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Proc. nº 844/98
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. C..., identificado nos autos, requereu, perante o Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, a suspensão da eficácia dos actos do Conselho de Administração da L..., S.A., que aprovaram e ordenaram a execução do projecto de instalação de gás no prédio urbano sito no lote 40 da rua Cidade de Santa Clara da Califórnia, em Coimbra.
O requerente, proprietário de uma fracção autónoma do mencionado prédio, sujeito ao regime de propriedade horizontal, alegou, designadamente, que a solução técnica adoptada prejudica irremediavelmente a estética exterior do prédio e impede a normal utilização do logradouro existente, propriedade do condomínio.
Na sua resposta, a autoridade requerida pronunciou-se no sentido de que a suspensão da eficácia dos actos determinaria grave lesão do interesse público, quer do ponto de vista do contrato de concessão entre o Estado Português e a requerida, quer do ponto de vista de todos os restantes condóminos que assinaram os acordos de fornecimento e concordaram com a solução técnica adoptada.
Os condóminos do mesmo prédio, demandados como contra-interessados, apresentaram resposta conjunta, em que sublinharam a vantagem, para os condóminos, e a valorização, para as fracções, da utilização do gás natural.
O Ministério Público proferiu parecer preconizando o indeferimento do pedido, por não se verificar o requisito do artigo 76º, nº 1, alínea a), da LPTA.
O Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, considerando a não verificação do requisito do artigo 76º, nº 1, alínea a), da LPTA e a inutilidade do decretamento da providência, indeferiu o pedido.
2. Não se conformando com a decisão, C... interpôs recurso e, nas alegações, concluiu que 'a decisão sob recurso violou as normas legais contidas nos artigos 76º, nº 1, al. a) e 81º, nº 1 da PLTA, 9º, nº 2, al. a) do Despacho Normativo nº 682/94, de 26-9, 1422º, nº 3 do C. Civil, 100º do CPA e 205º, nº 2,
207º e 268º, nº 4 da CRP'.
O Tribunal Central Administrativo entendeu que o requerente não fez prova da existência de um acto administrativo (nem do seu autor, nem da sua data, nem do seu conteúdo), pelo que rejeitou o pedido de suspensão de eficácia, com fundamento em falta deste pressuposto processual específico da suspensão de eficácia, e revogou a sentença recorrida, por ter conhecido de mérito apesar da falta de um pressuposto processual.
3. C... veio então interpor recurso para o Tribunal Constitucional, através de requerimento assim redigido:
'[...] recorrente nos autos acima e à margem referenciados, em que é recorrido o Conselho de Administração da Lusitâniagás, Companhia de Gás do Centro, S.A., tendo sido notificado do douto acórdão de fls. ..., vem interpor recurso para o Venerando Tribunal Constitucional, pelo que requer a V. Exªs se dignem admiti-lo nos termos legais'.
O Relator, no Tribunal Central Administrativo, não admitiu o recurso
'uma vez que o mesmo é [interposto] de acórdão que o não admite – cfr. art.
103º, nº 1, al. a) do ETAF, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei 229/96, de
29.11'.
4. O recorrente reclamou do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional.
5. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do indeferimento da presente reclamação.
II
6. O fundamento invocado para a rejeição do recurso foi a norma do artigo 103º, nº 1, alínea a), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos
(e não do ETAF, como, certamente por lapso, se refere no despacho reclamado), nos termos da qual, salvo por oposição de julgados, não é admissível recurso dos acórdãos do Tribunal Central Administrativo (e do Supremo Tribunal Administrativo) que decidam em segundo grau de jurisdição.
Ora, a admissibilidade dos recursos de constitucionalidade depende tão somente da verificação dos pressupostos estabelecidos nos artigos 70º e seguintes da Lei do Tribunal Constitucional, como bem sublinha o Senhor Procurador-Geral Adjunto.
Não procede portanto a razão invocada pelo Tribunal Central Administrativo para a rejeição do recurso de constitucionalidade interposto por C....
7. Todavia, para decidir se a presente reclamação pode ser atendida, há que averiguar se, no caso, estão verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso que o ora reclamante pretendia interpor.
O requerimento de interposição do recurso, muito incompleto e redigido de modo deficiente, não obedece aos requisitos estabelecidos no artigo
75º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Não indica sequer a alínea do nº 1 do artigo 70º ao abrigo da qual o recurso é interposto e a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie (cfr. nº
1 do mencionado artigo 75º-A).
O único tipo de recurso que se supõe possa ser utilizado no caso dos autos é, sem dúvida, o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional é o recurso que cabe das decisões dos tribunais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
São pressupostos desse recurso:
– que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma ou normas que se pretende que o Tribunal aprecie;
– que essas normas tenham sido aplicadas na decisão recorrida, não obstante a acusação de inconstitucionalidade.
Como este Tribunal tem afirmado repetidamente, a inconstitucionalidade de uma norma só se suscita durante o processo quando tal se faz a tempo de o tribunal recorrido poder decidir essa questão – o que, salvo casos excepcionais e anómalos, apenas acontece quando o problema é colocado antes de ser proferida decisão sobre a matéria a que respeita a questão de constitucionalidade. Além disso, a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada 'de forma clara e perceptível' (cfr. acórdão nº 560/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º vol., p. 97 ss), isto é, em termos de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para decidir (cfr. acórdão nº
269/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., p. 1165 ss).
'Há, assim, um tempo e um modo processualmente adequados de suscitar a questão de constitucionalidade' (cfr. acórdão nº 155/95, Diário da República, II Série, nº 140, de 20 de Junho de 1995, p. 6751 ss).
O recorrente não suscitou, durante o processo, de forma clara e perceptível, qualquer questão de constitucionalidade normativa. Limitou-se a referir, nas alegações de recurso para o Tribunal Central Administrativo, que 'a decisão sob recurso violou [...] as normas contidas nos artigos [...] 205º, nº
2, 207º e 268º, nº 4 da CRP'.
Mas tal implica imputar a inconstitucionalidade directamente à própria decisão e não às normas legais aplicadas. Sendo o controlo de constitucionalidade atribuído ao Tribunal Constitucional um controlo normativo, apenas pode incidir sobre normas – as normas aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade, ou as normas que a decisão recorrida tenha recusado aplicar com fundamento em inconstitucionalidade, conforme os casos. As decisões judiciais, em si mesmas consideradas, não podem ser objecto de tal controlo.
Não estando verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – tipo de recurso não indicado no requerimento apresentado pelo recorrente, mas, repete-se, o único susceptível de ser utilizado, tendo em conta as circunstâncias do processo –, há que concluir pelo indeferimento da reclamação.
III
8. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 19 de Janeiro de 1999 Maria Helena Brito Vitor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida