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Proc. n.º154/98
2ª Secção Relator — Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório:
1. F. C. e mulher instauraram acção de reivindicação contra R. G. e mulher no Tribunal Judicial da Comarca de Porto de Mós. Por despacho saneador de 25 de Fevereiro de 1997, a acção foi julgada improcedente, tendo os réus sido absolvidos dos pedidos. Inconformados, os demandantes interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, concluindo do seguinte modo:
'a) A douta sentença que, no saneador-sentença atribui aos AA incúria na prática de determinado acto, sem especificar as razões de tal qualificação, carece de fundamentação b) A douta sentença que, no saneador-sentença, atribui aos AA a omissão de actos a que legalmente não estavam obrigados, conforme resulta de documento autentico junto aos autos, está em oposição com a fundamentação c) A falta de fundamentação, como a oposição da decisão com os fundamentos, viciam de nulidade a douta sentença (art.º 668º CPC) d) Outorgada escritura de compra e venda sobre determinadas fracções, o adquirente fica, por força de tal contrato, investido no direito, de propriedade sobre as coisas vendidas e) Consequentemente, as coisas vendidas deixaram de integrar o património do alienante f) A penhora que recaiu sobre bens que deixaram de integrar o património do executado é nula, por recair sobre bens alheios. g) Nula é, também, a arrematação que é feita daqueles bens penhorados. h) O credor exequente que haja arrematado bens penhorados, previamente vendidos a pessoa que os não tenha levado ao registo, não é «terceiro» para efeitos de registo predial i) O registo predial não tem efeitos constitutivos, mas apenas e fundamentalmente de publicidade declarativa j) As presunções derivadas do registo predial são ilidíveis. l) A douta sentença apelada violou o art.º 668º CPC, o art.º 5º CRP e os artºs
1316, 1317, a), 408, 879 e 892 do CC, devendo ser revogada e substituída por outra que defira a pretensão dos autores.'
O Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão de 21 de Outubro de 1997, julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão recorrida, por considerar que o credor exequente que haja arrematado bens penhorados é terceiro para efeitos do disposto no artigo 5º, n.º 1 do Código do Registo Predial, alicerçando-se para o efeito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 15/97, de 20 de Maio de
1997 (Diário da República, I Série-A, n.º 152, pág. 3295), de uniformização da jurisprudência no sentido de que
'Terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente.'
2. Em requerimento dirigido 'aos Juizes Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra', vieram os recorrentes interpor, ao abrigo dos 'artº 69º, 70º, n.º
1, b), e n.º 2, última parte da Lei 28/82 e alterações subsequentes', recurso para o Tribunal Constitucional, invocando para tal que
'se aplicaram normas e decisões judiciais que violam preceitos constitucionais vertidos, nomeadamente, nos artºs 16º, 18º e 62º da Constituição da República Portuguesa'. Depois de completado o requerimento de interposição do recurso na sequência de convite do relator, 'nos termos do n.º 5 do referido artigo 75º-A da Lei n.º
28/82 – tendo os ora reclamantes precisado que 'aquele artigo 5º, n.º 1 e o douto Acórdão do STJ n.º 15/97 violam os artigos 16º, 18º e 62º da Constituição'
–, foi feito, em 16 de Dezembro de 1997, novo convite,
'porquanto os recorrentes não indicaram com a sua resposta de fls. 89:
– Qual a alínea do n.º1 do artigo 70º da Lei 28/82, 15/11, ao abrigo da qual
o recurso é interposto, nem
– Qual a peça processual, anterior ao requerimento de interposição do
recurso, em que suscitaram a questão da inconstitucionalidade.' Por despacho do relator, de 20 de Janeiro de 1998, o recurso de constitucionalidade não foi admitido, com o seguinte fundamento:
'os apelantes apenas no requerimento de recurso para o Tr. Constitucional suscitaram a questão de inconstitucionalidade'.
3. É contra este despacho que vem deduzida a presente reclamação, que sustentam deste modo:
'- Quando os reclamantes interpuseram a acção e a apelação contavam, legitimamente, com uma resolução do litígio
- Concordando com tal procedimento excusaram a arguir qualquer inconstitucionalidade,
- O que também não poderiam fazer, uma vez que o douto Acórdão do STJ n.º 15/97 foi publicado em momento em que, processualmente, os ora reclamantes nada poderiam fazer
- Os reclamantes não têm outra instância processual civil pela qual possam fazer valer os seus direitos
- A inversão da jurisprudência dominante e a sua uniformização no Acórdão do STJ n.º 15/97 violou o princípio da confiança;
- Só após a publicação deste Acórdão os ora reclamantes poderiam suscitar a sua inconstitucionalidade;
- Ao não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional, o douto despacho ora reclamado impede os reclamantes de fazer valer os seus direitos;
- Na tramitação do processo civil, só no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, os ora reclamantes podiam, ‘in casu’, suscitar a inconstitucionalidade[...].'
4. Dada vista do processo ao Ministério Público, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal pronunciou-se pela improcedência da presente reclamação. Cumpre, agora, apreciar e decidir. II. Fundamentos:
5. Os ora reclamantes pretenderam interpor recurso de constitucionalidade do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Outubro de 1997, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da interpretação do artigo 5º do Código do Registo Predial segundo a qual terceiros, para efeitos dessa disposição, são as pessoas incluídas no conceito resultante da uniformização de jurisprudência efectuada pelo referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
20 de Maio de 1997, incluindo, designadamente, o adquirente em venda executiva. Os reclamantes reconhecem que apenas arguiram a inconstitucionalidade no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. Todavia, salientam que se escusaram a arguir em momento anterior a inconstitucionalidade porque o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 15/97, aplicado no acórdão recorrido, foi publicado num momento em que processualmente já nada poderiam fazer, e só após a sua publicação os ora reclamantes poderiam suscitar a sua inconstitucionalidade. Constituem requisitos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente, a suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo e o esgotamento de todos os recursos ordinários que no caso cabiam. Como se decidiu no Acórdão nº 352/94 (publicado no Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994), deve entender-se a exigência de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, 'não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas 'num sentido funcional', de tal modo 'que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão',
'antes de esgotado o 'poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita'. É este o único sentido do dito requisito que corresponde à natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, para reapreciação, portanto, de uma questão suscitada antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela (ver também o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República, II série, de 20 de Junho de 1995). Esta orientação, como também se salientou nos Acórdãos citados, sofre restrições apenas em situações excepcionais, anómalas, designadamente, se a norma cuja inconstitucionalidade se invoca, e que a decisão recorrida aplicou, foi publicada quando o recorrente já não dispunha de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade, ou se se estiver em face de uma verdadeira 'condenação surpresa', de todo inesperada e imprevista, não sendo, portanto, exigível ao recorrente que antevisse a possibilidade de aplicação da norma questionada. Como, todavia, se salientou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 479/89
(Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992) 'terá de ponderar-se que não pode deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada). E isso também logo mostra como a simples ‘surpresa’ com a interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos, certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais' em que seria justificado dispensar os interessados da exigência da invocação da inconstitucionalidade antes de se esgotar o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a questão para cuja resolução é relevante a norma impugnada. [...]. Mas, se alguma vez tal for de admitir, então haverá de sê-lo apenas numa hipótese em que a interpretação judicial seja tão insólita e imprevisível que seria de todo desrazoável dever a parte contar (também) com ela.' Impende, pois, sobre o recorrente o ónus de avaliar e pesquisar as possíveis interpretações susceptíveis de vingar no julgamento do caso concreto, actuando depois com o 'esquema de orientação processual' ou com o método mais adequado à defesa dos seus interesses. Designadamente, não podem os reclamantes invocar legitimamente 'surpresa' na interpretação perfilhada na decisão recorrida quando a doutrina e a jurisprudência se dividem quanto à interpretação da norma impugnada (neste sentido, ver os Acórdãos n.ºs 333/92, 259/93 – inéditos -,
232/94, 367/96 e 595/96 - publicados respectivamente no Diário da República, II série, de 22 de Agosto de 1994, 10 de Maio de 1996, e 22 de Julho de 1996). E também não existe 'surpresa' quanto à interpretação das normas feita pela Relação, quando o mesmo entendimento haja sido perfilhado na decisão de 1ª Instância (assim, o Acórdão n.º 660/96, inédito).
6. Ora, no caso dos autos, é manifesto que não foi feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra – cujo acórdão é confirmatório da solução alcançada na 1ª instância - qualquer aplicação imprevista e inesperada da norma do artigo 5º, n.º 1 do Código do Registo Predial, interpretada no sentido de incluir no conceito de terceiros o credor exequente que haja arrematado bens penhorados. Na verdade, foi, desde logo, este o entendimento da 1ª instância, entendimento, esse, logo impugnado pelos autores, ora reclamantes, no recurso para a Relação, sem aproveitarem a oportunidade para suscitar qualquer questão de constitucionalidade. Todavia, os reclamantes tinham o ónus de suscitar antes da prolação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra recorrido a questão de constitucionalidade que pretendem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, uma vez que já haviam sido confrontados anteriormente com a dimensão normativa agora impugnada. Acresce que a controvérsia acerca do conceito de terceiros para efeitos de registo há muito que pré-existia no ordenamento jurídico português, e que o entendimento que veio a ser consagrado no acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 15/97, de 20 de Maio de 1997, era já defendido na doutrina e na jurisprudência – do que dão conta, não só o referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, como a própria sentença proferida na 1ª instância no presente processo. Tem, pois, de concluir-se pela improcedência da alegação dos reclamantes segundo a qual, tendo o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 15/97 sido proferido em momento em que já não podiam suscitar no processo qualquer questão da constitucionalidade, não podiam ter anteriormente impugnado a constitucionalidade da dimensão normativa consagrada nesse acórdão. É que o recurso de constitucionalidade tem por objecto normas, e não decisões judiciais, pelo que não poderia nele estar em causa a impugnação do acórdão de uniformização de jurisprudência, mas, apenas, a interpretação da norma do artigo
5º, n.º 1 do Código do Registo Predial que esse acórdão uniformizou. E esta interpretação era, como se disse, sustentada na doutrina e na jurisprudência já antes desta intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, tendo mesmo os ora reclamantes com ela sido confrontados logo na decisão do Tribunal Judicial de Porto de Mós. Não podiam, pois, os reclamantes legitimamente ignorar essa posição doutrinal e jurisprudencial, indicada e perfilhada logo na 1ª instância, para o efeito de suscitar atempadamente a inconstitucionalidade da correspondente interpretação do artigo 5º, n.º 1 do Código do Registo Predial. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar o reclamante em custas, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta
Lisboa, 20 de Outubro de 1998 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa