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Proc. nº 682/97
1ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. M... e mulher C... foram condenados, por decisão de 25 de Março de 1996, do 8º Juízo Cível da Comarca do Porto, a afectarem exclusivamente a
'armazém-comércio' a fracção designada pelas letras 'CA' do prédio sito na Rua da Alegria, nºs 962/972 e Rua Amélia de Sousa, nº 140, da freguesia do Bonfim, concelho do Porto, abstendo-se de a utilizarem na actividade de confecção de vestuário de cabedal como vinham fazendo.
Inconformados, recorreram dessa decisão para o Tribunal da Relação do Porto.
Nas suas alegações, suscitaram, desde logo, a questão da inconstitucionalidade da norma constante da alínea c) do nº 2 do artigo 1422º do Código Civil, nos termos seguintes:
5 - Sendo o direito à propriedade privada um direito de natureza análoga aos direitos previstos no Título II da C.R.P., aplica-se-lhe igualmente o regime dos direitos liberdades e garantias.
6 - Ora, mesmo admitindo que o disposto naquele preceito do Código Civil, constitui uma restrição expressamente prevista na Constituição, a mesma deve limitar-se ao necessário para salva-guardar outros direitos ou interesses constitu-cionalmente protegidos.
7 - Tratando-se de um prédio em regime de propriedade horizontal, e destinando-se as fracções autónomas dos Recorridos a habitação, é óbvio que tal disposição do Código Civil se destinará a garantir, no caso concreto, o direito
à habitação.
[...]
14 - Ora, só terá sentido uma qualquer restrição ao direito de propriedade privada, nomeadamente ao seu componente liberdade de uso e função, que vise salvaguardar um outro direito constitucionalmente previsto.
15 - Todavia, da factualidade descrita constata-se que a restrição não atende nem em abstracto nem em concreto a essa salvaguarda, ou seja, tal restrição é absoluta, quer vise, quer não, proteger direitos ou interesses de terceiros.
16 - Nessa medida é inconstitucional a disposição do artigo 1422º, nº
2, alínea c) do Código Civil.
2. Por acórdão de 2 de Outubro de 1997, a Relação do Porto julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão recorrida.
Quanto à questão de inconstitucionalidade suscitada, entendeu-se nesse aresto:
(...) o direito de propriedade privada é consagrado no plano constitucional como direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias do cidadão e como direito institucional de propriedade.
Não se trata, porém, de um direito absoluto, pois ele é garantido nos termos da Constituição, permitindo-se assim que o legislador modele o seu conteúdo e limites (v. art. 168º, nº 1, als. b) e j) da CRP).
(...)
O conteúdo do direito de propriedade, conforme decorre do disposto no art. 1305º do C. Civil, consiste no poder que o proprietário tem de gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem.
Mas este poder comporta limites.
Na verdade, na própria descrição do conteúdo feita no art. 1305º referida, na segunda parte, refere-se expressamente que esse poder apenas existe dentro dos limites da lei e com a observância das restrições por ela impostas.
(...)
No caso da restrição imposta pela al. c) do nº 2 do art. 1422º do CC, ela radica, prevalentemente, em razões de interesses de ordem pública respeitantes à organização da propriedade, embora vise também a protecção de interesses particulares dos restantes condóminos
(...)
O fim da fracção tem a ver especialmente com o projecto aprovado pela entidade pública, em conformidade com o disposto nos art.s 3º, 6º, 8º e 165º do RGEU e não depende do arbítrio do instituidor da propriedade horizontal.
Na verdade, as condições de segurança, higiene, de compartimentação e
áreas mínimas, etc., variam de forma significativa consoante o destino previsto para as diversas fracções de um prédio.
(...)
Sendo assim, assente o destino a que uma fracção de um prédio em propriedade horizontal está adstrito, não faz parte do conteúdo essencial do direito de propriedade de qualquer condómino dar-lhe outro destino.
O estabelecimento da limitação referida na al. c) do nº 2 do art.
1422º do CC não pode, pois, diminuir aquele conteúdo essencial.
E não contraria, também, o princípio da proporcionalidade estabelecido na última parte do nº 2 do art. 18º da CRP.
Este princípio, no âmbito específico das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, significa que qualquer limitação, feita por lei ou com base na lei, deve ser adequada (apropriada), necessária (exigível) e proporcional (com justa medida) - Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., p. 617.
Ora a mencionada necessidade de na propriedade horizontal se conciliar os interesses de todos ou de proteger o interesse público torna a limitação em causa adequada, necessária e proporcional.
O estabelecimento da limitação em causa também não viola, obviamente, o princípio da igualdade estabelecido no art. 13º da CRP, na medida em que trata por igual o que é igual e desigual o que é desigual, não criando qualquer privilégio ou discriminação.
Finalmente e ao contrário do que pretendem os apelantes, a limitação referida reveste carácter geral e abstracto - art. 18º, nº 3 da CRP.
3. Novamente inconformados, os recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, «nos termos da alínea b) do artº 70º da Lei nº 28/82, para apreciação da inconstitucionalidade da norma prevista na alínea c) do nº 2 do artº 1422º do Código Civil, por violação do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa».
4. Admitido o recurso, e distribuídos os autos, os recorrentes apresentaram alegações neste Tribunal, tendo formulado as seguintes conclusões:
I - A norma do artigo 1422º, nº 2, alínea c) do Código Civil contém uma restrição ao direito da propriedade consignado no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.
II - Tal restrição, pela sua forma genérica, pode ser aplicada quer para salvaguardar, quer não, outros direitos igualmente com assento e protecção constitucional.
III - No caso concreto não se apurou que de tal restrição resulte tal salvaguarda, nomeadamente do direito de habitação dos Recorridos.
IV - Assim, e nessa medida deve ser declarada inconstitucional aquela norma do Código Civil, salvo se da sua aplicação resultar a salvaguarda de outro direito constitucional, por violação do disposto no artigo 62º da C.R.P.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
5. A norma em questão é do seguinte teor:
1 - Os condóminos, nas relações entre si, estão sujeitos, de um modo geral, quanto ás fracções que exclusivamente lhes pertencem e quanto às partes comuns, às limitações impostas aos proprietários e aos comproprietários de coisas imóveis.
2 - É especialmente vedado aos condóminos:
[...]
c) Dar-lhe uso diverso do fim a que é destinada.
Os recorrentes pretendem que esta restrição ou limitação ao direito de propriedade, constante da transcrita alínea c) daquele nº 2, pelo menos na medida em que da sua aplicação não «resultar a salvaguarda de outro direito constitucional», viola o direito à propriedade constitucionalmente garantido pelo artigo 62º, nº 1 da Constituição.
6. Ora, o artigo 62º, nº 1, da Constituição, não consagra uma garantia ilimitada da propriedade privada. Como os próprios recorrentes reconhecem, aquele direito constitucionalmente consagrado não o é em termos absolutos ou ilimitados, antes «dentro dos limites e nos termos previstos e definidos noutros lugares da Constituição» (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1992, pág. 332). A este propósito, escreveu-se no Acórdão nº 866/96 (Diário da República, I Série
–A, de 18 de Dezembro de 1996):
Não definindo o texto constitucional o que deva entender-se por direito de propriedade, nem sempre têm sido pacíficas as conclusões atingidas pelos seus intérpretes a propósito da dimensão e contornos daquele conceito, sendo, porém, seguro que a velha concepção clássica da propriedade, o jus fruendi ac abutendi individualista e liberal, foi, nomeadamente nas últimas décadas deste século, cedendo o passo a uma concepção nova daquele direito, em que avulta a sua função social.
Como quer que seja, o direito de propriedade constitucionalmente consagrado não beneficia de uma garantia em termos absolutos, havendo de conter-se dentro dos limites e nos termos definidos noutros lugares do texto constitucional, [...]
Por fim, cabe citar J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., págs. 332 - 333:
Teoricamente, o direito de propriedade abrange pelo menos quatro componentes: (a) o direito de adquirir bens; (b) o direito de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; (c) o direito de os transmitir; (d) o direito de não ser privado deles. Aparentemente, só o segundo aspecto não está contemplado de forma explícita neste preceito constitucional.
Revestindo o direito de propriedade, em vários dos seus componentes, uma natureza negativa ou de defesa, ele possui natureza análoga aos «direitos, liberdades e garantias», compartilhando por isso do respectivo regime específico
(cfr. art. 17º), isto na medida em que ele é garantido pela Constituição. A este propósito interessa ter em conta, não apenas os limites explícitos (sobretudo em matéria de propriedade de meios de produção) mas também os limites imanentes, decorrentes implicitamente de outras normas e princípios constitucionais, que vão desde os princípios gerais da constituição económica e financeira (entre os quais as obrigações fiscais: art. 106º), até aos direitos sociais (defesa do ambiente, do património cultural, etc.).
[...]
De uma forma geral, o próprio projecto económico, social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito dos poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de restrições (quer a favor do Estado e da colectividade, quer a favor de terceiros) das liberdades de uso, fruição e disposição.
[...]
A Constituição não menciona expressamente, entre os componentes do direito de propriedade, a liberdade de uso e fruição. Todavia, mesmo que se entenda que ele integra naturalmente o direito de propriedade, fácil é verificar que são grandes os limites constitucionais, especialmente em matéria de meios de produção – que vão desde o dever de uso (art. 89º) até ao seu condicionamento
(cfr. especialmente o art. 96º-2) -, podendo a lei estabelecer restrições maiores ou menores, credenciada nos princípios gerais da Constituição, particularmente nos da Constituição económica.
Limites particularmente intensos a este aspecto do direito de propriedade são os que ocorrem no domínio urbanístico e do ordenamento do território, a ponto de se questionar se o direito de propriedade inclui o direito de construir – jus œdificandi – ou se este radica antes no acto administrativo autorizativo (licença de construção).
7. A propriedade horizontal é hoje regulada pelas disposições constantes dos artigos 1414º a 1438º-A, do Código Civil, na redacção e com as alterações constantes do Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro, e ainda pelas disposições do Decreto-Lei nº 268/94, da mesma data. A propriedade horizontal é uma forma especial de propriedade, definida nos termos do artigo 1420º do Código Civil:
1 - Cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício.
2 - O conjunto dos dois direitos é incindível; nenhum deles pode ser alienado separadamente, nem é lícito renunciar à parte comum como meio de o condómino se desonerar das despesas necessárias à sua conservação ou fruição.
Por sua vez, o artigo 1418º determina ainda que o título constitutivo da propriedade horizontal deverá especificar as partes
«correspondentes às várias fracções», contendo, nomeadamente, «menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum».
Os condóminos encontram-se, portanto, sujeitos às restrições e limitações ao exercício do direito de propriedade normal e legalmente impostas em termos gerais. Mas, para além dessas restrições e limitações, e em virtude da própria natureza da propriedade horizontal, outras lhes são impostas, ditadas, antes de mais, pela relação de proximidade ou comunhão em que vivem os condóminos. É, nomeadamente, o que se passa com a al. c), acima reproduzida, do nº 2 daquele artigo 1422º, norma cuja inconstitucionalidade vem suscitada pelos recorrentes.
Mas esta proibição de afectação da fracção a fim diverso do que lhe
é destinado não radica apenas nessas relações de proximidade e comunhão, características da propriedade horizontal, mas também em razões de ordem pública. Como é, aliás, do conhecimento comum, as características técnicas dos edifícios, designadamente do ponto de vista arquitectónico, em aspectos de construção e de segurança, como os da área ou da higiene, variam consoante a respectiva utilização, que se encontra, aliás, sujeita a verificação e licenciamento pela Câmara Municipal competente, a qual certifica assim que foram observadas as regras e especificidades técnicas inerentes a essa utilização. E o mesmo se diga relativamente à adequação do destino das edificações à política urbanística, sabido como é que a própria vida social nos centros urbanos em muito depende de uma harmoniosa distribuição da localização dos edifícios destinados à habitação ou a outros fins, sendo certo que ao Estado incumbe aprovar legislação sobre ordenamento do território e urbanismo, de modo a assegurar «uma correcta localização das actividades» (cfr. artigo 65º, nº 4, e artigo 66º, nº 2, alínea b), da CRP).
8. Este aspecto foi, de resto, devidamente focado pela decisão recorrida quando aí se afirmou:
O fim da fracção tem a ver especialmente com o projecto aprovado pela entidade pública, em conformidade com o disposto nos art.s 3º, 6º, 8º e 165º do RGEU e não depende do arbítrio do instituidor da propriedade horizontal.
Na verdade, as condições de segurança, higiene, de compartimentação e
áreas mínimas, etc., variam de forma significativa consoante o destino previsto para as diversas fracções de um prédio.
Com efeito, no âmbito das construções e edificações urbanas, as câmaras detêm funções de regulamentação, fiscalização e licenciamento das mesmas, tendo, nomeadamente, em conta os interesses públicos de segurança e salubridade. Assim, o RGEU (Decreto nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951, com as alterações posteriores) comete às câmaras, para além de uma função de licenciamento (artigo 2º) das obras e trabalhos «de construção civil, a reconstrução, ampliação, alteração, reparação ou demolição das edificações e obras existentes, (...)» (artigo 1º), também uma função de licenciamento da
«utilização de qualquer edificação nova, reconstruída, ampliada ou alterada» - artigo 8º -, sendo tal licenciamento actualmente regulamentado pelo Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro. Este dispõe, no seu artigo 1º, nº 1, alínea b), que estão sujeitas a licenciamento municipal «a utilização de edifícios ou de suas fracções autónomas, bem como as respectivas alterações».
Este Regulamento, cuja execução compete às câmaras, visa claramente interesses públicos e colectivos, ainda mais prementes nos grandes centros urbanos, relacionados com «as condições de salubridade, estética e segurança das edificações», e «impondo respeito pela vida e haveres da população e pelas condições estéticas do ambiente local», e procurando «dar aos núcleos urbanos e rurais um desenvolvimento correcto, harmonioso e progressivo» (cfr. preâmbulo do citado RGEU). As especificidades técnicas nele previstas visam ainda «dotar a construção projectada com os requisitos necessários ao fim em vista», nomeadamente as condições de segurança consoante o destino económico do edifício.
Na verdade, não é indiferente o destino ou fim de cada fracção, não podendo cada proprietário dispor da sua fracção indistintamente, antes devendo observar tal fim, de acordo com o respectivo licenciamento. Consoante o destino respectivo, assim cada fracção estará sujeita a específicas e próprias regras de segurança, salubridade e construção, designadamente; e, atento o regime da propriedade horizontal, compreensível é que cada condómino tenha de antemão o direito de saber qual o fim não só da sua fracção, como o das restantes, atenta a influência que tal destino pode exercer sobre o desejo de contratar, sobre o preço, etc.. Nomeadamente, nunca pode o fim da fracção ser diverso do constante da respectiva licença camarária de utilização, pelo que, na verdade, tal fim ou destino não está (nem pode estar), na livre disponibilidade do respectivo proprietário, antes estando submetido aos regulamentos de construção e licenciamento (nomeadamente camarários); só mediante aprovação de tal alteração pelas entidades legais respectivas, e, no caso de propriedade horizontal, obtido o acordo expresso de todos os restantes condóminos (cfr. artigo 1419º do Código Civil), poderá assistir-se a uma eventual alteração do fim da fracção em causa. Todas estas limitações impostas aos proprietários, em âmbito de propriedade horizontal, visam, assim, salvaguardar também aqueles interesses de ordem pública atrás referidos: interesses públicos e colectivos, relacionados com condições de salubridade, estética e segurança dos edifícios, assim como das condições estéticas, urbanísticas e ambientais, ainda mais prementes nos grandes centros urbanos, onde proliferam os edifícios em propriedade horizontal; isto, para além dos interesses privados atinentes às relações entre condóminos, derivadas da especial natureza da propriedade horizontal. Em conclusão, as restrições ou limitações impostas aos proprietários de fracções autónomas radicam em duas ordens fundamentais de razões: por um lado, razões privadas de relações de proximidade e comunhão, e, por outro, em razões de ordem pública.
9. De todo o exposto, resulta que a norma questionada apenas procede
à delimitação do direito de propriedade horizontal, tendo em conta outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos (designadamente, o direito de propriedade dos restantes condóminos e o direito ao ambiente e qualidade de vida), em nada colidindo com o preceituado no artigo 62º, nº 1, da Constituição.
III – DECISÃO
10. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 19 de Janeiro de 1999 Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa