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Processo nº 538/98ACÓRDÃO Nº 588/98 Processo nº 538/98
2ª Secção Relator Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A Companhia de Seguros M...,SA, veio apresentar neste Tribunal Constitucional reclamação, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
'do despacho do Exmº Senhor Desembargador Relator, (...) que indeferiu o seu requerimento de admissão de recurso para o Tribunal Constitucional, interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do artº 70º da Lei do Tribunal Constitucional', invocando a seguinte fundamentação, de que se transcreve o que aqui pode interessar:
'1. No presente processo de embargos de executado, interpostos pela ora reclamante, o meritíssimo Juiz da 1ª instância, em despacho saneador, decidiu a procedência dos mesmos, julgando materialmente inconstitucionais os artºs 2.º n.º 2 alínea a) e 4.º do DL 194/92 (também conhecido por regime de cobrança das dívidas às instituições hospitalares), por violação do disposto no art.º 205.º n.º I da C.R.P.
2.Interposto recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, foi decido por este Alto Tribunal, em processo de fiscalização concreta, conceder provimento ao referido recurso, não julgando inconstitucionais as normas cuja aplicação foi recusada pela decisão então recorrida (cfr. Acórdão de fls. 36). O Acórdão, no que toca à fundamentação, remeteu para os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 760/95 e 761/95, ambos de 20.12.95 (publicados no D.R., II.' série, n.' 28 de 02.02.96), e n.o 118/96.
3.Regressado o processo à 1ª instância, o Meritíssimo Juiz, novamente em despacho saneador, voltou a julgar procedentes os embargos com fundamento na falta de alegação, por parte do embargado (e ora reclamado), dos factos constitutivos do seu direito. Segundo a doutrina deste despacho saneador, a alegação, em embargos de executado, pela embargante, da inexistência de uma obrigação de indemnizar a seu cargo, veio lançar o ónus da prova da verificação desses pressupostos sobre o exequente, face ao disposto no art.º 342.º n.oº1 do Código Civil.
4.Interposto recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora, este Venerando Tribunal veio a decidir pela procedência do recurso e consequente revogação do saneador sentença apelado. O fundamento que sustenta esta decisão é o de que os citados artºs 2.o n.o 2 alínea a) e 4.' do DL 194/92, ao atribuírem força executiva às certidões de dívidas hospitalares, fazem consequentemente recaír sobre o embargante/executado, em sede de embargos, o ónus de alegar e provar os factos que o exoneram da responsabilidade de pagamento dessas dívidas.
5. Inconformada com este aresto, e subscrevendo um entendimento que ganha força nos nossos tribunais superiores (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 10.IO.95, CJ, 1995, IV, págs. 215 e segs. e Acórdão da Relação de Lisboa, de 02.05.96, CJ,
1996, III, págs. 82 e segs.), veio a ora reclamante dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, alegando que, com a interpretação que deles se fez no referido acórdão, os artºs 2.º n.º2 alínea a) e 4.º do DL 194/92, então sim, violariam claramente, quer o art.º 205.º, quer o artº 2º da C. R. P.
6. O Tribunal a quo indeferiu o respectivo requerimento de recurso, sustentando que 'a conformidade constitucional dos artºs 2.º n.º 2 alínea a) e 4º do DL
194/92 de 8 de Setembro já foi definitivamente resolvida nestes autos pelo Acórdão do Tribunal Constitucional de fls. 36'.
7. Carece, porém, de fundamento legal a douta decisão recorrida.
(...)
9. Ora, no entendimento da recorrente, a interpretação, conforme à Constituição, das aludidas normas ordinárias é aquela que (como a recorrente procurará demonstrar em sede própria, i.é. nas alegações de recurso) considera que os referidos preceitos se limitam a conferir às certidões de dívida hospitalar uma força probatória de 'mera aparência' (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 10.
10. 95, CJ, 1995, IV, págs. 215 e segs. e Acórdão da Relação de Lisboa, de
02.05.96, CJ, 1996,III, págs. 82 e segs.). E, em termos práticos, essa força probatória de mera aparência, uma vez deduzidos embargos, 'importa que as regras sobre a repartição do ónus da prova funcionem de modo igual a uma acção declarativa.
10. Mais, foi partindo precisamente desta interpretação que o Tribunal Constitucional, nos citados arestos (remetidos pelo Acórdão de fls. 36), acabou por se decidir pela conformidade dos preceitos relativamente à Lei Fundamental:
(...)
11. Ora, no caso do Tribunal Constitucional ter recorrido, em sede de fiscalização concreta, a uma interpretação conforme à Constituição, tal interpretação vincula o tribunal recorrido e os demais tribunais que vierem a julgar a causa ( ver, neste sentido, J. J. GOMES CANOTILHO/ VITAL MOREIRA
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, pág. 998 ). Assim, se o Tribunal a quo não seguiu a interpretação que o Tribunal Constitucional apreciou no Acórdão de fls. 36 (que remete para os referidos Acs. TC nºs 760/95 e 761/95) e a que estava vinculado, adoptou uma interpretação inconstitucional das aludidas normas do ‘regime de cobrança das dívidas às instituições hospitalares’.
12. Aliás, se, ao invés, se entendesse que os referidos Acórdãos do Tribunal Constitucional não apreciaram a questão segundo este quadro interpretativo, então, forçosamente, teria de se concluir que os referidos Acórdãos do Tribunal Constitucional também não sufragaram a constitucionalidade da interpretação levada a cabo pela decisão recorrida. Sendo também certo que, nessa hipótese, a conformidade constitucional da particular interpretação do Tribunal a quo- cuja aplicação, aliás, a ora reclamante não poderia razoavelmente contar em momento anterior às alegações que acompanharam o recurso de apelação- seria uma questão nova (não resolvida pelo Acórdão de fls. 36) porquanto o Tribunal ad quem apreciaria um novo quadro.
13. Em conclusão, o recurso deveria ter sido admitido dado que a decisão recorrida não adoptou a interpretação aos artºs 2.º n.º 2 alínea a) e 4.ºdo DL
194/92 de 8 de Setembro a que estava vinculada pelo Acórdão de fls. 36, ou, a assim não se entender, porque aplicou tais receitas num sentido não fiscalizado pelo aludido aresto'.
2. Foi notificado o ora recorrido Hospital Distrital de Abrantes, mas nada disse.
3. No seu visto, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que 'a presente reclamação deveria ser julgada improcedente' alinhando os seguintes argumentos:
'Está definitivamente decidido nos presentes autos que as normas questionadas, enquanto criam um título executivo extrajudicial, ao atribuírem força executiva
às certidões de dívidas hospitalares, não violam qualquer preceito ou princípio constitucional. A questão que o reclamante agora veio suscitar é diversa e autónoma daquela, e prende-se com a repartição do ónus da prova nos embargos deduzidos à execução fundada naquele título executivo – sendo evidente que tal questão não foi nem tinha de ser abordada no âmbito do recurso de fiscalização concreta já julgado – interposto do despacho que julgou os embargos liminarmente improcedentes, com fundamento na inexistência de título executivo. Ora, nas contra-alegações apresentadas no recurso interposto para a Relação de
Évora – que tinha precisamente como objecto a controvérsia acerca da repartição do ónus da prova entre embargante e embargado – a ora reclamante não suscitou, de forma perceptível e adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, reportada à interpretação e aplicação das normas em que se funda a dita repartição do ónus da prova entre as partes nos embargos de executado – limitando-se (conclusão D) a remeter para o decidido nos acórdãos 760/95 e
761/95. Nestes termos – e por não se verificarem os pressupostos do tipo de recurso de constitucionalidade interposto, fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 – somos de parecer que a presente reclamação deverá ser julgada improcedente'
4. Vistos os autos, cumpre decidir. A transcrição propositadamente feita do requerimento de reclamação evidencia a sequência processual dos presentes autos de embargo de executado, em que é embargante a Companhia de Seguros ora reclamante, nos quais ela saiu vencedora nas decisões da primeira instância e só o acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Évora, de 11 de Dezembro de 1997, inverteu o sentido daquelas decisões, mandando 'o processo prosseguir os seus regulares termos', na base de que, por aplicação 'das regras do artº 343º do Cód. Civil', 'e perante a força executiva de que à partida o título se reveste, caso o executado/embargante não alegue e prove que o seu segurado não foi responsável pelo acidente, os embargos terão de improceder e a execução instaurada deverá prosseguir'. Ora, foi exactamente nesse campo da temática do ónus da prova que se posicionou o Hospital Distrital de Abrantes no recurso de apelação interposto perante o Tribunal da Relação de Évora, sustentando nas respectivas alegações, e no essencial, que o 'ónus da prova compete ao Embargante', mas a Companhia de Seguros reclamante, oferecendo contra-alegações, não suscitou neles nenhuma questão de inconstitucionalidade reportada a tal matéria, limitando-se a defender que incumbe 'sempre ao hospital embargado o ónus de alegar os factos constitutivos do seu direito' e a aludir à 'decisão do Tribunal Constitucional em declarar conforme a Constituição o diploma que confere força executiva às certidões de dívida hospitalar (cfr. Ac nº 760/95 do Tribunal Constitucional de
20.12.95, in DR II série, nº 28 de 02.02.96 e Ac 761/95, do mesmo Tribunal, também de 20.12.95, ibidem)' (conclusão D) dessa peça processual). Seria aí o momento apropriado para a suscitação de qualquer questão de inconstitucionalidade por banda da Companhia de Seguros reclamante, para provocar a pronuncia do tribunal de relação. Só que não o fez e a identificação da jurisprudência do Tribunal Constitucional, a propósito do 'diploma que confere força executiva às certidões de dívida hospitalar' (deve com isso querer referir-se aos artigos 2º, nº 2, a), e 4º, do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro), nem sequer pode aproveitar-lhe, até porque, além do mais (isto é, independentemente da questão a apurar se a temática do ónus da prova foi objecto de apreciação nos citados acórdãos), tal jurisprudência vai no sentido da conformidade à Constituição daquelas normas, não podendo daí retirar-se nenhuma arguição relevante de inconstitucionalidade normativa. Faltando no tipo de recurso de constitucionalidade em causa esse pressuposto processual, talqualmente regista o Ministério Público, no seu Parecer, o recurso não podia ser admitido, como não foi, no despacho reclamado, que, por isso, tem de manter-se, embora por fundamento distinto.
5. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e condena-se a reclamante nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 20 de Outubro de 1998 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa