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Proc. N.º 786/92
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional :
I RELATÓRIO
1. A., intentou, no Tribunal de Trabalho de Lisboa, acção declarativa, emergente de contrato individual de trabalho, impugnando despedimento de que fora objecto por parte da sua entidade patronal, B.
Julgada improcedente a acção em 1.ª instância, apelou a autora para a Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa que, decidindo previamente agravo relativo ao valor da acção, fixou este em 500.001$00. Quanto à questão de fundo - a relativa ao despedimento da autora - solucionou a Relação em sentido divergente da decisão aí impugnada, declarando nulo o despedimento e condenando o réu nas prestações decorrentes de tal nulidade.
A tal condenação reagiu o réu recorrendo para o Tribunal Pleno, indicando estar o Acórdão da Relação 'em manifesta oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, com o anterior Acórdão' do mesmo Tribunal, 'transitado em julgado 14/8/87, proferido em recurso de apelação pela 2ª Secção no proc. nº 2076/87 (...)'.
Por Acórdão, que consumiu anterior despacho do relator no mesmo sentido, não admitiu o Tribunal da Relação tal recurso, com fundamento na parte final do artigo 764º do Código de Processo Civil (CPC): 'por motivos de alçada'.
Reclamou, então, o réu, ao abrigo do disposto no artigo 688.º, n.º 1 do CPC, para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, rematando tal peça com as seguintes conclusões:
'1º - A finalidade específica do recurso para o Tribunal Pleno é evitar as contradições entre Acórdãos dos Tribunais Superiores, assegurando a uniformização de jurisprudência.
2º - Não pode nem deve entender-se, ser também indispensável, para a admissibilidade do recurso para o Tribunal Pleno, que, no caso, o valor da causa exceda a alçada da Relação, atento o escopo de tal recurso.
3º - Ao uniformizar jurisprudência o Tribunal Pleno decide também em concreto.
4º - A manter-se a orientação do Meritíssimo Desembargador com fundamento na parte final do artigo 764º do CPC, então esta mesma norma deverá ser considerada inconstitucional por violar o artigo 13º, nº 1 da CRP.'
Decidindo a reclamação, proferiu o Exmº. Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça despacho concordando com o entendimento expresso no Acórdão da Relação, afirmando a este propósito:
'(...) Se o recurso ordinário - revista ou agravo - não é admissível por motivos ligados à alçada do Tribunal, não há recurso para o T.P. Porém, se o motivo da não admissibilidade não é esse, mas sim o da natureza da causa, então já é admissível tal recurso.'
E, quanto à invocação de inconstitucionalidade, acrescentou:
'(...) o princípio fundamental em matéria de impugnação das decisões judiciais é o duplo grau de jurisdição tendo o legislador, para além disso, a liberdade de organizar os recursos como melhor entender. Todavia, a parte final do artigo
764º repousa em razões inteiramente aceitáveis, consoante sublinham os manuais de processo civil'
E concluiu negando provimento à reclamação.
1.2. É a esta decisão que se reporta o presente recurso, interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro, referido à inconstitucionalidade, face ao princípio de igualdade, do artigo 764º in fine do CPC.
Nas respectivas alegações concluiu a recorrente nos seguintes termos:
'1- A finalidade específica do recurso para o tribunal Pleno é evitar contradições entre Acórdãos dos Tribunais Superiores, assegurando a uniformização da jurisprudência.
2- A entender-se que o recurso para o tribunal Pleno só é possível em casos estranhos à alçada das Relações por força da parte final do artigo 764º do CPC deve nesta parte o referido preceito ser considerado inconstitucional por violação do artigo 13º da CRP na medida em que limita a uniformização de jurisprudência colocando os cidadãos em desigualdade perante a justiça, sem razão material.'
A recorrida, por seu lado, pugnou pela manutenção da decisão.
Corridos, enfim, os pertinentes vistos, cumpre decidir.
II FUNDAMENTAÇÃO
2. Está em causa a suscitação, indiscutivelmente anterior ao despacho recorrido (o decidindo a reclamação pela não admissão do recurso), de inconstitucionalidade do artigo 764º do CPC no trecho final.
É o seguinte o teor da norma:
Artigo 764º
(Recurso para o tribunal pleno dos acórdãos da Relação)
É também admissível recurso para o Supremo, funcionando em tribunal pleno, se o tribunal da Relação proferir um acórdão que esteja em oposição com outro, dessa ou de diferente Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito e dele não for admitido recurso de revista ou de agravo por motivo estranho à alçada do tribunal.
A não admissão reclamada prendeu-se com a circunstância da alçada (do valor que se fixou relativamente à causa) não permitir recurso para além da Relação, sendo que a possibilidade do recurso legitimado pelo artigo
764º depende dessa não admissibilidade ter que ver com aspectos diversos da alçada.
Assim, o segmento normativo convocado é aquele que implica esta limitação ('... e dele não for admitido recurso de revista ou de agravo por motivo estranho à alçada do tribunal.').
Tal é o conteúdo do recurso para este Tribunal.
2.1. O sentido da decisão recorrida pode ser resumido através do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Julho de 1981, tal como ele surge na «Revista de Legislação e de Jurisprudência», 116º Ano, p.90
(v. também BMJ 309, 314) :
'Para ser admissível o recurso a que se refere o artigo 764º do CPC é necessário, além do mais, que as decisões ditas em oposição sejam irrecorríveis por razões estranhas à alçada da Relação.'
E, explicando nesse caso concreto a razão da não admissão do recurso, acrescenta o mesmo sumário :
'No caso de um dos acórdãos ter sido proferido pela extinta 3ª secção do Supremo Tribunal Administrativo não é de admitir o recurso para o tribunal pleno, quando da decisão proferida só se não pode recorrer por ter sido desfavorável ao recorrente em menos de 100.000$00 (nº 2 do § 1º do artigo 25º da Lei Orgânica daquele tribunal - DL nº 40768, de 8 de Setembro de 1956).'
O recurso para o Pleno com base em oposição de acórdãos da Relação (ou seja per saltum) não se encontrava previsto no Código de
39. O seu aparecimento ocorre com a revisão de 1961 (consubstanciada no DL n.º
44129, de 28/12/61; a história do preceito é relatada pelo Prof. Antunes Varela na RLJ, Ano 116º pp.93/96; v. também Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, Lisboa 1972, pp.413/414) e visou 'evitar que certas questões fundamentais de direito, por respeitarem a matérias subtraídas ao conhecimento do Supremo, continuassem a ser objecto de decisões contraditórias nos tribunais de Relação' (Antunes Varela, ob.cit.,p.95).
Essa subtracção à apreciação do Supremo, no entanto, não pode decorrer - é esse o sentido em que foi interpretado e aplicado neste caso o trecho final do artigo 764º do CPC - da circunstância de o valor da acção estar contido na alçada do relação [note-se que o Prof. Antunes Varela
(ibidem) defende que esta limitação se aplica tanto ao acórdão recorrido como ao em alegada oposição], mas de outro obstáculo legal de recorribilidade.
Exemplo paradigmático de uma situação deste tipo, constituem os processos de jurisdição voluntária (os regulados no Capítulo XVIII do Título IV do Livro III do CPC) relativamente aos quais o artigo 1411º nº 2 do CPC não admite recurso para o STJ das 'resoluções' aí ditadas. Note-se que o Assento do STJ de 6 de Abril de 1965 (BMJ 146, 325) estabeleceu, nestas espécies processuais 'em que se faça a interpretação e aplicação de preceitos legais em relação a determinadas questões de direito', que 'as respectivas decisões são recorríveis para o Tribunal Pleno', fixando-se o entendimento de que a regra nas
'resoluções' proferidas segundo juízos de equidade (as abrangidas pelo artigo
1410º do CPC) é a irrecorribilidade pura e simples para o Supremo Tribunal e, quanto às decisões proferidas segundo critérios de legalidade estrita a regra é a da recorribilidade para este mesmo Supremo, mas apenas havendo conflito de jurisprudência possibilitador do recurso para o Pleno (v. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lisboa 1994, p.108).
Neste caso, por não existir impedimento legal - diverso do valor da acção estar contido na alçada da Relação - à subida do processo ao Supremo Tribunal foi recusada a admissão do recurso, fazendo-se, assim, funcionar a regra contida na parte final do artigo 764º do CPC.
É este aspecto do mesmo artigo 764º que importa sindicar de um ponto de vista constitucional.
2.2. O recorrente vê nesta limitação ao recurso para o Pleno ofensa ao princípio da igualdade, expresso no artigo 13º da Lei Fundamental.
A existência de limitações de recorribilidade, designadamente através do estabelecimento de alçadas (de limites de valor até ao qual um determinado tribunal decide sem recurso), funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das acções aos diversos 'patamares' de recurso.
Na situação aqui em causa, do que se trata, essencialmente, é do funcionamento da regra das alçadas: as acções que nunca chegariam ao Supremo Tribunal, e consequentemente ao Pleno, por não disporem de alçada, são subtraídas - ou dito de outra forma, não são abrangidas - pela legitimação especial de recurso contida no artigo 764º.
Ora, sendo certo que as alçadas, bem como todos os mecanismos de 'filtragem' de recursos, originam desigualdades (partes há que podem recorrer e outras não), estas não se configuram como discriminatórias, já que, todas as acções contidas no espaço de determinada alçada são, em matéria de recurso, tratadas da mesma forma.
Significa isto que a regra básica de igualdade, traduzida numa exigência de tratamento igual do que é igual e diferente do que é diferente, proibindo designadamente a chamada 'discriminação intolerável' (v., por exemplo, o Acórdão n.º 231/94, no Diário da República - I Série A de 28/4/94), não é afectada pelo específico aspecto do recurso para o Pleno dos acórdãos da Relação, questionado pelo recorrente.
2.3. Numa perspectiva diversa da focada pelo recorrente, têm as limitações à recorribilidade de decisões judiciais sido questionadas, junto deste Tribunal, invocando-se ofensa do princípio do acesso aos tribunais, decorrente do artigo 20º nº1 do texto constitucional.
A este propósito, através de um património decisório já consolidado, tem-se afirmado, no domínio do «direito ao recurso», entendido como
«direito a um duplo grau de jurisdição» - e excluindo a hipótese do recurso em matéria penal - ser o mesmo 'restringível pelo legislador ordinário', estando-lhe apenas 'vedada a abolição completa ou afectação substancial
(entendida como redução intolerável ou arbitrária)' deste, sendo que a Constituição 'não garante, genericamente, o direito a um segundo grau de jurisdição e muito menos, a um terceiro grau' (citações extraídas do Acórdão nº
287/90, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º Vol.p.159).
Também nesta perspectiva o recorrente não teria razão.
III DECISÃO
3. Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, com a consequente confirmação da decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita. Lisboa, 12 de Março de 1997 José de Sousa e Brito Messias Bento Bravo Serra Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida