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Proc. nº. 550/98
1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Vem o presente recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 31 de Março de 1998 que, negando provimento ao recurso, julgou constitucional a norma constante do artigo 871º do Código de Processo Civil, confirmando o acórdão recorrido.
Inconformada a recorrente C..., SA interpôs recurso para este Tribunal, alegadamente ao abrigo do artigo 70º, nº. 1, alínea b) da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro. Apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
'1º Os bens penhorados pelas repartições de Finanças podem ser penhorados por qualquer Tribunal por força da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do disposto no artº. 300º, nº. 1, 1ª parte do Código de Processo Tributário, por violação dos princípios constitucionais da garantia da propriedade privada e da proporcionalidade ou da proibição do excesso.
2º Aplicado aquele normativo, nunca se verificaria a situação processual a que se refere o artº. 871º, nº. 1 do C.P.C., ou seja, o legislador não concebeu a aplicação do regime jurídico-processual previsto naquele dispositivo em relação a uma execução fiscal onde o imóvel tivesse sido apreendido anteriormente.
3º O artº. 871º do C.P.C. não poderia prever uma hipótese que a lei proibia: se os bens penhorados pelo Fisco ficavam subtraídos ao credor comum, não poderia o referido artigo prever a penhora posterior do credor comum que a própria lei não admitia.
4º Penhorado por um Tribunal Comum um imóvel já anteriormente penhorado por uma Repartição de Finanças, a execução não deverá ser sustada nos termos do artº
871º, nº. 1 do C.P.C. e no artº. 300º, nº. 2 do C.P. Tributário.
5º Se assim fora, mostrava-se, na prática, perfeitamente inútil, aquela declaração de inconstitucionalidade: o credor comum só muito dificilmente e sempre tardiamente poderia ver-se pago, num mesmo tributo ao benefício excessivo e desproporcionado do credor público.
6º Sustada com efeito, a execução, não pode o exequente pedir sequer a apensação
à execução fiscal face à especial tramitação desta; a convocação dos credores para reclamação dos seus créditos é feita apenas depois da venda, artº. 329º, e os credores com garantia real são citados só depois de 'feita a penhora e junta a certidão de encargos', artº. 321º, nº. 1, ambos do C.P. Tributário.
7º E a dificuldade, se não impossibilidade e, de todo o modo, sempre o grande atraso na satisfação do crédito do exequente comum mostra-se ainda agravada pela indicada especificidade do processo executivo fiscal noutros casos: nos termos do nº. 1 do artº. 317º, 'a penhora não será levantada qualquer que seja o tempo que se mantiver parada a execução e ainda que o motivo não seja imputável ao executado' sendo ainda possível o pagamento em prestações previsto nos artºs.
279º a 283º que poderá ir até 5 anos, nº. 4 do artº. 279º ainda do C.P. Tributário.
8º Os princípios da proporcionalidade e da confiança que enformam a ordem constitucional estão flagrantemente violados naquele artº. 317º.
9º Considerando a especificidade decorrente do C. P. Tributário e a não previsibilidade legal da situação decorrente da declaração de inconstitucionalidade do disposto no artº. 300º, nº. 1, 1ª parte, daquele código, e em nome dos princípios constitucionais apontados da garantia da propriedade privada e da proporcionalidade ou da proibição do excesso, a penhora em execução fiscal não há-de levar à sustação da acção executiva comum sob pena de o credor comum ver seriamente ameaçada e dificultada a satisfação do seu crédito.
10º O titular do crédito garantido pela penhora efectuada anteriormente em processo de execução fiscal deve ser citado, nos termos do disposto no artº.
864º do C.P.C. para reclamar os seus créditos, sem prejuízo do disposto no artº.
300º, nº. 2 do C.P.T..
11º A decisão recorrida violou, por deficiente interpretação e aplicação, o disposto no artº. 871º do C.P.C. e artº. 300º, nº. 2 do C.P. Tributário, 62º nº.1 e 18º da Constituição da República.'
Os recorridos não apresentaram contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
2. A norma cuja inconstitucionalidade vem suscitada pela recorrente é a norma do nº. 1 do artigo 871º do Código de Processo Civil quando interpretada como aplicável também à execução fiscal, em cuja tramitação se integram, entre outras, normas que prevêem o pagamento da dívida exequenda em prestações até um máximo de cinco anos, a manutenção da penhora qualquer que seja o tempo por que se mantiver parada a execução e a reclamação de créditos após a realização da venda. Dispõe o artigo 871º, nº. 1 do Código de Processo Civil:
'Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, sustar-se-á quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respectivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga; se a penhora estiver sujeita a registo, é por este que a sua antiguidade se determina.'
Pretende a recorrente obter declaração/juízo de inconstitucionalidade da referida conjugação de normas na interpretação dada pelo acórdão recorrido, por entender que a mesma viola o princípio da garantia da propriedade privada e da proporcionalidade ou proibição de excesso previstos nos artigos 62º e 18º, nº. 1 da Constituição. No entendimento da recorrente, a interpretação das normas feita pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão recorrido de que o artigo 871º do Código de Processo Civil não se restringe às execuções comuns, podendo abranger todo e qualquer processo executivo (leia-se, processo executivo fiscal) está ferida de inconstitucionalidade, esvaziando de conteúdo útil o acórdão deste Tribunal nº.
451/95, in DR, I Série - A, de 3.08.1995, que, declarou com força obrigatória geral – por violação da garantia do direito do credor à satisfação do seu crédito (que se extrai do nº. 1 do artigo 62º da Constituição), conjugada com o princípio da proporcionalidade (que se extrai, entre outros, do artigo 18º da Constituição) – a norma constante da primeira parte do artigo 300º do Código de Processo Tributário, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei nº.
132/93, de 23.04, na parte em que estabelecia o regime de impenhorabilidade total dos bens anteriormente penhorados pelas repartições de finanças em execuções fiscais. No presente recurso, tal como a recorrente o delimitou no seu requerimento de interposição, parece estar em causa saber se, numa acção executiva a correr termos num tribunal judicial, a efectivação da penhora sobre um bem já penhorado anteriormente num processo de execução fiscal dá lugar à sua sustação ao abrigo do artigo 871º do Código de Processo Civil ou se, ao invés, pode continuar a respectiva tramitação subsequente, nomeadamente com a realização da venda e pagamento ao(s) credor(es), com vista a dilucidar se a interpretação das normas
é ou não conforme à Constituição, enquanto esta assegura a garantia do direito do credor à satisfação do seu crédito (que se pode extrair da garantia constitucional do direito de propriedade) e o princípio da proporcionalidade
(artigo 18º, nº. 2 da Constituição). Importa desde já esclarecer que a questão ora em análise não é idêntica à decidida no supra referido acórdão nº. 451/95 deste Tribunal, porquanto aquele se pronunciou acerca do regime de impenhorabilidade total e absoluta de bens pertencentes ao executado, decorrente da circunstância de os mesmos terem sido anteriormente penhorados numa execução fiscal. Como se referiu no acórdão deste Tribunal nº. 516/94, in DR, II Série, de
15.12.1994: 'Trata-se de um regime claramente excepcional no nosso direito, visto que os bens do devedor executado eram susceptíveis de penhora antes de virem a ser penhorados na execução fiscal'. E mais adiante:
'(...) a penhora decretada em processo de execução fiscal torna os bens penhorados inapreensíveis e impenhoráveis em quaisquer tribunais, enquanto se mantiver tal penhora'.
Estava em causa, apenas, analisar a conformidade constitucional do artigo 300º, nº. 1, 1ª parte do Código de Processo Tributário, mais precisamente o regime de impenhorabilidade total e absoluta dos bens do executado penhorados em execução fiscal. No caso ora em apreço, não está em causa a impenhorabilidade de bens sobre os quais recaia penhora realizada nas repartições de finanças ou tribunais tributários, visto que a primeira penhora decretada e efectivada sobre certos bens do devedor, por força da declaração de inconstitucionalidade do artigo 300º nº 1, 1ª parte do CPT, não os torna insusceptíveis de penhoras posteriores. Os bens continuam a deter a característica da penhorabilidade. Havendo uma pluralidade de execuções com penhoras efectivadas sobre os mesmos bens, a execução deve ser sustada nos processos com penhora(s) mais recente(s), permitindo-se ao credor exequente recorrer ao mecanismo da reclamação dos seus créditos com base na garantia de que dispõe (penhora com registo posterior, ou outro tipo de garantias, se as houver). Não se ignora, é certo, que tratando-se de penhora efectivada em execução fiscal, os efeitos do regime jurídico previsto no artigo 871º do Código de Processo Civil se repercutam na tramitação processual da própria execução fiscal, nomeadamente em termos de tempestividade da reclamação de créditos pelo credor cuja garantia se configure como penhora efectivada em execução cível posterior, com execução sustada nos termos do já mencionado artigo 871º do CPC. Também não se ignora que, por essa forma, o credor com penhora efectivada em execução cível sustada nos termos do artigo 871º do CPC, possa sofrer as vicissitudes próprias da execução fiscal, tal como refere a recorrente nas suas alegações, mormente, um atraso na satisfação do seu crédito decorrente da circunstância de o devedor proceder ao pagamento da dívida fiscal exequenda em prestações, cujo limite temporal se pode estender até aos 5 anos, sem que nesse intervalo o credor com penhora posterior possa 'apressar' a tramitação da execução fiscal, na qual, em rigor, é, nessa fase, parte ilegítima, por não lhe ter sido dada ainda oportunidade processual adequada para reclamar o seu crédito. Porém, as considerações acabadas de fazer precisam de ser ponderadas à luz da real eficácia do dispositivo legal em apreciação. O mesmo é dizer, há que averiguar se o artigo 871º do CPC se 'limita' a estabelecer – ainda que indirectamente – um novo prazo para a reclamação dos créditos do credor que beneficia de penhora com registo posterior – ou se, na interpretação dada no acórdão recorrido, ao invés, afecta a natureza (ou as garantias) do crédito em si. Ora, o artigo 871º do CPC impõe a sustação da execução nos casos em que, efectuada a penhora ordenada nessa execução, se verificar a existência de penhora(s) anterior(es) à ordenada/efectuada nessa execução, abrindo-se prazo para o credor reclamar o crédito na execução onde a penhora foi registada com anterioridade. Mas refira-se que a natureza do crédito, ou melhor, a garantia do crédito decorrente da penhora, mantém-se, em nada a afectando o regime previsto no artigo 871º do CPC. Aliás, essa garantia da penhora é determinante quer, no novo prazo para reclamação de créditos que é facultado ao credor, quer na preferência a efectuar em sede de graduação de créditos. Não pode dizer-se que, por força do mecanismo legal previsto no normativo em apreço, a posição do credor saia prejudicada ou seja para ele mais difícil a cobrança do seu crédito, tanto mais que a dívida não é estática, procedendo-se à contagem dos respectivos juros, que obviamente revertem a favor do credor. Por outro lado, o credor pode sempre impulsionar a execução sustada ao abrigo do artigo 871º do CPC nomeando à penhora outros bens do devedor, se os houver, podendo, igualmente, acordar com o devedor o pagamento da dívida exequenda em prestações, nos termos do artigo 882º do Código de Processo Civil, forma de pagamento inovadora instituída pelo Código de Processo Civil aprovado pelo Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12.12 e pelo Decreto-Lei nº. 180/96, de 25.09. Não resulta do regime previsto no citado artigo 871º do Código de Processo Civil nenhuma diminuição (afectação) da garantia do direito do credor à satisfação do seu crédito, garantia constitucional que é abrangida pelo direito de propriedade previsto no artigo 62º da Lei Fundamental. Poder-se-á, todavia, questionar se o sacrifício exigido ao credor que viu a execução sustada por força do mecanismo legal previsto no artigo 871º do Código de Processo Civil é ou não excessivo, violando-se o princípio da proporcionalidade, nos casos de a penhora anterior ser uma penhora ordenada e efectuada em execução fiscal. Pelo já exposto, nomeadamente no que tange à imutabilidade da natureza e da garantia do crédito por intervenção do artigo 871º do Código de Processo Civil, entendemos que tal sacrifício não é excessivo, já que estão previstos mecanismos processuais para o credor impulsionar a execução e obter a mais célere satisfação do seu crédito, mas ainda porque há que não esquecer que a tramitação própria para cobrança das dívidas ao Estado, com dilatados prazos que possibilitam o pagamento em prestações, tem em conta os relevantes interesses públicos em jogo, não se podendo 'estranhar' que o legislador tutele mais fortemente os direitos do Estado. Como Casalta Nabais refere in Contratos Fiscais/Reflexões acerca da sua admissibilidade, Coimbra, 1994, pág. 278, o processo executivo tributário que permite obter uma cobrança fácil e oportuna dos créditos do Estado intenta assegurar o interesse público, no caso o interesse fiscal, 'vital para a colectividade, já que só a sua satisfação torna possível o regular funcionamento dos serviços públicos'. Essencialmente preservada a garantia do crédito, não pode dizer-se que as vicissitudes da execução fiscal – a que o exequente comum se sujeita – sejam de tal forma gravosas que, num quadro de necessária ponderação do interesse público em jogo naquela execução, afectem de forma desproporcionada tal garantia. Não é por força do disposto no nº. 1 do artigo 871º do Código de Processo Civil
(ainda que conjugado com as normas constantes v.g. dos artigos 317º; 321º; 329º e ss; 279º e ss. do Código de Processo Tributário) que o credor fica impossibilitado de conseguir a satisfação do crédito, ou que essa satisfação se torna desproporcionadamente mais difícil ou onerosa, tanto mais, como já se disse, existindo mecanismos processuais ao dispor do credor e dependentes do seu exclusivo impulso para obter, por outras vias, o pretendido ressarcimento.
Em nada fica impedido o funcionamento do concurso e graduação dos credores, assegurando-se ao credor formas/mecanismos processuais adequados que respeitem o núcleo essencial do direito de propriedade. Razão por que o artigo 871º, nº. 1 do Código de Processo Civil, na interpretação dada pelo acórdão recorrido, não viola os artigos 62º, nº. 1 da Constituição, e
18º nº 2 da CRP.
3. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 Ucs. Lisboa, 19 de Janeiro de 1999- Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa