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Proc. nº 346/98
1ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
1. J... foi condenado no 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, por sentença de 14 de Janeiro de 1998, na pena de três meses de prisão, pela prática de um crime de furto previsto e punido pelo artigo 201º, nº 1, alínea d), do Código de Justiça Militar.
Dessa decisão recorreu para o Supremo Tribunal Militar, tendo formulado as seguintes conclusões:
1 – O Tribunal a quo não fez a aplicação subsidiária do disposto no Código Penal, nomeadamente quanto às atenuantes e quanto à própria pena a aplicar, pelo que violou o art. 5º do Código de Justiça Militar;
2 – A decisão do Tribunal a quo violou o art. 215º.1 da Constituição, fez interpretação errada dos arts. 1º.2 e do art. 201º, ambos do CJM, sendo que este último artigo é inconstitucional por tipificar como crime essencialmente militar o furto de 'quaisquer objectos (...) pertencentes a militares', o que é violador não só do referido artigo constitucional, como ainda do art. 213º do mesmo diploma, pois usurpou as competências dos tribunais comuns;
3 – O Tribunal a quo violou os arts. 205º e 213º da Constituição da República Portuguesa, ao usurpar as atribuições e violar a separação de competências jurisdicionais.
4 – O art. 202º e 5º do CJM são inconstitucionais, por chocarem directamente com o estabelecido na Constituição, relativamente ao tratamento mais favorável a dar a um arguido, no seu art. 29º 1.
5 – Finalmente, o art. 201º, 1, d) viola o Princípio da Igualdade – art. 13º da CRP – e o Princípio da Proporcionalidade – art. 18º 2 e 3 da C.R.P.
– pois tal situação além de não ser justa, não é equitativa e proporcionada, proporcionando que o arguido seja alvo de tratamento injustificadamente discriminatório.
No seu parecer, o Ministério Público entendeu que o recurso não merecia atendimento, não se verificando as apontadas inconstitucionalidades, apoiando-se para o efeito, nomeadamente, no Acórdão nº 271/97, do Tribunal Constitucional, relativamente à definição de crimes essencialmente militares.
2. Por acórdão de 12 de Março de 1998, o Supremo Tribunal Militar negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida.
No tocante à questão de inconstitucionalidade do artigo 201º, nº 1, alínea d), do CJM, entendeu-se nesse aresto:
Aos tribunais militares compete, segundo o disposto no artº 215º, nº
1 da C.R.P. (versão de 1982 transitoriamente ainda em vigor) o julgamento dos crimes essencialmente militares, crimes estes que, de harmonia com o artº 1º, nº
2 do Código de Justiça Militar, são os factos que violem algum dever militar ou ofendam a segurança e a disciplina da Forças Armadas, bem como os interesses militares da Defesa Nacional, e que como tal sejam qualificados pela lei militar.
[...]
É, pois, para garantir a existência das Forças Armadas e da missão que constitucionalmente lhes é atribuída, que existem os bens jurídicos militares preservadores dos valores que as enformam: a hierarquia, a coesão, a missão e a segurança.
A violação daqueles bens jurídicos ou destes valores integra um ilícito que pode ser disciplinar ou criminal consoante a sua gravidade e a extensão da ofensa.
É evidente que os crimes essencialmente militares não são todos exclusivos do direito penal militar. Em muitos casos existem semelhanças entre o delito militar e o crime comum, com elementos constitutivos iguais.
Simplesmente, aquele ofende os bens jurídicos que protegem a instituição castrense e este fere a Sociedade no seu todo. Assemelham-se, mas não são iguais.
O furto, subtracção ilícita de coisa alheia é um crime previsto pelo Código Penal.
Porém, quando a subtracção for feita por pessoa integrada ou ao serviço das Forças Armadas ou militares, e a coisa furtada pertencer a estas ou a militares, configura-se um crime essencialmente militar.
Na verdade, nesta hipótese em que o lesado é a instituição militar ou
é um militar, são directamente violados os deveres militares de lealdade, fidelidade e camaradagem, violação atentatória dos valores da coesão e da segurança. Atinge-se, por esta forma, directa e primacialmente a disciplina e a segurança das Forças Armadas e os bens jurídicos que as tutelam.
E, consequentemente, aí se concluiu que «o foro militar é o competente para apreciar e julgar a conduta imputada, na acusação, ao recorrente».
Por outro lado, afastou-se a pretendida aplicação de lei mais favorável – a jurisdição penal comum, e que, no entender do recorrente, decorreria forçosamente do disposto no artigo 29º, nº 4, da Constituição, bem como do artigo 5º do CJM -, nos termos seguintes:
Efectivamente, estas normas dispõem sobre a aplicação das leis penais no tempo e mandam que ao caso concreto se aplique a lei mais favorável ao arguido, de entre as que, sucedendo no tempo, incidem no caso sub judicio.
Ora, in casu não existe sucessão de leis, mas sim concorrência de leis vigentes ambas no momento da prática do crime, sendo que a aplicável é obviamente a prevista no C.J.M. dado se tratar de um delito essencialmente militar julgado no foro castrense.
Por fim, quanto à suscitada desproporcionalidade entre as penas previstas na alínea d), do nº 1, do artigo 201º do CJM e as penas previstas na jurisdição comum para o crime de furto, afastou também aquele Supremo Tribunal tal fundamento.
3. É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, «ao abrigo da alínea b) do Art. 70º da Lei 28/82», para apreciação da constitucionalidade das normas constantes dos «arts. 5º, 201º 1 e
2, 202 todos do Código de Justiça Militar».
Já neste Tribunal, e admitido o recurso, o recorrente formulou as seguintes conclusões às suas alegações:
1 – O Tribunal a quo não fez a aplicação subsidiária do disposto no Código Penal, nomeadamente quanto às atenuantes e quanto à própria pena a aplicar, pelo que violou o art. 5º do Código de Justiça Militar;
2 – A decisão do Tribunal a quo violou o art. 215º.1 da Constituição, fez interpretação errada dos arts. 1º. 2 e do art. 201º, ambos do CJM, sendo que este último artigo é inconstitucional por tipificar como crime essencialmente militar o furto de 'quaisquer objectos (...) pertencentes a militares', o que é violador não só do referido artigo constitucional, como ainda do art. 213º do mesmo diploma, pois usurpou as competências dos tribunais comuns;
3 – O Tribunal a quo violou os arts. 205º e 213º da Constituição da República Portuguesa, ao usurpar as atribuições e violar a separação de competências jurisdicionais.
4 – O art. 202º e 5º do CJM são inconstitucionais, por chocarem directamente com o estabelecido na Constituição, relativamente ao tratamento mais favorável a dar a um arguido, no seu art. 29º 4.
5 – Finalmente, o art. 201º, 1, d) viola o Princípio da Igualdade – art. 13º da CRP – e o Princípio da Proporcionalidade – art. 18º 2 e 3 da C.R.P.
– pois tal situação além de não ser justa, não é equitativa e proporcionada, proporcionando que o arguido seja alvo de tratamento injustificadamente discriminatório.
Por sua vez, o Ministério Público, nas respectivas alegações, após delimitar o âmbito do recurso, entendeu que «a única questão de constitucionalidade que importará analisar consiste em verificar se a norma que prevê e pune o crime de furto militar – a do artigo 201º, nº 1, alínea d) do Código de Justiça Militar, única efectivamente aplicada na decisão recorrida», revertendo a sua inconstitucionalidade a «uma dupla perspectiva jurídico-constitucional»: o enquanto tipifica como crime essencialmente militar o furto cometido por militar, em certas circunstâncias; o enquanto sanciona o cometimento de tal crime com determinada pena privativa de liberdade, importando verificar se a punição não será desproporcionada relativamente à punição do crime de furto comum correspondente.
E formulou as seguintes conclusões:
1º
Pode qualificar-se como sendo essencialmente militar o crime de furto, cometido por um militar em detrimento de outro, dentro das instalações militares e em grosseira violação do especial dever de lealdade e respeito entre militares, com quebra da relação de confiança que tem necessariamente de existir entre quem está ao serviço das Forças Armadas, numa mesma unidade.
2º
Nestas circunstâncias, o cometimento do crime de furto – para além de traduzir violação do direito de propriedade – implica lesão de bens jurídicos próprios da comunidade militar, abalando a coesão e disciplina das Forças Armadas, valores essenciais à realização das tarefas de defesa nacional que lhes estão cometidas.
3º
A norma incriminadora do furto militar, ao sancionar tal crime sempre e necessariamente com pena privativa de liberdade (inclusive nos casos em que o arguido já não está ao serviço efectivo das Forças Armadas) -–ao passo que a norma correspondente do direito penal comum autoriza, segundo as circunstâncias, o julgador a sancionar o furto com prisão ou multa – viola os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
4º
Na verdade, a imposição necessária ao arguido de uma pena privativa de liberdade, em quaisquer circunstâncias, não pode justificar-se em função da tutela dos valores típicos da comunidade militar, traduzindo solução legislativa arbitrária e discricionária.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
4. Importa, antes de mais, delimitar o âmbito do presente recurso.
O recorrente suscitou as seguintes questões de inconstitucionalidade: o das normas constantes dos artigos 5º e 202º do CJM, por violação do disposto no artigo 29º, nº 4, da Constituição, na medida em que não permitiram a aplicação ao recorrente do regime penal comum; o da norma constante do artigo 201º, nºs 1 e 2, do CJM, na medida em que tipifica como crime essencialmente militar o crime de furto «de quaisquer objectos (...) pertencentes a militares», por violação dos artigos 213º e 215º, nº 1, da Constituição (versão de 1989); o da norma constante do artigo 201º, nº 1, alínea d), do CJM, na medida em que a pena nela prevista para a prática do crime de furto constitui um tratamento discriminatório e desproporcionado face ao regime penal comum, assim violando os artigos 13º e 18º da Constituição.
Nas suas alegações, o recorrente considera ainda que «o Tribunal a quo (...) violou o art. 5º do Código de Justiça Militar», bem como «os arts.
205º e 213º da Constituição (...), ao usurpar as atribuições e violar a separação de competências jurisdicionais».
Ora, quanto a estas duas últimas questões, é manifesto que não se pode conhecer das mesmas, desde logo porque se não configura aí qualquer questão de inconstitucionalidade de normas, limitando-se o recorrente a reportar a eventual inconstitucionalidade à própria decisão recorrida, e não identificando a norma que reputa de inconstitucional. De resto, o objecto do recurso é definido pelo recorrente no respectivo requerimento de interposição, não podendo depois alargá-lo nas alegações (veja-se, nomeadamente, o Acórdão nº 379/96, Diário da República, 2ª Série, de 15 de Julho de 1996).
5. Quanto à primeira questão suscitada – da contradição dos artigo
5º e 202º do CJM com o artigo 29º, nº 4, da CRP -, é manifesto que a mesma não pode proceder.
Com efeito, o que aquela norma constitucional determina é a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido, visando assim a questão da aplicação da lei penal no tempo. Ora, a questão suscitada nos autos pelo recorrente é a da «sobreposição» ou concorrência entre o direito penal comum e um direito penal especial, não se vislumbrando assim qualquer problema relacionado, directa ou reflexamente, com o âmbito de aplicação daquele preceito constitucional.
6. Quanto à segunda questão, ou seja, a alegada violação dos artigos
213º e 215º, nº 1, da Constituição (versão de 1989) pelos nºs 1 e 2 do artigo
201º do CJM, o que o recorrente questiona, afinal, é a qualificação legal como crime essencialmente militar do furto «de quaisquer objectos (...) pertencentes a militares», entendendo que, in casu, se verificou um crime que deveria ser, de acordo com a Constituição, submetido ao julgamento dos tribunais comuns e não à jurisdição militar.
Pois bem, também aqui se impõe uma delimitação: é que o recurso de constitucionalidade só pode ter por objecto normas que hajam sido concretamente aplicadas pela decisão recorrida, e, nos autos, apenas se fez aplicação efectiva da alínea d) do nº 1 do artigo 201º do CJM, e já não do seu nº 2.
Com efeito, este número determina a aplicação das penas estabelecidas na lei penal comum para o roubo ou furto qualificado, no caso de concorrerem «circunstâncias que, nos termos da lei geral, caracterizem a subtracção como» um desses crimes, o que, in casu, não se verificou; por sua vez, as restantes alíneas do nº 1 distinguem as diferentes medidas da pena a aplicar, consoante o valor do furto em causa. Ora, nos presentes autos, apenas foi aplicada a identificada alínea d), pelo que só esta norma está em causa. E está-o na medida em que prevê e pune a «subtracção fraudulenta» de um objecto particular, no valor de 10.000$00, pertença de um militar, e praticada por um militar.
A norma ora em apreço tem a seguinte redacção:
1. Aquele que, integrado ou ao serviço das forças armadas, fraudulentamente subtrair dinheiro, documentos ou quaisquer objectos pertencentes ou afectos ao serviços das mesmas, ou pertencentes a militares, será condenado:
(...) d) A presídio militar de seis meses a dois anos, se, não excedendo 40.000$00, for superior a 8.000$00;
7. Assinale-se que, como aliás resulta claramente do teor das alegações do recorrente, se há-de Ter aqui em conta a redacção dos artigos 213º e 215º da CRP na versão anterior à resultante da Lei Constitucional nº 1/97. Com efeito, o artigo 197º desta Lei Constitucional determina que se mantenham transitoriamente em vigor os «tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes» até que seja elaborada a legislação destinada a regulamentar o nº 3 do artigo 211º da Lei Fundamental (versão actual), o que implica necessariamente que a questão de constitucionalidade haja de ser resolvida face
à anterior versão da Constituição.
O artigo 215º, nº 1, da CRP (versão de 1989) atribui aos tribunais militares a competência para o julgamento dos crimes essencialmente militares. A Constituição de 1976, ao consagrar os tribunais militares no seu artigo 218º, rompeu, todavia, com tradicional foro pessoal dos militares, passando a adoptar apenas uma perspectiva de foro material, visando especificamente certo tipo de crimes. Perspectiva esta que seria assim consagrada também no Código de Justiça Militar, que veio a ser publicado em 1977.
Com efeito, desde o Código de Justiça Militar de 1875 que se aceitara entre nós a jurisdição dos tribunais militares sobre todos os militares em função apenas dessa sua qualidade, independentemente da natureza da infracção cometida. E esse foro pessoal manteve-se com o Código de Justiça Militar aprovado pelo Decreto nº 11292, de 26 de Novembro de 1925. Dispunha este, no seu artigo 1º: O presente Código prevê:
1º Os factos que constituem crimes essencialmente militares, por violarem algum dever militar ou por ofenderem a segurança e a disciplina do exército ou da Armada;
2º Os factos que, em razão da qualidade militar dos delinquentes, do lugar ou de outras circunstâncias, tomam o carácter de crimes militares.
§ único. São considerados crimes essencialmente militares, os previstos no Capítulo I do Título II deste Livro.
Contudo, no seu capítulo III, sob a epígrafe «Competência dos tribunais militares territoriais e do tribunal militar de marinha», reconhecia-se a competência genérica dos mesmos «para conhecer dos crimes de qualquer natureza, (...) cometidos por militares ou outras pessoas ao serviço do exército ou da armada» - artigo 363º do mesmo Código -, especificando nos artigos seguintes tal competência, ainda completada por diversa legislação avulsa.
Assim, na vigência daqueles Códigos de 1875 e de 1925, reconhecia-se a existência de dois tipos de crimes militares, ambos cometidos à competência daquela jurisdição especializada: os crimes essencialmente militares, previstos no nº 1 do transcrito artigo 1º, ou seja, as infracções de algum dever militar ou ofensivos da segurança e da disciplina do Exército ou da Armada; e os crimes acidentalmente militares, integrando as infracções previstas no nº 2 da mesma disposição, ou seja, qualificadas como tal em virtude da qualidade militar do agente, do local ou de outras circunstâncias. E, além destes, estavam ainda sujeitos à jurisdição militar os crimes de qualquer natureza, desde que cometidos por militares, nos termos dos artigos 363º a 367º, assim se consagrando o foro pessoal da jurisdição castrense.
Por sua vez, o CJM aprovado pelo Decreto-Lei nº 141/77, de 9 de Abril, passou a dispor, no seu artigo 1º:
1 – O presente Código aplica-se aos crimes essencialmente militares.
2 – Consideram-se crimes essencialmente militares os factos que violem algum dever militar ou ofendam a segurança e a disciplina das forças armadas, bem como os interesses militares da defesa nacional, e que como tal sejam qualificados pela lei militar.
Assim, este Código de 1977 (ainda transitoriamente em vigor, nos termos do disposto no referido artigo 197º da Lei Constitucional nº 1/97), na esteira das opções constitucionais de 1976, eliminou o referido foro pessoal, bem como a referência aos crimes acidentalmente militares.
Todavia, em boa verdade, estes não desapareceram, pois passaram, na sua generalidade, a estar incluídos nos crimes essencialmente militares. Com efeito, embora utilizando-o, o CJM não se limitou a transpor aquele conceito pré-constitucional, nem efectuou uma simples correspondência com o anterior Código. Antes operou uma modificação substancial, ao passar a incluir nesta noção de crime essencialmente militar a generalidade dos crimes anteriormente qualificados como crimes acidentalmente militares, e, ainda, passando a aí incluir outros crimes que, anteriormente, só por via da competência do foro pessoal eram sujeitos a essa jurisdição.
8. Importa, assim, efectuar a delimitação do conceito de crime essencialmente militar, para então apurar se a subtracção de objectos particulares, mas pertencentes a um militar, quando efectuada por um outro militar, se enquadra nesse conceito.
A Constituição não define aquele conceito de crimes essencialmente militares. Estando-se perante um conceito pré-constitucional, imbuído de uma concreta determinação, embora se reconheça que o legislador ordinário não ficou obrigado a só considerar como crimes essencialmente militares aqueles que já como tal eram expressamente qualificados pelo Código de 1925, a verdade é que se há-de entender que lhe não era lícito proceder a uma alteração radical do conceito.
O Tribunal Constitucional tem abordado esta questão de determinação do conceito de crime essencialmente militar, salientando-se os Acórdãos nº
347/86 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º volume, págs. 535 e segs.), nº 449/89 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º volume, Tomo II, págs. 1297 e segs.), nº 679/94 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º volume, págs. 365 e segs.), nº 680/94 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º volume, págs. 379 e segs.), e, mais recentemente, nº 271/97 (publicado em Diário da República, I série A, de 15 de Maio de 1997).
Assim, entendeu-se no Acórdão nº 347/86:
O que, na definição dos crimes essencialmente militares, o legislador não poderá fazer é definir como tais crimes comuns cujo único elemento de conexão com a instituição militar seja a qualidade de militar do seu agente ou qualquer outro elemento acessório (como, por exemplo, o lugar da sua prática), pois que isso seria consagrar o foro pessoal. E, isso, manifestamente, é que o texto constitucional quis proscrever.
Por sua vez, escreveu-se no Acórdão nº 271/97:
Seja como for, é consensual a ideia de que o punctum saliens dos
«crimes essencialmente militares» se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser, naturalmente, bens jurídicos militares. Como sublinha J. Figueiredo Dias, «tal como sucede com o direito penal comum, também o direito penal militar substantivo, para passar a prova de fogo da sua legitimação democrática, tem de ser um direito exclusivamente orientado por e para o bem jurídico», pelo que «o direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão» (cf. «Justiça militar», in Colóquio Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional, edição da Assembleia da República, 1995, pp. 25 e 26).
9. Assim, in casu, haveria que encontrar um interesse militar específico protegido pela incriminação em causa, que transcenda a mera tutela indirecta e mediata da disciplina das Forças Armadas, a qual, no fundo, sempre se encontrará ainda naqueles casos em que a conexão com esse interesse reside apenas na qualidade do agente ou em outros elementos acessórios. Como se escreveu na declaração de voto do ora relator ao citado Acórdão nº 347/86:
(...) tal implica que não possam ser considerados crimes essencialmente militares aquelas condutas cuja única especificidade relativamente aos crimes comuns consista no facto de se conexionarem, de qualquer forma, com a segurança ou a disciplina das Forças Armadas.
É que, para que uma conduta possa ser qualificada como crime essencialmente militar, e não apenas acidentalmente militar, é necessário algo mais que a referida conexão; é necessário que haja uma ligação estruturalmente indissolúvel entre a razão de ser da punição do acto ilícito e interesses fundamentais da instituição militar ou da defesa nacional.
Se assim não fosse, quase sempre a simples qualidade militar, ou o mero facto de a conduta ter sido praticada num espaço afecto à instituição militar, conduziriam à possibilidade de a lei vir a qualificar qualquer crime comum como essencialmente militar. Com efeito, raras vezes não estaríamos também, em tais casos, perante a violação de um dever militar ou difícil seria, pelo menos, não descortinar, aí, a existência de uma conexão com a segurança ou a disciplina militares.
10. Ora, a norma em causa considera como crimes essencialmente militares condutas como aquela a que se reportam os presentes autos, em que se subtraiu um auto-rádio, que se encontrava instalado num veículo particular – ou seja, um veículo que, embora pertencente a um militar, não se tratava de um veículo militar, nem afecto às Forças Armadas. Não se descortina, pois, aqui mais do que uma mera ligação indirecta ou remota à instituição militar, derivada apenas da qualidade do agente e do ofendido: não foram afectados quaisquer bens militares ou pertencentes à administração militar, pelo que não se descortina assim qualquer conexão específica à instituição militar. A qualidade militar do autor da infracção ou do proprietário do bem subtraído surgem, pois, como simples elementos acidentais do crime. III – DECISÃO
11. Nestes termos, decide-se:
a) julgar inconstitucional a norma constante do artigo 201º, nº 1, alínea d), do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei nº 141/77, de
9 de Abril, enquanto nela se qualifica como essencialmente militar o crime de furto de objectos pertencentes a militares, quando praticados por outros militares, por violação dos artigos 213º e 215º da Constituição da República Portuguesa (versão de 1989);
b) conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida no tocante ao nela decidido quanto à questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 19 de Janeiro de 1999 Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa