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Processo n.º 193/98 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, da sentença do Juiz da comarca de Coruche, de 17 de Dezembro de 1997, para apreciação da legalidade das normas do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, e do artigo
21º do Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto, a que a sentença recusou aplicação, argumentando que violam a Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, que teve por lei de valor reforçado. Neste Tribunal, alegou o Procurador-Geral Adjunto aqui em exercício, que formulou as seguintes conclusões:
1º - A Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, deve ser qualificada como lei de valor reforçado relativamente aos diplomas de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos nela contidos.
2º - Tais diplomas (Decretos-Leis nºs 251/92 e 136/96) acrescentaram às espécies incluídas na lista anexa os animais domésticos ou domesticados que perderam a condição, deste modo alargando o âmbito de ?fauna cinegética?, constante da Lei nº 30/86, pelo que padecem de vício de ilegalidade. Termos em que deverá confirmar-se o juízo de ilegalidade constante da decisão recorrida. Os recorridos J. C. e A. N. - que o juiz a quo absolveu das infracções por que haviam sido acusados pelo MINISTÉRIO PÚBLICO [a saber: um crime de caça com instrumento proibido (previsto e punível pelos artigos 30º, n.º 7, da Lei n.º
30/86, de 27 de Agosto, e 47º do Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro), um crime de caça em local proibido (previsto e punível pelos artigos 30º, n.º 10, da mesma Lei n.º 30/86, e 27º, alínea e), do referido Decreto-Lei n.º 291/92) e ainda contraordenações de caça (violação do artigo 20º do mencionado Decreto-Lei n.º 291/92 e dos artigos 6º e 9º da dita Lei n.º 30/86), cometidos, em co-autoria material, por ambos os arguidos; e um crime de caça sem carta de caçador (previsto e punível pelo artigo 30º, n.º 1, da citada Lei n.º 30/86), praticado só pelo segundo arguido)] -, não alegaram.
2. Corridos os vistos, cumpre decidir. II. Fundamentos:
3. A norma sub iudicio: A Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, contém a lei da caça. Consta de 50 artigos distribuídos por X capítulos. O capítulo I compreende os artigos 1º a 5º e contém os princípios gerais . O capítulo II (artigos 6º a 12º) regula o exercício da caça. O capítulo III (artigos 13º a18º) refere-se aos locais, períodos e processos de caça. O capítulo IV trata dos períodos cinegéticos e abarca os artigos 19º a 28º. O capítulo V tem um único artigo - o artigo 29º, que é relativo à criação de caça em cativeiro. O capítulo VI é integrado pelo artigo 30º, que respeita aos campos de treino. O capítulo VII compreende os artigos 31º a 33º e trata da responsabilidade criminal, contra-ordenacional e civil. O capítulo VIII regula a administração e fiscalização da caça, nos artigos 34º a 39º. O capítulo IX (artigos 40º a 42º) contém os princípios da organização venatória. Finalmente, o capítulo X abarca os artigos 43º a 50º e contém as disposições finais e transitórias. A Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, contém ?as bases para a protecção, conservação e fomento da fauna cinegética, bem como da administração da caça? (cf. artigo
1º). Para a regulamentar, editou o Governo o Decreto-Lei n.º 311/87, de 10 de Agosto. O Decreto-Lei n.º 311/87, de 10 de Agosto, foi, no entanto, totalmente revogado pelo Decreto-Lei n.º 274-A/88, de 3 de Agosto. O Decreto-Lei n.º 274-A/88, de 3 de Agosto, editado ?no desenvolvimento do regime jurídico? da referida Lei n.º 30/86, veio a ser alterado, num primeiro momento, pelo Decreto-Lei n.º 43/90, de 1 de Fevereiro, e, mais tarde, pelo Decreto-Lei n.º 60/91, de 30 de Janeiro. Finalmente, foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro. O Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, foi, por sua vez, alterado pelo Decreto-Lei n.º 278/95, de 25 de Outubro, e, mais tarde, revogado pelo Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto. Este Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto (alterado, entretanto, pelo Decreto-Lei n.º 231/96, de 30 de Novembro) - que é o diploma legal que, presentemente, contém ?o regime jurídico de fomento, exploração e conservação dos recursos cinegéticos? - no seu artigo 148º, revogou, de facto, todas as normas que contrariem o disposto no presente diploma, designadamente os Decretos-Leis nºs 251/92, de 12 de Novembro, e 53/96, de 21 de Maio). A sentença recorrida desaplicou a norma que constava, primeiro, do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, e, presentemente, do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto (o conteúdo normativo dos dois preceitos
é idêntico, como claramente resulta do respectivo teor verbal), sendo que o artigo 21º, enquanto tem como suporte o Decreto-Lei n.º 136/96, foi convocado com o objectivo de, em obediência ao disposto no artigo 2º, n.º 4, do Código Penal, encontrar ?o regime jurídico concretamente mais favorável ao agente?. Por isso, apesar de tal preceito legal ser posterior ao cometimento dos factos, tem ele que ser tido em conta no recurso. O artigo 21º do Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, preceituava assim: Artigo 21º (Conceito)
1. Constituem fauna cinegética as espécies animais constantes do anexo ao presente diploma, que dele faz parte integrante, e, ainda, os animais domésticos ou domesticados que perderam essa condição.
2. As espécies cinegéticas podem ser de caça maior ou de caça menor, conforme o disposto no anexo referido no número anterior. O artigo 21º do Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto, dispõe como segue: Artigo 21º (Conceito)
1. Constituem fauna cinegética as espécies animais identificadas no anexo ao presente diploma, que dele faz parte integrante, e ainda os animais domésticos ou domesticados que perderam essa condição.
2. As espécies cinegéticas podem ser de caça maior ou de caça menor, conforme o disposto no anexo referido no número anterior.
4. A questão de ilegalidade:
4.1. O artigo 112º da Constituição prescreve, nos seus nºs 2 e 3, o seguinte:
2. As leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos.
3. Têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário ou que por outras devam ser respeitadas. Decorre do n.º 2 acabado de transcrever que, embora as leis e os decretos-leis tenham, em geral, igual valor, há leis que possuem um estatuto de supra-ordenação sobre os decretos-leis, que, assim, estão obrigados a respeitá-las. Foi, justamente, para atribuir esse estatuto de supra-ordenação a certas leis que a segunda revisão constitucional introduziu a categoria das leis de valor reforçado (cf. artigo 115º, n.º 2, na revisão de 1989). As leis de valor reforçado são as indicadas no n.º 3 do actual artigo 112º. A violação de uma lei de valor reforçado por uma norma constante de acto legislativo constitui uma ilegalidade, que ao Tribunal Constitucional cabe sindicar em via de recurso, e apreciar e declarar, com força obrigatória geral, em fiscalização abstracta [cf. o artigo 280º, n.º 2, alíneas a) e d), e o artigo
281º, n.º 1, alínea a), da Constituição]. O Tribunal Constitucional não controla, em princípio, a legalidade dos actos normativos. Mas a Constituição comete-lhe o controlo da legalidade reforçada, do mesmo passo que o faz garante da autonomia regional e dos seus limites [cf. os citados artigos 280º, n.º 2, alíneas b), c) e d), e 281º, n.º 1, alíneas c) e d)].
4.2. Pergunta-se, então: estar-se-á, no caso, perante uma ilegalidade, cujo controlo a Constituição pôs a cargo deste Tribunal? Ou seja: a Lei n.º 30/86, de
27 de Agosto, será uma lei de valor reforçado? Vejamos: A caça é a actividade destinada a capturar, vivo ou morto, qualquer elemento da fauna cinegética que se encontre em estado de liberdade? (cf. os artigos 2º do Decreto-Lei n.º 251/92 e do Decreto-Lei n.º 136/96). A fauna cinegética - de acordo com o que dispõem os preceitos legais que se transcreveram - é constituída não apenas pelas espécies animais constantes do anexo ao Decreto-Lei n.º 251/92 e ao Decreto-Lei n.º 136/96 (aí se incluem espécies de caça maior e espécies de caça menor), como ainda pelos ?animais domésticos ou domesticados que perderam essa condição?. O juiz a quo concluiu que os arguidos - que a Venatória surpreendeu numa zona de caça turística, na noite de 30 de Outubro de 1993, cerca das 02.00 horas, quando eles, transportando-se num automóvel ligeiro de mercadorias, que o arguido C. conduzia, seguindo o arguido N. de pé e munido de arma caçadeira na respectiva caixa, andavam em busca de um bezerro que, nesse dia, ao fim da tarde, ao ser descarregado, lhes tinha fugido - se entregavam ao exercício ilegal da caça, por este seu comportamento dever ?ser considerado como actividade venatória? ?punida por lei?. Isto é assim - disse -, porque, ?à luz dos decretos regulamentares? [refere-se aos mencionados Decretos-Leis nºs 251/92 e 136/96 - recte, aos seus artigos 21º, n.º 1], ?o animal em causa será de considerar como espécie cinegética?. Mas - acrescentou o juiz -, de acordo com o ?conceito vertido no artigo 2º, n.º
1, da Lei n.º 30/86?, tal conduta ?não se inscreveria no conceito de caça, dado que a espécie relativamente à qual os arguidos pretendiam a captura, não constituiria, então, fauna cinegética?.
É que - explicitou o juiz recorrido -, o artigo 2º, n.º 1, da mencionada Lei n.º
30/86, de 27 de Agosto, exige que ?os animais domésticos tenham perdido essa condição e que [...] figurem na lista de espécies que seja anualmente publicada em regulamentação dessa lei?, para que se possa falar de fauna cinegética. Já nos mencionados Decretos-Leis nºs 251/92 e 136/96, ?não se formula tal exigência na definição do conceito de fauna cinegética?. Na sequência de um tal entendimento, o juiz recorrido recusou, como se disse atrás, aplicação aos referidos artigos 21º dos Decretos-Leis nºs 251/92 e
136/96, por considerar que eles violam o disposto no artigo 2º, n.º 1, da Lei nº
30/86, de 27 de Agosto, que, em seu entender, é uma lei de valor reforçado. O artigo 2º, n.º 1, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, preceitua como segue:
2. Constituem fauna cinegética, ou caça, as aves e os mamíferos terrestres que se encontrem em estado de liberdade natural ou que tenham sido pré-domesticados e submetidos a processos de reprodução em meios artificiais ou em cativeiro, mas que readquiram aquela condição ou os animais domésticos que perderam essa condição e que figuram na lista de espécies que seja anualmente publicada com vista à regulamentação da presente lei.
4.3. Adianta-se, desde já, que a interpretação dos artigos 21º, n.º 1, dos Decretos-Leis nºs 251/92, de 12 de Novembro, e 136/96, de 14 de Agosto, feita pela sentença recorrida, não é a única interpretação possível dos preceitos, nem sequer a melhor. De facto, não é razoável incluir no conceito de fauna cinegética um bezerro que a sentença recorrida concluiu que os arguidos procuravam apanhar, por lhes ter fugido nesse mesmo dia quando, ao cair da tarde, o descarregavam - conclusão que este Tribunal não pode, obviamente, sindicar. Independentemente da circunstância de existir ou não uma lista de onde constem os animais que constituem caça, por terem perdido a condição de domesticidade, um bezerro não deixa de ser animal doméstico (ou, nalgum caso, domesticado), pelo tão-só facto de se escapar quando está a ser descarregado. Ora, para que um animal doméstico (ou domesticado) passe a ser considerado caça
(espécie cinegética), é necessário que perca a condição de domesticidade. É o que resulta, com toda a evidência, do teor verbal do artigo 2º, n.º 1, da Lei nº
30/86, de 27 de Agosto, e igualmente dos dizeres dos artigos 21º, n.º 1, dos Decretos-Leis nºs 251/92, de 12 de Novembro, e 136/96, de 14 de Agosto. Por isso, interpretar os mencionados artigos 21º, n.º 1, em termos de qualificar como peça de caça um bezerro, que fugiu nesse dia ao dono quando este o descarregava - para, depois, concluir que este, ao procurá-lo numa reserva de caça, a fim de o apanhar, se entregava ao exercício ilegal da caça - é imputar a tais normativos um sentido desrazoável - um sentido que o intérprete só extrai, porque desrespeita um cânone fundamental da hermenêutica jurídica, que é o de dever presumir que ?o legislador consagrou as soluções mais acertadas? (cf. artigo 9º, n.º 3, do Código Civil). A referida interpretação é, por isso, uma interpretação inaceitável. A interpretação correcta dos mencionados artigos 21º, n.º 1, dos Decretos--Leis nºs 251/92, de 12 de Novembro, e 136/96, de 14 de Agosto, é a de considerar que um bezerro tresmalhado, que o dono procurava nas condições apontadas, continua a ser um animal doméstico que ele pretende recuperar, e não uma peça de caça que procurasse capturar. Interpretados deste modo, na própria lógica da sentença, já os artigos 21º, n.º
1, dos Decretos-Leis nºs 251/92, de 12 de Novembro, e 136/96, de 14 de Agosto, não violariam o artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto.
4.4. Sucede, porém, que a Lei nº 30/86, de 27 de Agosto, não é, sequer, uma lei de valor reforçado, como decorre do que a propósito deste tipo de leis se escreveu no acórdão nº 358/92, publicado no Diário da República, I série A, de
26 de Janeiro de 1993. Ora, não se tratando de uma lei de valor reforçado, não podia o juiz a quo recusar aplicação aos artigos 21º, nº 1, dos Decretos-Leis nºs 251/92, de 12 de Novembro, e 136/96, de 14 de Agosto, com fundamento em que estes preceitos legais violavam a Lei nº 30/86, de 27 de Agosto - recte, o seu artigo 2º, nº 2. Há, assim, que conceder provimento ao recurso. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida no tocante ao julgamento de ilegalidade, a fim de ser reformada em conformidade com o aqui decidido.
Lisboa, 20 de Outubro de 1998 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Beleza Luis Nunes de Almeida