora e punitiva, norma essa que não foi objecto de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, e advindo, posteriormente, um regime que, em concreto, se apresente como mais favorável ao condenado, o caso julgado que se formou obsta, por força do disposto na parte final do nº 4 do artº 2º do Código Penal, à aplicação daquele regime (cfr., e numa outra perspectiva, sobre a problemática de saber se a repristinação de normas penais de conteúdo menos favorável, repristinação essa decorrente de uma declaração de inconstitucionalidade, deve, ou não, levar à sua aplicação, A. Pagliaro, Legge Penale Nel Tempo, Enciclopedia del Diritto, nº 71. 1070, Manfredi Parodi Guisino, Effetti della Dichiariazione de Inconstituzioanalitá delle Leggi Penali, Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, 1982, 916 e segs.; cfr. ainda, sobre este tema, mas ponderando os casos de a declaração de inconstitucionalidade não ter sido acompanhada da ressalva a que se reporta o nº
3 do artigo 282º da C.R.P., Jorge de Miranda, Os princípios constitucionais da legalidade e da aplicação da lei mais favorável em matéria criminal, O Direito,
1989, IV, 699 e segs., Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, obra que, para além deste, aborda outros pontos conexionados com o tema ora proposto à consideração deste Tribunal, e Rui Carlos Pereira, A relevância da lei penal inconstitucional de conteúdo mais favorável ao arguido, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano I, Fasc. 1, 55 e segs; cfr, por fim, os Acórdãos do Tribunal Constitucional, e votos de vencido no mesmo prolatados, números 56/84 - Diário da República, 1ª Série, de 9 de Agosto de 1994 - e 175/90 - idem, 2ª Série, de 21 de Janeiro de 1991).
Na verdade, antes de o aresto ora impugnado ter transitado, foi pedido ao Supremo Tribunal a quo que reapreciasse a pena que foi infligida ao réu A. (pena essa que, aplicada que foi pela 1ª instância, aquele Alto Tribunal confirmou), e isto em face à circunstância de se ter entendido que a revisão do Código Penal operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, veio a instituir, relativamente à punição do ilícito pelo qual aquele réu veio a ser condenado, um sistema do qual, em concreto, haveria de resultar uma penalidade mais favorável.
Esse pedido, como se viu, não logrou atendimento, por isso que o S.T.J. defendeu um entendimento segundo o qual a parte final do nº 4 do artº 2º do Código Penal não poderia contender com o estatuído no nº 1 do artº
666º do Código de Processo Civil, que comanda que '[p]roferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa'. Com base nesse entendimento, o acórdão em censura apontou para que, uma vez proferida uma sentença penal condenatória, a reapreciação do seu conteúdo só seria possível, ainda que para efeitos de eventual aplicação de um regime mais favorável ao arguido, se dela viesse (caso possível) a ser interposto recurso o que, no caso, não seria possível, dado estar-se em presença de uma decisão da qual já não era possível interpôr recurso ordinário (afora, evidentemente, os casos de recurso para uniformização de jurisprudência e de revisão).
De um tal entendimento resultaria também que, nas hipóteses em que, verbi gratia, de uma sentença condenatória proferida em 1ª instância recorreram o arguido - quanto à condenação penal - e uma parte civil - esta na parte que entendeu ser-lhe aquela sentença desfavorável -, se o primeiro viesse a desistir do recurso (cfr. artº 415º do Código de Processo Penal) e, entretanto, sobreviesse uma lei de conteúdo mais favorável ao arguido, o tribunal de recurso não poderia pronunciar-se sobre a eventual aplicação concreta desse regime, justamente pela razão segundo a qual não foi colocada perante o seu poder cognitivo a matéria tocante à condenação criminal.
Não pode o Tribunal Constitucional perfilhar a interpretação que seguiu o acórdão recorrido.
2. Como se sabe, os princípios da irretroactividade da lei penal e da retroactividade da lei in melius não podem, simplistamente, ser visualisados como o verso e reverso da mesma questão; e isso porque haverá que reconhecer que um e outro, geneticamente, têm diversas fontes: enquanto que o primeiro decorre do princípio nullum crimem sine lege e nulla poena sine lege - que, afinal, manifesta o princípio da legalidade (cfr. José de Sousa e Brito - A lei penal na Constituição, Estudos sobre a Constituição, II vol., 236 e segs) -, o que implica que, para uma sua mera aplicação, bastaria que o arguido tivesse uma conduta que, então, já fosse considerada como integrante dos pressupostos da uma infracção, já o segundo, derivando embora do princípio da legalidade, entendido este como 'superiormente graduado na ordem axiológica constitucional'
(para se utilizarem as palavras de Rui Pereira, ob. cit., 61), não deixa de derivar daqueloutros princípios constitucionais tais como os da igualdade e da necessidade das penas e medidas de segurança (cfr. Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, I, 1981, 115, que refere que a retroactividade da lei penal mais favorável se justifica pela garantia dos cidadãos face a uma limitação do poder punitivo do Estado, o qual nunca poderá ser mais amplo do que aquele que estiver consagrado na lei aquando do momento da sua aplicação, no caso de esta o consagrar em menor medida; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 234 e 235, e ob. cit. na Revista O Direito, onde, expressamente, defende que, por razões de liberdade e de igualdade entre os membros da comunidade jurídica, deve ser aplicável a lei penal de conteúdo mais favorável, por isso que é a que menos comprime os direitos, liberdades e garantias, sendo, pois, a menos gravosa ou restritiva desses direitos).
Taipa de Carvalho, depois de assinalar (ob. cit.,42 e segs) que 'quer o princípio da culpa quer o princípio da irretroactividade penal desfavorável são garantias individuais ou, talvez mais correctamente, direitos fundamentais da pessoa humana', e que 'uma concepção humanista da política criminal verá, sempre e independentemente da sua fundamentação política, na proibição da retroactividade da lei fundamentadora ou agravante da pena um dos seus princípios essenciais', e depois de expor os processos históricos que levaram à consagração dos princípios da irrectroactividade da lei penal e da retroactividade da lei penal mais favorável, conclui que 'no actual momento, tanto a proibição da retroactividade in peius como a imposição da retroactividade in melius devem considerar-se como garantias ou mesmo direitos fundamentais constitucionalmente consagrados' (63 e segs.) e que 'o Estado-de-Direito Material, na sua função de protecção da pessoa humana, com a decorrente afirmação da liberdade como princípio geral e fundamental, não apenas proíbe a retroactividade das leis penais desfavoráveis, como também impõe a aplicação retroactiva das leis penais favoráveis', o que, segundo o Autor, vale por dizer que 'o princípio constitucional da liberdade, o «favor libertatis», é hoje a matriz comum e o princípio superior de que derivam não só a irretroactividade in peius como também a retroactividade in melius' (pág. 71) e que se deverá, 'e com legitimidade, afirmar que o princípio [geral da aplicação da lei penal no tempo] é o da aplicação da lei penal favorável'.
3. Estes ensinamentos apontam, pois, para a solução a conferir no vertente aresto.
De facto, seguindo-se a postura, apontada pela Constituição, de que as penas e as medidas de segurança deverão ser justificadas pelo princípio da necessidade, aferida pela medida da culpa (e não se entrando agora na dilucidação da questão de saber se a culpa há-de, desde logo, fornecer uma certa medida quadro da pena - cfr. José de Sousa e Brito, A medida da pena no novo Código Penal, número especial de Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 580, e Figueiredo Dias, Direito Penal 2, 311 -, e qual a relevância da prevenção criminal nas suas dimensões de prevenção geral e especial tendo em conta a sua repercussão na presente problemática), seria injusta a aplicação de uma punição mais severa ao agente de uma conduta que, no momento da sua submissão a julgamento, razões de ordem político-criminal determinaram que deveria ser menos gravosamente punida uma conduta como aquela que aquele agente tinha adoptado.
Acresce ainda que se perspectiva como ofensiva da igualdade o tratamento diferenciado a que conduziria a tese da decisão ora sob censura, se se visualizar a situação de um agente que veio a prosseguir um comportamento ainda em face da lei antiga, mas que, por vicissitudes várias, o recurso perante o tribunal superior só foi conhecido quando já estava em vigor a lei nova de conteúdo mais favorável, e aqueloutra situação de diverso agente que, tendo também praticado factos no âmbito da lei antiga, viu o recurso ser apreciado pelo tribunal superior ainda no âmbito dessa mesma lei, e que, pela circunstância de da decisão deste último já não poder haver recurso, por a lei o não permitir, não pode beneficiar do regime mais favorável estabelecido pela lei nova, muito embora a decisão tomada pelo tribunal superior ainda não tenha transitado.
Assim sendo, e se se estiver, verdadeiramente, face a uma real sucessão de leis penais no tempo (como tudo parece apontar no presente caso), os princípios que acima se deixaram expostos hão-de redundar numa interpretação dos normativos ordinários perante a qual se deverá, tanto quanto possível, aplicar a lei penal favorável às condutas levadas a cabo no domínio da lei anterior, de conteúdo menos favorável ao arguido. E isto, como se torna claro, se nos postarmos perante situações em que a lei penal aplicável ao tempo do cometimento dos factos não seja perspectivável como integradora da previsão do nº 3 do artº 2º do Código Penal.
3.1. Viu-se já que, no caso sub specie, nem sequer se coloca a questão - possivelmente de mais difícil solução - de se ter formado caso julgado sobre a decisão final condenatória [sobre o problema da denominada intangibilidade do caso julgado material e da sua eventual consagração constitucional - designadamente extraída do preâmbulo da Lei Fundamental (ver, hoje, artigo 2º) - cfr. Acórdão nº 87, de 16 de Fevereiro de 1978, da Comissão Constitucional, in Apêndice ao Diário da República, de 3 de Maio de 1978; cfr., ainda, relativamente à questão de saber se o caso julgado penal material obsta à
«reformulação» da decisão com vista à aplicação da lei in melius, António Rodrigues Maximiano, Aplicação da Lei Penal no Tempo e caso julgado, Revista do Ministério Público, Ano 4º, Vol. 13, 11 e segs., e Rui Pereira, ob. cit., 63, nota 22).
Na realidade, o acórdão confirmativo da pena aplicada ao arguido em primeira instância ainda não constituía caso julgado quando ao Alto Tribunal a quo foi solicitada a aplicação da lei penal nova que se perspectivava como mais favorável em concreto àquele arguido. E tal Tribunal não efectuou aquela aplicação, porquanto perfilhou um entendimento de que, tendo já proferido decisão (desta arte não foi, sequer, para tal entendimento, convocado um argumento baseado na circunstância de que se tinha já formado caso julgado material), se encontrava esgotado o seu poder jurisdicional, obstando à aplicação do nº 4 do artº 2º do Código Penal o disposto no nº 1 do artº 666º do Código de Processo Civil.
Uma tal interpretação é, perante os princípios que hão-de reger o problema da aplicação das leis penais no tempo (suposto haver uma verdadeira sucessão dessas leis) e, logo, do princípio da aplicação da lei in melius ou da retroactividade da lei mais favorável - prescrito no nº 4 do artigo
29º da Constituição -, violadora deste comando constitucional, afigurando-se ainda como desproporcionado em relação a tal princípio o raciocínio com base no qual esse mesmo princípio haverá de ceder perante a regra, constante da lei ordinária, segundo a qual, como, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional, a «reapreciação» daquela decisão, para efeitos de eventual aplicação de um regime penal mais favorável em concreto ao arguido, só poderá efectivar-se se da decisão ainda puder - e tiver sido - interposto recurso.
III
Em face do exposto, decide-se:-
a) - Julgar inconstitucional, por ofensa do nº 4 do artigo 29º da Constituição, as normas conjugadas dos artº 2º, nº 4, do Código Penal, e 666º, nº 1, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual, entrando em vigor, posteriormente a uma decisão condenatória do arguido e antes de esta ter formado caso julgado material, uma lei penal que, eventualmente, se apresente como mais favorável em concreto, não pode tal lei conduzir à modificação da decisão proferida pelo próprio tribunal, se a mesma já não for passível de recurso e, em consequência,
b) Determinar a revogação da decisão impugnada, a fim de a mesma ser reformada em consonância com o juízo de inconstitucionalidade que se deixou efectuado. Lisboa, 12 de Março de 1997 Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida