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Processo nº 221/96
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., magistrado judicial, com os sinais identificadores dos autos, veio, 'ao abrigo do disposto no artº 70º nº 1, alínea b) da Lei nº
28/82 de 15/11, com a redacção da Lei nº 85/89 de 7/9, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão desse Supremo Tribunal (o Supremo Tribunal de Justiça) de 31/01/96 que interpretou os artigos 34º e 37º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei nº 21/85, de 30/07, com a redacção introduzida pela Lei nº 10/94 de 5/5, de modo a violar os artigos 13º e 266º nº
2 da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, o douto acórdão recorrido, ao interpretar os artigos 34º e 37º do E.M.J. (aplicando no processo essas normas com essa interpretação) no sentido de considerar como elementos classificativos decisivos o tempo de serviço, as comissões de serviço e os trabalhos jurídicos posteriores ao período em que os juízes inspeccionados trabalharam na comarca, viola directamente o princípio da igualdade previsto no artigo 13º da C.R.P. e o princípio da constitucionalidade da Administração previsto no artigo 266º nº 2 do mesmo diploma'.
2. Nas suas alegações, concluiu assim o recorrente:
'1. O STJ interpretou os artigos 34º, nº 1 e 37º, nºs 1 e 2 do EMJ com o sentido de considerar como elementos de classificação decisivos (já que diferenciam o recorrente dos outros dois colegas inspeccionados) o tempo de serviço (e não o mérito do mesmo) e as nomeações para comissões de serviço (e não o desempenho das mesmas) posteriores ao trabalho inspeccionado.
2. Esta interpretação viola ostensiva e directamente os artigos 13º e 266º, nº
2 da CRP.
3. Deveria o acórdão recorrido interpretar as aludidas normas no sentido de valorar apenas os elementos classificativos existentes quando os inspeccionados efectivamente prestaram o serviço objecto da inspecção e nunca elementos posteriores'.
3. O recorrido Conselho Superior de Magistratura apresentou contra-alegações, sustentando que 'o recurso não merece provimento'.
4. Vistos os autos, cumpre decidir.
Há, antes de mais, que registar a seguinte seriação processual:
4.1. Por deliberação do Conselho Superior de Magistratura, de 26 de Abril de 1994, em sessão do Conselho Permanente, foi atribuída ao recorrente, 'pelo seu desempenho no T.J. de Montemor-o-Novo após
10-9-92 e até 28-10-93, a notação de 'Bom', quando vinha proposta no relatório da inspecção - para o recorrente e para outros dois juízes - a classificação de
'Bom com distinção'.
4.2. Dessa deliberação reclamou o recorrente para o Plenário do mesmo Conselho, 'ao abrigo do disposto nos artºs 151º, b) e 165º do Estatuto dos Magistrados Judiciais', a qual, por acórdão de 6 de Dezembro de
1994, foi julgada improcedente.
4.3. Desse acórdão veio então o recorrente interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando, entre o mais, que no
'caso dos autos o recurso a elementos de classificação posteriores à prestação do serviço inspeccionado é ostensivamente inadmissível porque tais critérios nada têm a ver com o mérito dos Juízes inspeccionados na altura em que prestaram aquele serviço' (e daí a conclusão de que o Conselho Superior de Magistratura,
'ao interpretar os artigos 34º e 37º do E.M.J. aprovado pela Lei nº 21/85, com a redacção introduzida pela Lei nº 10/94 de 05/05, no sentido de considerar como elementos classificativos o tempo de serviço, as comissões de serviço e os trabalhos jurídicos publicados posteriores ao período em que os inspeccionados trabalharam na comarca, viola directamente o princípio da igualdade previsto no artigo 13º da Constituição e o princípio da constitucionalidade da administração previsto no artigo 266º nº 2 do mesmo diploma, o que acarreta a sua invalidade').
4.4. Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Secção de Contencioso), de 31 de Janeiro de 1996, foi negado 'provimento ao recurso, mantendo a deliberação impugnação', por se entender 'não se mostrar ofendida qualquer disposição legal'.
Este o acórdão recorrido.
5. Entendeu-se nesse acórdão depois de se dar como verificado que 'a classificação do recorrente com nota inferior à dos outros dois juízes, inspeccionados na mesma altura, assentou num desempenho e num currículo, considerados pelo C.J.M. relativamente menos valiosos', que 'não pode dizer-se que tenha sido violado o princípio constitucional da igualdade, pois a diferença de classificação atribuídas não reflecte abusiva discriminação nem puro arbítrio, antes procurando traduzir a desigualdade das correspondentes situações de facto, quanto a aspectos de relevo, sendo portanto uma diferenciação baseada em distintas realidades objectivas'.
E acrescentou-se depois:
'Sobre os elementos classificativos que devem ser determinantes:
O Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei nº 21/85 de 30.VII) manda atender, nomeadamente, ao volume e dificuldades do serviço, à preparação técnica, categoria intelectual e trabalhos jurídicos publicados pelo juiz (artº 34º, nº
1, e artº 37º, nº 2); e, entre os elementos a considerar, aponta todos os constantes do respectivo processo individual, especificando processos disciplinares e tempo de serviço (artº 37º, nº 1).
Não são, pois, desprezíveis as notas de licenciatura, nem o facto de ter ou não o trabalho repartido com um auxiliar. E, por outro lado,
nada autoriza a considerar como irrelevantes dados posteriores ao período inspeccionado, inclusive o tempo acrescido de serviço e novas demonstrações de mérito ou demérito, que tenham surgido, embora a avaliação seja centrada naquele período.
O invocado Regulamento das Inspecções não pode ser entendido com outro alcance - por uma questão de hierarquia de normas - quando manda ponderar na classificação elementos relativos ao tempo e lugar a que a inspecção respeita.
Aliás, ao desatender a reclamação do ora recorrente, o C.S.M. pôs a tónica na ausência de trabalho que se destacasse acima da generalidade dos juízes cumpridores, durante o seu ainda curto tempo de judicatura (cerca de três anos e meio como efectivo).
Quanto à avaliação que o C.S.M. fez dos vários elementos atendíveis para efeitos classificativos, torna-se necessário não esquecer que lhe é inerente uma certa discricionaridade técnica.
Esta não deixa de estar vinculada dos princípios fundamentais que o artº 266º da Constituição da República define para a actuação dos órgãos e agentes administrativos - igualdade, proporcionalidade, justiça e imparcialidade. Mas, através do presente recurso contencioso, só é sindicável com base em erro manifesto, inadmissibilidade ostensiva dos critérios utilizados ou uso manifestamente desacertado e inaceitável de tais critérios - conforme a jurisprudência e a doutrina têm entendido.
Ora a verdade é que nenhum destes vícios se evidencia, no caso em apreço. Efectivamente, como decorre do que deixamos exposto em 3, 4 e 5, o acórdão recorrido fundamentou duma forma coerente e razoável a opção tomada, adoptando critérios defensáveis, dentro daquela liberdade de apreciação, que a competência do C.S.M. nessa matéria implica (artºs 149º-a), 33º, 34º e 37º do E.M.J.).
Quer dizer, o poder discricionário foi aqui exercido em termos aceitáveis, ainda que naturalmente discutíveis, sem ter excedido os sindicáveis limites da legalidade'.
No discurso do recorrente, a interpretação a dar àquelas normas do Estatuto dos Magistrados Judiciais para ser conforme as normas e princípios constitucionais, passa só pelo sentido de 'valorar apenas os elementos classificativos existentes quando os inspeccionados efectivamente prestaram o serviço objecto da inspecção e nunca elementos posteriores', e assim teriam de ser aplicadas.
6. É fácil de ver que a única questão posta pelo recorrente visa as normas dos citados artigos 34º, nº 1, e 37º, nºs 1 e 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei nº 21/85, de 30 de Julho, alterada pelas Leis nºs 2/90, de 20 de Janeiro e 10/94, de 5 de Maio), enquanto interpretadas e aplicadas à classificação do recorrente com o presumível sentido de considerar
'como elementos classificativos decisivos o tempo de serviço, as comissões de serviço e os trabalhos jurídicos posteriores ao período em que os juízes inspeccionados trabalharam na comarca, viola directamente o princípio da igualdade previsto no artigo 13º da C.R.P. e o princípio da constitucionalidade da Administração previsto no artigo 266º nº 2 do mesmo diploma', sendo a nota destacável em tal interpretação a posterioridade desses elementos classificativos.
Não assiste, porém, razão ao recorrente.
Estabelece o n.º 1 do artigo 34.º os critérios a atender na classificação dos juízes de direito, determinando o n.º 1 do artigo 37.º que
'são sempre considerados o tempo de serviço, os resultados das inspecções anteriores, os processos disciplinares e quaisquer elementos complementares que constem do respectivo processo individual' (redacção do artigo 1.º da citada Lei n.º 10/94) e prevendo o n.º 2 outros elementos a considerar nas classificações, aqui irrelevantes (é o caso do 'volume de serviço a cargo do magistrado, as condições de trabalho (...)').
Tal como elas foram interpretadas e aplicadas, no acórdão recorrido, não se revela, diferentemente do entendimento do recorrente, terem sido violados 'ostensiva e directamente os artigos 13.º e 266.º, n.º 2 da CRP', reflectindo ambos a consagração do princípio da igualdade, que é o centro do discurso do recorrente.
'O princípio da igualdade, como é entendimento uniforme deste Tribunal, obriga a que se trate como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente; não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, o que aquele princípio proíbe são as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante. Prossegue-se assim uma igualdade material, que não meramente formal.
Para que haja violação do princípio constitucional da igualdade, necessário se torna verificar, preliminarmente, a existência de uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminação.
Concretizando, importará perguntar se as normas impugnadas possuem uma justificação material para a 'diferenciação' que (eventualmente) estabelecem. É que, se a tiverem, não importarão qualquer violação do princípio da igualdade.' (linguagem do recente acórdão nº 1007/96, inédito, perfeitamente transponível para o presente caso; vejam-se ainda as considerações constantes do Acórdão n.º 501/96, publicado no Diário da República, II Série, n.º 152, de 3 de Julho de 1996, a propósito do mesmo princípio).
Ora, o Supremo Tribunal de Justiça, ao fazer a interpretação das citadas normas legais, aplicando-as à hipótese sub judicio, com o sentido de que ' nada autoriza a considerar como irrelevantes dados posteriores ao período inspeccionado, inclusive o tempo acrescido de serviço e novas demonstrações de mérito ou demérito, que tenham surgido, embora a avaliação seja centrada naquele período', não está a incorrer na violação do princípio da igualdade, plasmado nos artigos 13.º e 266.º, n.º 2, da Constituição, e que tem de ser respeitado no exercício de qualquer actividade materialmente administrativa, sendo que a classificação dos juízes de direito, ao nível do seu Estatuto, inscreve-se nesse tipo de actividade (o Conselho Superior de Magistratura, como órgão de gestão e disciplina dos 'juízes dos tribunais judiciais' - artigos 219º e 220º da Constituição - actua administrativamente quando aprecia o mérito profissional daqueles juízes).
Na verdade, a diferenciação dos juízes classificados, ora em causa, na base da consideração factual de elementos posteriores ao período inspeccionado (e comum a todos eles), daí derivando 'novas demonstrações de mérito ou demérito', quanto ao juiz relativamente ao qual tais elementos existem, não preenche uma discriminação arbitrária ou irrazoável. De facto, atender a esses novos elementos nada tem de irracional ou de arbitrário, pois que servem para estabelecer o posicionamento desse juiz, no plano do mérito profissional, em termos de justificar um diferente juízo de apreciação do seu mérito. Da Constituição não decorre que a lei, nomeadamente nos artigos questionados do Estatuto, imponha que administrativamente sejam valorados apenas, como quer o recorrente, os mesmos elementos - in casu, o tempo de serviço e as comissões de serviço - para todos os juizes a classificar, pois a diferente situação de cada um deles determina uma diferente valoração de tais elementos.
Portanto, o juiz, contrariamente ao que entende o recorrente, não vale só pela 'ambição de ser apenas juiz', de desempenhar apenas o seu trabalho na comarca, vale também distintivamente pelo mérito que lhe é reconhecido, por exemplo, pela sua 'categoria intelectual', ou pelos 'trabalhos jurídicos publicados' ou até pela 'idoneidade cívica', de que podem resultar benesses na sociedade civil, como sejam, as comissões de serviço. Daí que não possa falar-se em diferença de tratamento pela pura diferença, mas antes em distinção de tratamento com justificação e fundamento material bastante.
Se isto é assim, se tem de ser tratado diferentemente o que for essencialmente diferente, não há violação do princípio da igualdade e mostram-se respeitados os artigos 13.º e 266.º da Constituição, com a interpretação e a aplicação das normas em causa, feitas no acórdão recorrido.
7. Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao recurso. Lisboa, 12 de Março de 1997 Guilherme da Fonseca José de Sousa e Brito Bravo Serra Messias Bento Luís Nunes de Almeida