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Procº nº 762/97.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Pelo Banco C....,S.A., foi requerida a declaração de falência de A. C. e mulher, M. C., falência que veio a ser decretada por sentença proferida no Tribunal de comarca de Tondela e da qual a requerida M. C. pretendeu apelar.
Como o recurso não tivesse sido admitido por despacho de 23 de Setembro de 1997, proferido pela Juiz daquele Tribunal de comarca, do mesmo reclamou a aludida requerida para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, tendo, no requerimento consubstanciador da reclamação, sustentado, inter alia, a inconstitucionalidade da norma constante do artº 129º do Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, na interpretação segundo a qual a mesma não permite o recurso da sentença que declare a falência.
2. Por despacho de 25 de Novembro de 1997 (por lapso escreveu--se
1977), foi a indeferida a reclamação, em síntese com base em que a sentença declaratória da falência não é atacável por via de recurso, apenas podendo 'ser sindicada, por essa via, depois de decididos os embargos, em recurso da respectiva decisão'.
É deste despacho que, pela requerida M. C., vem interposto o vertente recurso para o Tribunal Constitucional, o que fez ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo, por seu intermédio, a apreciação da inconstitucionalidade da norma ínsita no artº 129º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência, aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, na interpretação segundo a qual não é permitido o recurso de apelação da sentença que decrete a falência.
3. Determinada a feitura de alegações, rematou a recorrente a por si produzida com as seguintes «conclusões»:-
'a) A decisão que admitiu o presente recurso não deveria ter-lhe fixado efeito devolutivo, mas sim efeito suspensivo (art. 78º- 4 da LTC).
b) A sentença declaratória de falência é restritiva dos direitos, liberdades e garantias pessoais do ?devedor? [designadamente, do direito ao bom nome e reputação, do direito à imagem, do direito à reserva da intimidade da vida privada (art. 26º da C.R.P.); do direito à liberdade (art. 27º da C.R.P.); do direito de deslocação (art. 44º da C.R.P.)], bem como dos seus direitos económicos [tais como: o direito à iniciativa privada(art. 61º da C.R.P.) e o direito de propriedade privada (art. 62º da C.R.P.)].
c) Essa restrição deverá limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos constitucionalmente protegidos (art. 18º-2 da CRP).
d) 0 conflito entre os interesses do requerente e do requerido no processo de falência não poderá ser resolvido através de uma solução legal que, postergando por completo o princípio da concordância prática, consagre o completo predomínio dos interesses do requerente e o imediato sacrifício dos direitos liberdades e garantias pessoais do requerido.
e) A norma do art. 129º do CPEREF, interpretada de forma a não permitir que sejam imediatamente sujeitos à apreciação de um tribunal hierarquicamente superior aos factos julgados na sentença declaratória de falência, estria a permitir que pudessem ser imediatamente postos em causa direitos, liberdades e garantias do declarado falido sem que, como contrapartida, lhe fosse facultado um meio processual (recurso) adequado a permitir, de imediato, a reapreciação dos factos por um tribunal hierarquicamente superior.
f) Segundo um tal entendimento perfilhado para a norma do art. 129º do CPEREF, o falido teria de sujeitar à apreciação do tribunal razões de facto
(baseadas em ?factos que, na decisão impugnada, não foram tomados em consideração por haverem sido afastados pelos requerentes desses procedimentos?) ou de direitos para, depois, poder recorrer da decisão sobre os embargos opostos
à falência, nos termos do disposto no art. 229º do CPEREF.
g) Por conseguinte e sempre segundo aquela interpretação, se não existissem factos que, na sentença, não tivessem sido levados em consideração, nem existissem razões de direito, não seria possível a dedução de embargos, e, consequentemente, ficaria vedado qualquer outro meio de impugnação da sentença declaratória de falência.
h) o que significa que, em tais casos, e apesar da gravidade dos efeitos da decisão em causa, seria afastada por completo a garantia de que a decisão da 1ª instância, de um ponto de vista da matéria de facto, fosse fiscalizada por um tribunal de 2ª instância.
i) Considerando a natureza da matéria em causa e a importância dos direitos e interesses envolvidos, uma tal limitação do direito ao recurso seria claramente violadora do direito de o declarado falido recorrer de uma decisão judicial que afecta tão gravemente os seus direitos fundamentais.
j) Afectando a sentença declaratória da falência os direitos fundamentais do falido, não seria legítimo ao legislador suprimir, pura e simplesmente, o direito ao recurso dessa decisão.
k) A recorrente só poderá defender-se imediatamente da ofensa que foi feita aos seus direitos fundamentais pela decisão declaratória da sua falência, caso possa imediatamente questionar os fundamentos de facto e de direito dessa decisão perante um tribunal hierarquicamente superior.
l) Tal direito, porém, á luz da interpretação que foi perfilhada para o art. 129º da CPEREF, e que ora se impugna, ou não lhe foi conferido de forma imediata ? o mais que poderia seria reclamar da decisão declaratória de falência para, depois, recorrer da decisão que julgasse essa reclamação (art. 228º do CPEREF); ou nunca lhe seria conferido ? no caso de pretender atacar apenas os fundamentos de facto da decisão declaratória da falência.
m) A garantia constitucional de recurso contra decisões judiciais que afectem os direitos fundamentais, enquanto ?garantia imprescindível desses direitos?, ficaria, pois, inteiramente prejudicada , com clara violação do disposto no art. 20º-1 da CRP.
n) Em face do exposto, a norma do art. 129º do CPEREF, ao ser interpretada com o sentido de não permitir o recurso imediato da sentença declaratória de falência, para além de ofender os limites previstos no art.
18º-2 da CRP, viola o disposto nos arts. 20º, 26º, 27º, 44º, 61º e 62º da C.R.P.?
De seu lado, o recorrido Banco C...,S.A., concluiu a sua alegação propugnando por se dever negar provimento ao recurso.
Cumpre decidir.
II
1. Preliminarmente enfrentar-se-á a questão de saber se ao vertente recurso não deveria ter sido fixado efeito meramente devolutivo, tal como na decisão impugnada o foi.
Segundo a recorrente, ?não se enquadrando o presente recurso em nenhuma das situações previstas nos nºs 1 a 3 do artigo 78º da LTC, haveria que aplicar o regime residual previsto no nº 4 dessa mesma norma?.
É bem certo que no domínio do diploma adjectivo civil, dos despachos proferidos pelos presidentes dos tribunais superiores em sede de reclamação pela não admissão de recurso (ou da sua retenção) por banda dos tribunais hierarquicamente inferiores, não está prevista qualquer impugnação, não se prendendo essa não previsão em razões de valor ou de alçada.
Todavia, tem este Tribunal entendido que tais despachos, como decisões dos restantes órgãos de administração de justiça, são passíveis de impugnação para este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa em sede da fiscalização concreta a que se reportam os artigos 280º da Constituição e 70º, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. E mais: tratando-se de recursos fundados na alínea b) do nº 1 daquele artº 70º, com vista a se analisar se determinada norma impeditiva de recurso para um tribunal superior, aplicada por tribunal de inferior hierarquia, é ou não desconforme com a Lei Fundamental, exige o Tribunal Constitucional, para efeitos do nº 2 do mesmo artº 70º, que se reclame previamente para o presidente do tribunal superior.
Há-de, assim, convir-se que, para esse efeito, a reclamação para o presidente do tribunal superior funciona como um recurso ordinário (cfr., sobre o ponto, por entre muitos outros, o Acórdão nº 159/90 in Diário da República, 2ª Série, de 11 de Setembro de 1990, onde se afirma expressamente que a jurisprudência deste Tribunal ?pende significativamente para a afirmativa? quanto à questão de qualificar a reclamação como recurso ordinário para os fins do artº 70º da Lei nº 28/82), pelo que, neste entendimento das coisas, tudo se perspectivará como sendo o despacho do presidente do tribunal superior uma decisão equiparável a recurso ordinário que caiba do despacho prolatado no tribunal inferior e que não admitiu o recurso intentado interpor.
Neste contexto, os efeito e regime de subida do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade interposto do despacho lavrado pelo presidente do tribunal superior, necessariamente, terão de ser os mesmos que caberiam ao eventual recurso ordinário que fosse interposto da decisão de não admissão de recurso. E, nesta senda, não se afigura que o efeito fixado in casu na decisão tomada pelo Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra seja passível de censura.
Isto posto, passar-se-á a analisar a questão de constitucionalidade de que curam estes autos.
2. A norma cuja conformidade constitucional é questionada pela ora recorrente consta do preceito ínsito no artº 129º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência aprovado pelo Decreto-Lei nº
132/93, de 23 de Abril (rectificado na I Série-A do Diário da República de 31 de Junho de 1993), tendo o seguinte teor:- Artigo 129º. Oposição de embargos à sentença
1- Podem opor embargos à sentença, quando haja razões de facto ou de direito que afectem a sua regularidade ou real fundamentação:
a) O devedor, desatendido na sua apresentação à falência, ou que, não se tendo apresentado para tal efeito, tenha sido declarado em situação de falência;
b) Qualquer credor que como tal se legitime;
c) O Ministério Público, nos casos em que os interesses a seu cargo o justifiquem:
d) O cônjuge, os ascendentes ou descendentes e os afins em 1º grau da linha recta da pessoa considerada falida, no caso de a falência se fundar na fuga do devedor relacionada com a sua falta de liquidez;
e) O cônjuge, herdeiro, legatário ou representante do devedor, quando a falência haja sido declarada depois da morte do falido ou quando o falecimento tenha ocorrido antes de findo o prazo para a oposição por embargos.
2 - Os embargos devem ser deduzidos dentro dos sete dias subsequentes
à publicação da sentença declaratória da falência no Diário da República.
3 - A dedução dos embargos suspende a liquidação do activo, sem prejuízo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 145º, bem como os termos do processo subsequente à sentença de verificação e graduação de créditos.
Se bem que se não extraia do transcrito preceito, de forma directa, a proibição da impugnação da sentença que declare a falência por intermédio de uma qualquer das formas de recurso ordinário (que é a dimensão cuja incompatibilidade com a Lei Fundamental é suscitada pela recorrente), o que é certo é que, de um lado, foi com essa dimensão que se aplicou, no despacho sob censura, a mesma norma e, de outro, impõe-se aproximar o mesmo preceito daqueloutro constante do artº 228º do mesmo Código, o qual reza assim:- Artigo 228º. Recursos da decisão sobre os embargos
1- Da decisão sobre os embargos opostos à sentença declaratória da falência cabe recurso, que sobe imediatamente e em separado, com efeito meramente devolutivo; se a decisão sobre os embargos houver mantido a declaração de falência, a interposição do recurso suspende, todavia, a liquidação do activo, sem prejuízo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 145º, e suspende também os termos subsequentes à sentença de verificação e graduação de créditos.
2 - O recurso do despacho de indeferimento liminar sobre imediatamente, nos próprios autos dos embargos, que para esse efeito são desapensados.
3 - Sempre que não tenha sido oferecida prova ou que esta tenha sido rejeitada sem impugnação do recorrente, estando o valor da causa fora da alçada da Relação, o recurso das decisões proferidas sobre embargos pelo tribunal de 1ª instância sobe directamente ao Supremo Tribunal de Justiça.
Aliás, não se descortina no articulado do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência qualquer norma de onde se extraia que a decisão que decrete a falência pode ser impugnada por intermédio de uma qualquer das formas de recurso ordinário, sendo certo que no preâmbulo do diploma aprovador de tal Código se refere expressamente:
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São também bastante significativas as alterações introduzidas na matéria dos recursos das decisões judiciais proferidas ao longo da acção.
Por um lado, a sentença declaratória da falência, por uma questão de justificada simplificação, deixa de estar simultaneamente sujeita, como sucede no direito vigente (artigo 1183º, nº 3, do Código de Processo Civil), à dedução de embargo e à interposição de recurso.
Passa a estar apenas sujeita à dedução de embargos, com fundamento tanto em circunstâncias de facto, como em razões de direito, regime que tem a vantagem de, além do mais, propiciar ao tribunal a possibilidade de repensar a decisão.
Da decisão dos embargos cabe recurso, seja qual for o seu sentido.
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Da sentença que denegue a declaração de falência continua a caber recurso de apelação, mas a lei passa a determinar com toda a clareza a sua subida imediata nos próprios autos e o seu efeito meramente devolutivo.
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Foi, certamente, com base neste circunstancialismo que o despacho impugnado fez aplicação do citado artº 129º [recte, da alínea a) do seu nº 1 ] interpretado em termos de ele não consentir o recurso de apelação da sentença que declare a falência.
Enfermará a norma sub iudicio do vício de desconformidade com o Diploma Básico?
É o que se irá ver.
3. Tem este Tribunal tido desde há muito uma jurisprudência impressiva sobre a questão da denominada garantia da via judiciária, quando traduzida no direito ao recurso que, incluído no mais vasto direito de acesso ao direito e aos tribunais, prescrito no artigo 20º da Constituição, seria, para se usarem as palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 164), ?traduzido no direito ao duplo grau de jurisdição?.
De harmonia com essa mesma jurisprudência, tal direito não tem de ser visualizado como ilimitado e, não estando em causa matérias de âmbito criminal ? que postularão, em nome das garantias de defesa que o processo criminal deverá assegurar ao arguido, ex vi do artigo 32º da Constituição, um segundo grau de jurisdição tocantemente a sentenças penais condenatórias (e essa garantia, consubstanciada na imposição de um recurso, está, desde a Revisão Constitucional operada pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, expressamente consagrada na parte final do nº 1 daquele artigo 32º) -, inscreve-se na liberdade conformadora do legislador a ampliação ou a restrição das existentes formas de impugnação das decisões judiciais ou a adopção de outras, sendo que, de todo o modo, e porque o Diploma Básico prevê a existência de tribunais de recurso, o que, neste particular, estará vedado àquele legislador é, tão só, a supressão global dos recursos (cfr., por todos, o Acórdão deste Tribunal nº 287/90, publicado na 2ª Série do Diário da República de 20 de Fevereiro de 1991; cfr., também, Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 1994, 99 e seguintes).
Não ignora o Tribunal a postura de alguns que identicamente defendem que estando em causa decisões judiciais que afectem direitos fundamentais, deve considerar-se que também aí impõe a Constituição, por força do seu artigo 20º (e conquanto nela se não encontre expressamente previsto o direito ao recurso), a necessidade de consagração do direito ao duplo grau de jurisdição que, dessa arte, se apresenta ?como garantia imprescindível desses direitos? (cfr., verbi gratia, Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra e local citados).
3.1. Ora, para quem essa postura perfilhe, e mesmo supondo que o decretamento da falência desencadeava uma restrição ou compressão de direitos, liberdades e garantias do falido (do que sempre se poderia legitimamente duvidar no que concerne a alguns direitos elencados pela recorrente), mister é que se saiba se esse decretamento (recte, as razões fácticas e jurídicas que a ele conduziram) se posta como algo que, com base na norma sub iudicio, é completa e totalmente desprovido de uma reapreciação judicial por banda de um tribunal superior em via de recurso.
A resposta a esta questão deve, claramente na óptica deste Tribunal, sofrer resposta negativa.
4. Na realidade, de um lado, a norma em apreço é, visivelmente, uma norma de estrito âmbito processual e que, em si mesma considerada, não contende com qualquer limitação da capacidade ou com direitos e vinculações do declarado falido. E. de outro lado, também ela não se insere, de modo directo e imediato, numa «adjectivação» de institutos ou matérias verdadeiramente substantivas que tenham a ver com questões ligadas a qualquer reflexo sobre aquelas capacidades, direitos e vinculações.
De todo o modo, e mesmo que se efectuasse uma suposição de harmonia com a qual, tendo em conta, designadamente, alguns dos efeitos prescritos no artº 128º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (cfr., sobre os efeitos substantivos da declaração de falência, Luís Carvalho Fernandes, Efeitos substantivos da declaração de falência, in Direito e Justiça, vol. IX, tomo 2, 1995, 21 e seguintes e Oliveira Ascenção, EFEITOS DA FALÊNCIA SOBRE A PESSOA E NEGÓCIOS DO FALIDO, na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 55, Dezembro de 1995, 641 e seguintes, que, inter alia, sublinha que a inibição do falido, justificada ?pela credibilidade que devem merecer os comerciantes?, não é ?emanação ou componente da situação do falido?, não se devendo confundir com incapacidade), efeitos esses que se caracterizariam como algo que constituía limitações ou restrições sobre matérias incluíveis em direitos, liberdades ou garantias fundamentais (ou a estes análogas), por isso havendo a decisão judicial decretadora da falência de comportar uma reapreciação em sede de recurso, a questão que se coloca é, pois, a de saber se o sistema instituído por aquele Código se mostrará contrário a um tal posicionamento.
Efectivamente, não se pode olvidar que tal sistema assegura devidamente que a decisão que declare a falência seja objecto de impugnação, já não por via de recurso, mas sim por intermédio de embargos, situação que, bem vistas as coisas, até concede oportunidade de uma reapreciação com vários graus
? pela 1ª instância e por intermédio dos vários recursos ordinários que da decisão proferida nos embargos caibam no caso.
E a mesma questão também é colocável para quem sustente que aquela sentença tem ou pode ter (ou pode apresentar) determinados efeitos de cariz sancionatório a que, então, seria ? ao menos após 20 de Setembro de 1997 - porventura aplicável a regra constante do nº 10 do artigo 32º da Constituição, aditado pela Revisão Constitucional operada pela mencionada Lei Constitucional nº 1/97, num entendimento segundo o qual as garantias de defesa aí referidas englobariam o direito ao recurso explicitado na parte final do nº 1 do mesmo artigo (na redacção dada por tal Lei Constitucional).
Não se pode, desta sorte, afirmar que a norma sub specie, ao suprimir o recurso ordinário previsto no nº 3 do artº 1183º do Código de Processo Civil, vá coarctar a possibilidade de defesa do declarado falido contra actos jurisdicionais, defesa essa levada a efeito por intermédio do seu pedido de reapreciação por um tribunal superior.
4.1. Esta reapreciação, que seria imposta por uma postura tal como a que ora se debate, defluída do artigo 20º da Constituição (e ou do seu artigo
32º), não tem, necessariamente, que se limitar, e de um modo único, à consagração da previsão do recurso ordinário. Antes, o que se impõe é a possibilidade de um tribunal de hierarquia superior poder reanalizar os fundamentos de facto e de direito que foram acolhidos na decisão judicial.
Ora, a dedução de embargos e a possibilidade de a decisão tomada sobre eles poder ser reapreciada por um tribunal superior ? e não se olvidando os efeitos que a dedução de embargos e o recurso da respectiva decisão acarretam, de acordo com os artigos 129º, nº 3, e 228º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (e note-se que por intermédio dos embargos se podem pôr em causa, quer as razões de facto, quer as razões jurídicas que foram carreadas à decisão que decretou a falência) -, constitui, seguramente, um modo adequado de se obter a re-análise de uma decisão com a qual o falido não concorda e da qual, por isso, se tenta «defender» (sempre dentro da perspectiva de que essa decisão vai contender, limitando ou restringindo direitos ou liberdades fundamentais seus, ou representa, também, a imposição de determinadas sanções).
E nem se diga, como a recorrente parece fazer crer na sua alegação, que o sistema constituído pela norma sub iudicio vai fazer com que, não havendo fundamentos para os embargos e, assim, não se podendo lançar mão destes, ficaria subsistente a sentença declaratória da falência e, não admitindo esta recurso ordinário, tal sistema contrariaria o «direito ao duplo grau de jurisdição».
Um tal argumento, minimamente, não é probante.
É que, inexistindo na realidade fundamentos para os embargos, não se vislumbra com que base seria fundado o recurso cuja não previsão ora é questionada.
4.2. Esta última asserção, todavia, não chega, só por si, para resolver a questão.
Na verdade, não se passa em claro que se poderia esgrimir com o argumento segundo o qual, pressupondo os embargos ?como regra a alegação e prova de factos novos? (para se usarem as palavras de Armindo Ribeiro Mendes, obra citada, 131), isso conduziria, na suposição acima colocada, a que o «remédio» concretizado na utilização da via dos embargos não se mostraria suficiente para o asseguramento de um duplo grau de jurisdição (e isto, claro está, para quem defenda a postura, já equacionada, dos que defendem a imposição constitucional de tal asseguramento quando em causa estejam direitos, liberdades ou garantias ou decisões que acarretem o decretamento de sanções).
Simplesmente, uma interpretação literal da norma constante do artº
129º, nº 1, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aliada à circunstância de, por um lado, contrariamente ao que se dispunha no artº 1184º do Código de Processo Civil, os motivos para a dedução de embargos previstos naquela primeira disposição já se não encontrarem taxativamente enunciados e, por outro, de não haver, ao contrário do que no sistema de tal Código adjectivo (cfr. nº 3 do artº 1183º) se prescrevia, recurso da sentença declaratória da falência, devem levar a que os embargos a que se reportam aquele artº 129º não possam unicamente fundamentar-se na alegação e prova de factos novos ou de razões jurídicas não atendidas naquela sentença.
De todo o modo, e perante uma dualidade interpretativa, em que de um dos lados se postasse aquela que imediatamente acima se indicou e, de outro, a que apontasse no sentido de nos embargos unicamente se poderem aduzir e provar factos novos (e sendo qualquer dessas interpretações comportáveis perante o teor normativo do mencionado artº 129º), sempre haveria, tomando por referência os ditâmes constitucionais, que perfilhar a primeira, por isso que era aquela que, ao menos com maior facilidade e amplitude, permitiria a reponderação, por um tribunal superior, das razões fácticas e jurídicas da sentença declaratória da falência, tendo em vista alguns dos efeitos que ela comporta.
5. Considera também o Tribunal que uma argumentação baseada na circunstância de efeito do recurso dos embargos ser diverso do efeito regra do recurso de apelação, por si só, não acarreta riscos tais para a pessoa do falido, fazendo com que a norma em análise (na dita interpretação, mais compatível constitucionalmente, nos termos que se vieram de expor) seja conflituante com o Diploma Básico.
De facto, é necessário não olvidar que o efeito suspensivo acarretado pelo recurso de apelação não é algo de imutável, por isso que, se, em regra, a interposição do recurso de apelação suspende a execução da sentença
(cfr. nº 1 do artº 692º do Código de Processo Civil), muitas hipóteses estão legalmente previstas em que tal tipo de impugnação não acarreta o efeito suspensivo (cfr. nº 2 daquele artigo), algumas delas repousando, inclusivamente, no prejuízo que a parte vencedora sofreria pela dação de tal efeito [cfr. alínea d) daquele nº 2].
Os prejuízos abstractos para o comércio em geral decorrentes de um estado objectivo de falência em que, sendo esta decretada, se permitisse o desenvolvimento, quiçá pernicioso, da actividade comercial do falido, em razão da interposição de recurso de apelação da sentença que a decretou, não se vislumbram como constituindo algo de desproporcionado em face do acautelamento dos interesses do declarado falido que, de todo o modo, pode impugnar, embora por uma via não directa tal como o recurso de apelação, a decisão judicial que assim o declarou e, que não vê o seu património ser liquidado.
Aliás, não é despiciendo sublinhar-se que, mesmo no regime processual anterior ao introduzido pelo Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, em que era permitido a impugnação, por intermédio de recurso de apelação, da sentença declaratória da falência, havia quem defendesse na doutrina que esse recurso, não obstante o seu efeito suspensivo, não era impeditivo da imediata apreensão de bens e da inibição do falido (cfr. Pedro Macedo, Manual de Direito das Falências, 2º volume, 245).
Num balanceamento, de uma banda, dos interesses do falido e, mais concretamente, nos aspectos ligados a direitos, liberdades e garantias de que desfrute (ou, numa certa perspectiva, o sancionamento que lhe possa ser imposto em razão do estado de falido) e que possam ser postos em crise ou em risco pela sentença que decrete a falência e, de outra, os riscos advenientes para o comércio em geral, aditando-se a isto, e com o máximo relevo, que não é, de todo, vedada a possibilidade de o falido obter a reapreciação da decisão que o decretou falido, não lobriga o Tribunal que, em virtude de dessa decisão não estar consagrado o recurso de apelação, se poste uma injustificada e desproporcionada situação reclamante de um juízo de censura da norma sub specie que a fulminasse com o vício de inconstitucionalidade.
6. Refira-se, por último, que, nos vertentes autos, o objecto do recurso é, e só, constituído pela analisada norma, e não por aqueloutra ou aqueloutras que prescrevem os efeitos, sobre a pessoa do falido.
E daí não se tornar necessário enfrentar a questão de saber se, nesse passo, se depararia uma verdadeira norma limitativa ou constritiva de direitos, liberdades e garantias, reclamante da intervenção legislativa parlamentar, quer directamente, quer mediante autorização concedida ao Governo. III
Pelo que se deixa dito, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 21 de Outubro de 1998 Bravo Serra Maria Fernnda dos Santos Martins d Palma Pereira Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa